15 de novembro de 2016

DA ARTE DA DOÇURA

A vida era tão mais doce se doce fosse a vida.
Ontem falava com um amigo de longa data, daqueles que conhecemos aos treze, e que por qualquer milagre da amizade, esse sentimento tão doce, mantemos ainda por perto.
Zangou-se com os irmãos por conta de ideias desirmanadas.
Coisas de família, como se família fossem coisas, e as coisas mais importantes que a família.
Eu, que cá por coisas de família, também tenho coisas com a família, sei bem o amargo que é.
A certa altura da vida percebi que ter as pessoas é mais importante do que ter coisas, e que a maior parte das guerras (da família) são feitas numa arena em que o que se joga é o poder pelas coisas que nada interessam para as famílias.
Depois, quando já não podia mais calar-me, fui deixando pistas de mim, e do que sentia sobre tudo isto, este amargo, e lembro-me de ter aqui escrito, com muitas lágrimas nos olhos, que, as voltas que a vida dá, me deram uma  volta à vida.

Chegou o momento de regressar aquele tempo.
Era um tempo maravilhoso.
O mel não é, nem nunca foi, mais importante que as abelhas.







Honeycomb sculpture made by bees TOMAS LIBERTINY
http://tomaslibertiny.com/

14 de novembro de 2016

DOS AMASSOS DA VIDA

Ninguém é perfeito.
Quando até a fabulosa Kim Kardashian tem a pele cheia de psoríase, quando o povo escolhido foi afinal escolhido duas vezes, uma para se salvar e outra para morrer, quando até Deus tem defeitos, sobretudo quando depois de escolher os judeus como favoritos decidiu mandar o seu Filho escolher outros favoritos (os cristãos), e depois ainda falou ao ouvido de Maomé a dizer-lhe: isto agora é convosco maometanos, vendendo três vezes a mesma casa (Jerusalém) como se fosse um falacioso vendedor imobiliário, podemos acreditar que não há ninguém perfeito.

Eu, que estou longe de ser perfeita, que apesar de ser alta e ter uma farta (mentira) cabeleira loira, mantenho as minhas cicatrizes intactas, queimaduras que me deformam a pele e me prometem um futuro com quatro queixos - é só deixar a gravidade fazer o que tem a fazer ao meu pescoço - sou, mesmo assim, capaz de fazer 4 coisas ao mesmo tempo e de todas ter orgulho.
Quem diz quatro diz três, claro, depende muito se duas delas forem falar ao telefone e apertar o atacador, ou mexer o açúcar do café e percorrer as parangonas do jornal.
Posso assegurar que o jornal fica bem lido e o café fica bem mexido, e isto há muita gente que não consegue fazer.

No outro dia, que foi hoje, tive uma violenta discussão, coisa muito séria, e a certa altura fui confrontada com uma opinião a meu respeito para a qual não estava preparada.
Ninguém está preparado para ouvir dizerem de nós o que passamos a vida a esconder dos outros.

- A menina tem muitos amassos da vida, e é por isso que quando lhe toco com mais veemência, grita, e defende-se fazendo fazendo fazendo, falando falando falando, trrrrrrr, parece um comboio sem freio, encarrila e descarrila sozinha sem deixar ninguém interromper. Não está preparada para o fracasso. O seu ego é frágil e não se aguenta.
Aguente-se!

Ninguém é perfeito.
E eu estou toda amassada.
Deixem-me a sós com o meu ego.
Precisamos muito de conversar.

