O seu sonho sempre foram os livros.
Ainda pequenina, quando todas as meninas da sua idade se apaixonavam pela carinha e pelos caracóis das suas bonecas, e ficavam tardes perdidas falando sozinhas, calçando sapatinhos, vestindo saínhas, exercitando e transferindo para as suas bonequinhas uma vida de faz de conta, igual à vida de todos os dias, a Madalena abria livros.
Às vezes, perdida na sua imaginação de criança, fazia tendas da Grande Enciclopédia dos Animais que o pai lhe comprara numa viagem ao Brasil, e encolhendo muito os ombros, para não estragar a casinha, enfiava lá a cabeça, fincava os cotovelos na alcatifa, e olhava perdida para a forma estranha de um peixe-palhaço.
- Madalena! O que fazes aí debaixo?
- Estou na selva mãe, hoje abri na parte dos macacos. Sabias que os macacos comem os piolhos uns dos outros?
- Mas Madalena, assim dás cabo dos livros do teu pai, olha as folhas, todas enroladas na alcatifa.
Mas Madalena não queria saber das folhas e nem da alcatifa, queria antes saber das letras, porque eram as letras que lhe ensinavam que no mundo, havia vários tipos de folhas, e não só as que tinham as letras.
O meu sonho sempre foram os livros.
O meu sonho era poder sentar-me todos os dias, muito cedo, e escrever uma história.
Ficaria muito feliz se a escrevesse numa sala cheia de luz, onde eu pudesse pendurar, numa grande janela virada a sul, um fino pano de linho, muito branco e que, de tempos a tempos, um gatinho muito pequenino viesse visitar-me as letras, e dar-me um carinho.
Levantar-me-ia muito cedo, para ter o sol só para mim e iria em bicos de pés inspirar o cheiro quente e doce que só as crianças podem ter.
Gostava de acordar no meio dos livros, rodeada de muita gente, que embora ausente ou imaginada, me trouxesse a calma à manhã, que eu procuro e não encontro, de madrugada.
Gostava de ler muitos livros, e viver uma vida mais calma.
Mas quando os sonhos acordam estou parada, trancada, amordaçada em pensamentos maus.
Tudo me aborrece, não quero chegar, não quero estar, tudo se repete.
Mas que faço, se este sol não me aquece?
Os meus pesadelos, outrora cativos do sono, permanecem acordados no despertar, e ando com eles todos os dias em mim, pesados.
Ando estafada.
Desculpem usar um pensamento antigo, mas esta vida corrida não leva a nada.
Esta vidinha amorfa que levo, não me ensina nada.
É mais dificil fingir a felicidade do que ser verdadeiramente infeliz.
Preciso de mais tempo para mim.
Quero antes carregar os sonhos.
Vai escrevendo, mesmo que não seja como sonhaste, Uva. Gosto tanto de ler o que escreves.
ResponderEliminarAndo perdida com o trabalho, sabes. Com a falta de tempo para fazer o que gosto, para a minha filha. Vivo enfiada no escritório de manhã à noite. O que vejo da muinha janela são A/C´s barulhentos e paredes.
EliminarEstou a chegar a um limite que me impele brutalmente para a esquizofrenia.
Ando triste.
:\
EliminarSe eu te prometer um milhão que não ganhei alivia?
O que me aliviava era parar para pensar no que quero fazer da minha vida. Isto qualquer dia não dá resto zero.
EliminarUm milhão dava para comprar uns belos cortinados, lá isso...
;)
é o tempo moderno, ou a vida moderna a devorar-nos, Uva. sonhar, ler, escrever, e "sustentar uma leveza do ser" (desculpe Milan Kundera, fiz aqui um pequeno roubo com trocadilho à mistura), podia, talvez, permitir que deixássemos de ser reféns da complexidade em que transformámos o nosso dia a dia.
ResponderEliminarO dinheiro é que estraga isto tudo.
EliminarAs coisas, coisas, coisas, coisas.
Raispartam!
É lindooo!! Adorei todas tuas letras.
ResponderEliminarUm dia, Uva, vai ter o teu "gato e a seu pano de linho, muito branco"
Por enquanto nem gato tenho.
EliminarDesconfio que pode ser isso. Saudades do meu gato.
Ai nininha. A vida é esta pouca de merda. A minha avó dizia-me isto e eu não percebia. Agora percebo.
E porque não arranjar um gato branco?
EliminarSeria um começo, quem sabe!
Com calma, tudo vai ao sitio, um passo de cada vez
e tenho mesmo que deixar aqui um VIVA a Avó Uva!! Sábia mulher!!!
Vai escrevendo, vai guardando
ResponderEliminarjuntando, amealhando
E quando o crepúsculo findar
E um novo alvor o dia iluminar
Das canseiras te libertarás
E os teus sonhos realizarás
Então lerás
E também escreverás
E para a vida sorrirás.
Só não serás uma grande e belíssima escritora, se não quiseres
O meu amigo Corvo é de resto um grande apoio. Tem sido uma grande amigo.
EliminarTenho andado estoirada. Parece que ando só às voltas.
Não estou a saber cair nas voltas que a minha vida dá.
A menina que descreveste faz-me lembrar a minha M. pequena. E, quanto a ti, escreve, escreve porque o fazes muito bem e é uma pena se não continuares a perseguir o teu sonho.
ResponderEliminarNão tenho tempo para perseguições.
EliminarE isso anda a moer-me a cabeça.
Só trabalho. Um horror, um horror.
Não fosse o meu blog e já ninguém tinha orelhas neste escritório.
Um pouco de calma e um livro em branco fazem milagres. Há dias em que isso não basta, eu sei, mas ajuda muito. Isso e dar uma volta à questão... Força nisso :)
ResponderEliminarEu até te dizia como se dava a volta à questão, mas infelizmente não joguei no eurogasosas e continuo pobre...
EliminarGostava de te poder ajudar, Uva. Sei bem do que falas.
ResponderEliminarHá um exercício que podes tentar fazer e que se faz pensando, enquanto vais para o trabalho, tomas banho ou antes de adormecer: fazer um "scan" do que tens, do que fazes, e tentar descobrir alguma coisa/actividade/assunto/pessoa que esteja a mais na tua vida, que te esteja a empatar, mesmo que seja pouco. E deita-a fora, se puderes (normalmente o que está a mais podemos deitar fora).
E depois faz uma coisa por ti, para ti. Faz mesmo, é prioridade.
Desejo-te boa sorte, Uvinha. :-)
Um beijo.
Aí é que reside a raiz de todo o mal. O stress provocado por outras pessoas e a falta de tempo para largar o stress noutras coisas que nos retemperam, é que está a amofinar a questão.
EliminarEstou descompensada. O lado profissional stressante não me deixa tempo para fazer o que gosto, que além de tudo o resto (que eu sou uma Uva normal e também gosto de beber, de dançar e conversar) que é escrever e isso afoga-me os sonhos.
Montes de histórias na cabeça, montes de ideias, e a única coisa que faço é tirar fotocópias (e quejandos)...
Se calhar vou deprimir....
Tenho mesmo de me por a pau...
Leio-te, e revejo-me em cada palavra. E o pior, é que mesmo às vezes com tempo, nem escrever me apetece. E receio que todos os apetites vorazes de outrora, não regressem mais, e eu seja apenas empurrada por esta vida sensaborona.
ResponderEliminarUm porcaria isto de viver sempre a mil, a correr sobretudo para longe de nós próprios.
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