22 de dezembro de 2014

O Natal é isto. Imaginação e Superação


Ele nas letras. (Fernando Pessoa)
Ela na voz. (Maria Bethania)

Não deixem de ouvir.
Vale muito a pena.



Poema do Menino Jesus

Num meio-dia de fim de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu tudo era falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque nem era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E que nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o Sol
E desceu no primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar para o chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que ele as criou, do que duvido." -
"Ele diz por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres."
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.


Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural.
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é por que ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontado.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do Sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos dos muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.


Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)


 

15 comentários:

  1. Tocou-me profundamente e particularmente a última estrofe, porque a sinto na carne (de entre outros, este, escrevinhado ontem: http://lindaporcaoucheirodeestrume.blogspot.pt/2014/12/e-estava-um-sol-tao-bonito.html)
    Obrigada, Uvinha.
    Um Natal bonito e tudo bom e saboroso para ti e para os teus, que tu mereces.
    Beijinhos

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    1. Um grande beijinho Linda. Merecemos todos ser felizes. Que as nossas partilhas diárias sejam sobretudo isso.
      Feliz Natal para ti e para os teus.
      E agora que somos vizinhas, a ver se vais lá a casa comer uma rabanada!
      Um grande abracinho da Uva.

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    2. Somos? :)
      Tu sabes coisas...
      E eu adoro rabanadas, portanto, prepara-te.

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    3. Também eu. São as minhas favoritos. De um dia para o outro. Frias. Nham.

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  2. Uva , o Natal é muito intenso, esta letra e música vai-lhe no encalço. Não me alongo em considerações sobre a época porque lido mal com tanta intensidade. Deixo aqui o desejo de que seja sempre uma data plena de boas recordações. Feliz Natal com tudo aquilo a que se tem direito. Hoje também deixo beijinhos.

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    1. Lidas mal com tanta intensidade? E não viste tu a estátua do nosso CR. Isso sim é intenso!
      Feliz Natal minha grande amiga desabafadora. Tudo de bom para ti e muitos beijos também.

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  3. Boa noite,
    recomendo o álbum de Maria Bethânia «Cânticos, Preces, Súplicas à Senhora dos Jardins do Céu» de 2003.
    Fica-se com o coração cheio de Paz.
    Beijinhos.
    Fernanda

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  4. Apenas: LIndo!
    Que tenhas um feliz Natal e não comas muitas rabanadas que aquilo, dizem, faz azia. Eu cá marcha tudo que já nem tenho vesícula. :)) Beijinho

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  5. Gosto! E também gosto da Uva franjolas! :)

    Beijos Natalícios! :)

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  6. Não me canso de ouvir: está no meu ipod e já o "postei" várias vezes no blogue. O poema é brutal e a voz desta mulher arrepia-me as veias da alma. Oiço-a há 41 anos e nunca me cansei :-)

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    1. De tudo retive o que as mulheres retém (sou uma mulher comum, enfim) e que foi:
      41 anos?????
      Ninguém diria.
      Daqui pareces muito bem conservada...
      Já eu... eu estou uma Uva Passa.

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  7. conservo-me em alcool ahahahahahah neste momento com um copo de vinho tinto na mão a ler o teu blogue.

    sim, tenho 41 anos e já ouvia MB na barriga da minha mãe :-) ficou para sempre :-)

    :-) Beijo

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    1. Sim, sim, para aguentares o meu blog, só à força de muito vinho. Hahahahahahaha
      Bem vinda ao meu delírio.
      Cuidado! A Uva às vezes derrapa para a ficção...

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  8. ahahahahahahahahah passa pela minha tasca :-) e obrigada por escreveres neste blogue. fico a dever-te esta e uma garrafa de vinho: dar-te-ei vinto tinto: «herdade de grous» do alentejo do meu coração ;-)

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    1. Tens uma tasca? Pronto. Então já não te largo.
      Ainda para mais tens o Alentejo no coração... ai ai ai sou uma Uva tao sensível...
      Vou passar lá. A ver o que a baixinha armou...

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