12 de novembro de 2016

MAIS-OU-MENOS-ASSIM-ASSIM

É impressionante a quantidade de coisas que se fazem profissionalmente sem pensar na perfeição. A fórmula que está estabelecida no trabalho que se faz para os outros é uma fórmula muito aquém daquilo que sabemos realmente fazer. Sujeitamos continuamente as nossas tarefas à mediocridade, supondo que o outro não precisa de mais, ou que se basta com o mal menor. Ninguém parece ter aprendido que aquilo que se faz assim-assim tem um preço muito elevado, e que num futuro muito próximo, ou mesmo no presente, os principais prejudicados são exatamente aqueles que o fazem dessa forma, porque mais cedo ou mais tarde terão de se confrontar com aquilo que fizeram.
Se passei o que passei, foi por não ter sabido fazer as analogias certas, como as de igualar a minha profissão - e as tarefas que desenvolvo-, à ciência exata da medicina, à perfeição de uma operação ao coração. Foi por não conseguir perceber a tempo que, quando faço algo para o outro, o que me paga um trabalho, o que me confia uma tarefa, devo fazê-lo como se fosse para mim.
Em todas as situações laborais se podem encontrar analogias perfeitas para aquilo que fazemos mais-ou-menos-assim-assim, precisamente por não considerarmos que estamos a fazê-las para nós próprios.
A maioria das pessoas não consegue alcançar que aquele cirurgião que lhe salvou a perna da amputação, não pôde em circunstancia alguma, tratá-lo mais-ou-menos-assim-assim, quando se encontrava debruçado sobre a mesa de operações. Não pode estudar mais ou menos quando fazia o seu curso, observá-lo mais ou menos quando tentava perceber o problema, ou desinfectar-se assim-assim. Opera aquela perna como se fosse a sua e salva-a.
Não é natural encontrar tanta gente a trabalhar mais-ou-menos-assim-assim. A displicência, a desresponsabilização do trabalhador no seu local de trabalho é o que mina as relações entre colegas, e o que mina os resultados da empresa. O quero lá saber que isto não é meu, mesmo que o 'isto' seja verificar se não estará a comprar demasiado descafeínado para a quantidade que na realidade se consome, é estar a diminuir a sua importância naquela tarefa e a abrir caminho para que outros, mais interessados, se possam apoderar dela.
Comprar um ror de caixas de descafeínado que não se consomem no prazo da validade, é um disparate que nunca faria na sua própria casa, mas ainda assim fá-lo no seu emprego, porque não observou que as sobras das encomendas anteriores supriam as necessidades para mais dois meses, e gastou o dinheiro porque não era seu, ou porque não observou que aquela perna estava infetada, e deixou-a morrer, porque a perna não era sua.
Porque razão dividem as pessoas a vida privada da vida profissional?
Tudo o que se passa no nosso trabalho deve ter o nosso cunho pessoal, e esse cunho pessoal é tão somente fazer as coisas com o mesmo esmero como se as fizéssemos para nós.
Não é possível operar mais ou menos uma perna, ou deixar a ligação dos ossos mais-ou-menos-assim-assim. Poderemos pensar que abrir uma carcaça para lhe meter uma fatia de fiambre, quando estamos atrás de um balcão de pastelaria, não é o mesmo que abrir um coração para lhe meter um bypass quando estamos atrás de uma mesa de cirurgia, mas é.
Em última análise tudo o que fazemos no nosso trabalho, de uma forma ou de outra, servirá para salvar uma vida, um emprego, uma família. Não é possível salvar assim-assim.
Quando as pessoas que trabalham se aperceberem que ser bom, dignificar o seu emprego e a sua profissão, é tomar como suas todas as necessidades e excessos daquilo que faz para os outros, então sim, diria que a situação das falências ficaria 50% resolvida e que as relações no trabalham serviriam para salvar muita gente.

11 de novembro de 2016

DE LÁPIS AFIADO

A maior parte das vezes, especialmente desde que fiz os 40, nem me dou ao trabalho de discutir nada com ninguém.
Aprendi há pouco tempo que nas relações laborais nada é 'pessoal' e que as pessoas andam sempre stressadas, independentemente do dia da semana. Basta-lhes uma coisinha de nada para se lhes atear o pequeno fósforo que trazem em cima dos ombros. Por causa deste grande ensinamento, dei comigo a imaginar as pessoas assim mesmo, como fósforos, e no meio da minha angustia, que é muita, vi-me a esboçar um sorriso.
Então vamos a isto Uva, dá lá à manivela. O que vês agora?
Vejo os fósforos moles. Aqueles que raspamos, raspamos, raspamos mas que ficam com a cabeça esborrachada na lixa. É inútil. Não se incendeiam mas também não têm cabeça para nada. Vejo também os que andam todos acesos, cheios de fogo no rabo, mas fogo na cabeça que é bom, nada. É tudo fogo de vista, tu vês o fogo, mas é só faísca.
E depois vejo os que mais me irritam: aqueles que andam sempre em manada, que não conseguem arder sozinhos, que se metem a faiscar por todos os lados e incendeiam a caixa toda. 
Por exemplo: hoje de manhã, ainda mal abria os olhos, e já tinha um fósforo laboral a incendiar-me os ouvidos. Esteve para ali a arder ferozmente durante 5 segundos, que a malta anda sempre com o pavio curto, e apagou-se todo retorcido sem que eu tivesse percebido a ideia dele. 
E eu ali, com os olhos meio mortiços, completamente apagada, sem cabeça para riscar nada.
Assim não vamos lá.
Andam para trás e para diante, a acharem-se muito iluminados, mas estão todos queimados.

Tomei um decisão. 
Para sair deste inferno quente, de fósforos sempre prontos a incendiar-me a vida, decidi que seria melhor transformar-me, modificar-me, e sem dar muito nas vistas, tornar-me diferente na essência mas parecida na forma. 
Transformei-me num lápis. Um lápis pequenino, de cabeça vermelha, sempre afiado. 
Um fósforo com um novo penteado.
    
