Ele nas letras. (Fernando Pessoa)
Ela na voz. (Maria Bethania)
Não deixem de ouvir.
Vale muito a pena.
Poema
do Menino Jesus
Num
meio-dia de fim de Primavera
Tive um
sonho como uma fotografia.
Vi
Jesus Cristo descer à terra.
Veio
pela encosta de um monte
Tornado
outra vez menino,
A
correr e a rolar-se pela erva
E a
arrancar flores para as deitar fora
E a rir
de modo a ouvir-se de longe.
Tinha
fugido do céu.
Era
nosso demais para fingir
De
segunda pessoa da Trindade.
No céu
tudo era falso, tudo em desacordo
Com
flores e árvores e pedras.
No céu
tinha que estar sempre sério
E de
vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir
para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma
coroa toda à roda de espinhos
E os
pés espetados por um prego com cabeça,
E até
com um trapo à roda da cintura
Como os
pretos nas ilustrações.
Nem
sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as
outras crianças.
O seu
pai era duas pessoas -
Um
velho chamado José, que era carpinteiro,
E que
não era pai dele;
E o
outro pai era uma pomba estúpida,
A única
pomba feia do mundo
Porque
nem era do mundo nem era pomba.
E a sua
mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era
mulher: era uma mala
Em que
ele tinha vindo do céu.
E
queriam que ele, que só nascera da mãe,
E que
nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse
a bondade e a justiça!
Um dia
que Deus estava a dormir
E o
Espírito Santo andava a voar,
Ele foi
à caixa dos milagres e roubou três.
Com o
primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o
segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o
terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E
deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve
de modelo às outras.
Depois
fugiu para o Sol
E
desceu no primeiro raio que apanhou.
Hoje
vive na minha aldeia comigo.
É uma
criança bonita de riso e natural.
Limpa o
nariz ao braço direito,
Chapinha
nas poças de água,
Colhe
as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira
pedras aos burros,
Rouba a
fruta dos pomares
E foge
a chorar e a gritar dos cães.
E,
porque sabe que elas não gostam
E que
toda a gente acha graça,
Corre
atrás das raparigas
Que vão
em ranchos pelas estradas
Com as
bilhas às cabeças
E
levanta-lhes as saias.
A mim
ensinou-me tudo.
Ensinou-me
a olhar para as coisas.
Aponta-me
todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me
como as pedras são engraçadas
Quando
a gente as tem na mão
E olha
devagar para elas.
Diz-me
muito mal de Deus.
Diz que
ele é um velho estúpido e doente,
Sempre
a escarrar para o chão
E a
dizer indecências.
A
Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o
Espírito Santo coça-se com o bico
E
empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no
céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me
que Deus não percebe nada
Das
coisas que criou -
"Se
é que ele as criou, do que duvido." -
"Ele
diz por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os
seres não cantam nada.
Se
cantassem seriam cantores.
Os
seres existem e mais nada,
E por
isso se chamam seres."
E
depois, cansado de dizer mal de Deus,
O
Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu
levo-o ao colo para casa.
Ele
mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a
Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o
humano que é natural.
Ele é o
divino que sorri e que brinca.
E por
isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele
é o Menino Jesus verdadeiro.
E a
criança tão humana que é divina
É esta
minha quotidiana vida de poeta,
E é por
que ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.
E que o
meu mínimo olhar
Me
enche de sensação,
E o
mais pequeno som, seja do que for,
Parece
falar comigo.
A
Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me
uma mão a mim
E outra
a tudo que existe
E assim
vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando
e cantando e rindo
E
gozando o nosso segredo comum
Que é
saber por toda a parte
Que não
há mistério no mundo
E que
tudo vale a pena.
A
Criança Eterna acompanha-me sempre.
A
direcção do meu olhar é o seu dedo apontado.
O meu
ouvido atento alegremente a todos os sons
São as
cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos
tão bem um com o outro
Na
companhia de tudo
Que
nunca pensamos um no outro,
Mas
vivemos juntos e dois
Com um
acordo íntimo
Como a
mão direita e a esquerda.
Ao
anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No
degrau da porta de casa,
Graves
como convém a um deus e a um poeta,
E como
se cada pedra
Fosse
todo o universo
E fosse
por isso um grande perigo para ela
Deixá-la
cair no chão.
Depois
eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele
sorri porque tudo é incrível.
Ri dos
reis e dos que não são reis,
E tem
pena de ouvir falar das guerras,
E dos
comércios, e dos navios
Que
ficam fumo no ar dos altos mares.
Porque
ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma
flor tem ao florescer
E que
anda com a luz do Sol
A
variar os montes e os vales
E a
fazer doer aos olhos dos muros caiados.
Depois
ele adormece e eu deito-o.
Levo-o
ao colo para dentro de casa
E
deito-o, despindo-o lentamente
E como
seguindo um ritual muito limpo
E todo
materno até ele estar nu.
Ele
dorme dentro da minha alma
E às
vezes acorda de noite
E
brinca com os meus sonhos.
Vira
uns de pernas para o ar,
Põe uns
em cima dos outros
E bate
palmas sozinho
Sorrindo
para o meu sono.
Quando
eu morrer, filhinho,
Seja eu
a criança, o mais pequeno.
Pega-me
tu ao colo
E
leva-me para dentro da tua casa.
Despe o
meu ser cansado e humano
E
deita-me na tua cama.
E
conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu
tornar a adormecer.
E dá-me
sonhos teus para eu brincar
Até que
nasça qualquer dia
Que tu
sabes qual é.
Alberto
Caeiro (Fernando Pessoa)
Tocou-me profundamente e particularmente a última estrofe, porque a sinto na carne (de entre outros, este, escrevinhado ontem: http://lindaporcaoucheirodeestrume.blogspot.pt/2014/12/e-estava-um-sol-tao-bonito.html)
ResponderEliminarObrigada, Uvinha.
Um Natal bonito e tudo bom e saboroso para ti e para os teus, que tu mereces.
Beijinhos
Um grande beijinho Linda. Merecemos todos ser felizes. Que as nossas partilhas diárias sejam sobretudo isso.
EliminarFeliz Natal para ti e para os teus.
E agora que somos vizinhas, a ver se vais lá a casa comer uma rabanada!
Um grande abracinho da Uva.
Somos? :)
EliminarTu sabes coisas...
E eu adoro rabanadas, portanto, prepara-te.
Também eu. São as minhas favoritos. De um dia para o outro. Frias. Nham.
EliminarUva , o Natal é muito intenso, esta letra e música vai-lhe no encalço. Não me alongo em considerações sobre a época porque lido mal com tanta intensidade. Deixo aqui o desejo de que seja sempre uma data plena de boas recordações. Feliz Natal com tudo aquilo a que se tem direito. Hoje também deixo beijinhos.
ResponderEliminarLidas mal com tanta intensidade? E não viste tu a estátua do nosso CR. Isso sim é intenso!
EliminarFeliz Natal minha grande amiga desabafadora. Tudo de bom para ti e muitos beijos também.
Boa noite,
ResponderEliminarrecomendo o álbum de Maria Bethânia «Cânticos, Preces, Súplicas à Senhora dos Jardins do Céu» de 2003.
Fica-se com o coração cheio de Paz.
Beijinhos.
Fernanda
Apenas: LIndo!
ResponderEliminarQue tenhas um feliz Natal e não comas muitas rabanadas que aquilo, dizem, faz azia. Eu cá marcha tudo que já nem tenho vesícula. :)) Beijinho
Gosto! E também gosto da Uva franjolas! :)
ResponderEliminarBeijos Natalícios! :)
Não me canso de ouvir: está no meu ipod e já o "postei" várias vezes no blogue. O poema é brutal e a voz desta mulher arrepia-me as veias da alma. Oiço-a há 41 anos e nunca me cansei :-)
ResponderEliminarDe tudo retive o que as mulheres retém (sou uma mulher comum, enfim) e que foi:
Eliminar41 anos?????
Ninguém diria.
Daqui pareces muito bem conservada...
Já eu... eu estou uma Uva Passa.
conservo-me em alcool ahahahahahah neste momento com um copo de vinho tinto na mão a ler o teu blogue.
ResponderEliminarsim, tenho 41 anos e já ouvia MB na barriga da minha mãe :-) ficou para sempre :-)
:-) Beijo
Sim, sim, para aguentares o meu blog, só à força de muito vinho. Hahahahahahaha
EliminarBem vinda ao meu delírio.
Cuidado! A Uva às vezes derrapa para a ficção...
ahahahahahahahahah passa pela minha tasca :-) e obrigada por escreveres neste blogue. fico a dever-te esta e uma garrafa de vinho: dar-te-ei vinto tinto: «herdade de grous» do alentejo do meu coração ;-)
ResponderEliminarTens uma tasca? Pronto. Então já não te largo.
EliminarAinda para mais tens o Alentejo no coração... ai ai ai sou uma Uva tao sensível...
Vou passar lá. A ver o que a baixinha armou...