A partir de hoje, sempre que me aparecer à frente um fósforo desarvorado, pronto para me incendiar a cabeça, espeto-lhe com o bico na barriga.
E vai ser uma grande matança!










Otherworldly Pencil Sculptures by Jennifer Maestre
http://jennifermaestre.com/

10 de novembro de 2016

UM TEXTO IMPERDÍVEL SOBRE TRUMP

Não deixem de ler.
É muito interessante.


Trump y el momento populista
Por: Pablo Iglesias
Público.es, 9/11/2016
 

Ha ganado un fascista. Decirlo no es banalizar el fascismo. El fascismo no es un fenómeno exclusivamente italiano y alemán de los años 30; es una forma de construir lo político. Algunos politólogos españoles trataron de delimitar el fenómeno fuera de nuestras fronteras para evitar hablar de fascismo en España. En España sólo habrían sido fascistas los camisas viejas de la minúscula Falange joseantoniana. No es cierto. El fascismo en España se construyó con los materiales ideológicos disponibles para un proyecto de masas; el catolicismo más reaccionario. Lo que algunos llamaron nacional-catolicismo es la versión española del fascismo. Y fascismo ha habido en muchos países de Europa y de América con diferentes combinaciones discursivas de patrioterismo, xenofobia, reivindicación de un pasado nacional glorioso, religión, una fraseología anti-élites, chovinismo y ningún cuestionamiento de las relaciones de propiedad. Trump es un fascista viable en los EEUU; no hace el saludo romano ni luce esvásticas, pero ha sido apoyado explícitamente por fascistas inviables, desde el Ku Klux Klan hasta varias milicias armadas americanas.

DO FAZER

Das coisas que mais adoro, é fazer. Tenho este espírito redutor, ou pelo menos assim me dizia a minha avó quando me via a fazer disparates: 'a vida é para ser pensada, menina'.
Eu penso muito na vida mas só o suficiente para fazer a vida. Se a minha vida para hoje é escrever, então eu vou pensar para escrever bem. Escrever é fazer. Se eu não tiver disposta a escrever, então de pouco me serve a intelectualidade e as grandes epifanias.

Nunca fui menina de tratar a vida com pinças.
A aprendizagem que advém da consequência dos atos praticados só se aprende se praticarmos os atos uma e outra vez, verificando a forma mais correta para nós, a mais confortável e a que melhor se encaixa na nossa maneira de viver.
Praticar bem um ato, isto é, praticá-lo socialmente bem, pode ser uma angustia muito grande e uma grande tormenta. Era isso que a minha avó me dizia. Pratica os atos de forma a que não te envergonhem socialmente. Pensa a vida em sociedade. Não subas às árvores. Não és nenhum macaco.
A minha avó não sabia que isso que ela dizia é que era ser macaco.

Nunca quis aprender a vida através da experiência dos outros. O comportamento social é um carreiro muito apertado para mim. Quero a maior parte das vezes abrir os braços. Não tenho muito espaço para correr se tenho constantemente gente à minha frente a ditar-me a exata velocidade da minha corrida. Eu só quero que me saiam da frente e me deixem fazer.
Depois logo penso se fiz bem ou mal.



9 de novembro de 2016

EU NÃO ENTENDO NADA SOBRE AMERICANOS

A ilação do dia seguinte é além de tudo, perdida.
Perdida do seu contexto, feita de retalhos de opiniões diversas, também elas perdidas, que são lançadas de um computador para a arena dos leões que a única coisa que sabem fazer é abocanhar.
Quando, em setembro, os membros da reserva Sioux – Standing Rock, realizaram gritantes protestos contra a construção de um oleoduto em Dakota do Norte, construído pela petrolífera DAPL e da qual quer Trump quer Hillary são accionistas, a turba intelectual, a mesma que hoje, o dia seguinte, debita nas redes sociais grande tiradas filosófico-alienadas, indignava-se com a poupa amarela de Trump, mais do que com a possibilidade dos dois candidatos serem co-responsáveis pela destruição de mais um reduto natural, e um punhado de seres humanos, dos poucos que ainda não foram destruídos pela América.
E eu sei pouco de americanos.
A maioria dos que hoje se insurgem e metem as mãos à cabeça por uma vitória que nunca conseguirão perceber, não sabem nada sobre as artimanhas de Hillary nos anos 90 que levaram à desregulação da banca, ou a sua participação selecta na venda de armas para aqueles países que são afinal os que atingem a tiro todos os dias a inatingível América.
O homem que toda a vida se preparou para aquele nobilíssimo papel, cola-se, como o stencil numa parede, aos ideais do The Crusader, a publicação do mais antigo grupo racista que defende a supremacia branca nos Estados Unidos. 
E de resto, vir para a comunicação social com a cama do Freud para expor os traumas da coitadinha que perdeu as eleições para alguém que é no fundo a própria sombra, é só pobre.

Aqui no Uva Passa, onde há tanta variedade de fruta, é preciso arranjar mais uma cesta cheia de tomates para assistir ao massacre do povo americano, que morre apelidado de ignorante e inconsequente.
É que eu não percebo nada de americanos, mas neste teatro de guerra onde todos nos encontramos, os artistas não são propriamente o povo americano, diria mesmo que o povo nunca conhecerá os verdadeiros artista que movimentam as marionetas.

É que os olhos do povo, à custa de tanta areia, estão a morrer.
E não se opera a morte.

A INCRÍVEL HISTÓRIA DO AVO JOAQUIM

É uma história magnífica.
Certa noite, escura como breu, saía o avô da taberna, e como sempre, cantava. Dava-lhe para cantar às noites, não sei se para afogar as mágoas ou se por sair da taberna com as mágoas já afogadas. Tanto faz.
O caminho para casa fazia-se por uma vereda inclinada, e inclinado, para não fazer a desfeita à vereda, caminhava o avô, com um pé na vereda e outro no carreiro, deitando culpas injustas às pernas, que lhe pareciam de cumprimento distinto.
Naquele tempo de breu, não se podia cantar à noite na rua, mas o avô, que porventura esquecera a memória na taberna, cantava e cantava tão alto que acordou a chibaria.
Foi assim, nestes preparos, que os dois fiscais da vila, esses sim bastante coxos, lhe cobraram cinco tostões pela cantiga, mas como o avô não tinha um tostão inteiro, quanto mais um furado, prenderam-no, e a história não fica por aqui.

5 de novembro de 2016

Não sei como era

O que se fazia antigamente era enfiar pés de salsa por ali adentro e tudo se acabava.
Não sei se era a terra que por ali se entranhava, pútrida, agarrada às raízes também elas arrancadas à mãe, ou se era o veneno da planta que toda a humanidade usava para dar gosto à vida.
Não sei como era.
Não sei se eram as mães que na orvalhada alentejana saíam para a horta, como gatos, passando pelo corredor onde dormia o mestre, com cuidado, sem mostrar as unhas aduncas, ou se eram elas, as meninas, cheias de medo de ficar cristalizadas, sem avançar, com a vida ceifada com um filho nos braços, que saiam já desventradas, já libertas.
O mais difícil nisto tudo, visto que já não as posso salvar, é querer contar como era, como a minha avó me contou, é querer salvar as minhas memórias, como a minha avó salvou as dela, e já não me lembrar de nada.
Não sei como era.
A mim ninguém me salva.

4 de novembro de 2016

Da fragilidade

Gostava muito de ser sempre divertida, mas a vida não dá.
Gostava de ser sempre perfeita, aqui, debitando só as melhores palavras, as que não ofendem ninguém, aquelas que todos gostam muito de ouvir, as que conseguem atravessar toda e qualquer personalidade, para se colarem na perfeição a quem as lê.
Nunca serei capaz de ser aqui o foco que irradia por toda a casa, como quando era pequena e tinha todas as atenções sobre mim.
E nessa altura não era como sou hoje, complacente, paciente, capaz de me elevar para além de mim e calçar outros sapatos. Viajar para além do meu mundinho e sentar-me na pequena plateia que me vê.
Que vejo eu quando me vejo?

Aqui, como na vida, ninguém me perdoa o deslize dos maus dias, dos maus meses, da má vida.
E é verdade que já nada disto é como antes.
Vão-se encavalitando as desilusões umas nas outras, ora porque é um mau livro, ora porque não soube avaliar a consequência das minhas palavras, e tudo se afasta. Fazem-se texto velados sobre aspetos menos bons da minha conduta, mas eu, que não desgosto disso, dói-me.
É como se fosse aquela dor boa, que dá prazer, mas eu fico toda partida na mesma.
Ninguém quer saber das fragilidades dos outros, e eu sou toda frágil.

Gostava que ficasse aqui escrito que a minha única rebeldia, a única que me sobrou dos velhos tempos, quando era uma miúda e ninguém gostava de brincar comigo, é a absoluta necessidade que tenho de me dar aos outros.
A rebeldia é muito emocional.
Subi muitas árvores sozinha para contemplar os meninos lá em baixo. Nem eles se atreviam a subir e nem eu me atrevia a descer.
Às vezes, nos maus dias, saltava da árvore e caia mesmo em cima de uma qualquer brincadeira, e estragava tudo. Estragava-os a eles e a mim.
É o que faço aqui.

Os dias são quase todos maus e eu não ando divertida.
Busco em toda a parte os ecos de uma qualquer brincadeira, mas estou frágil.
Vou quedar-me na árvore.
E calçar os meus próprios sapatos.