A casa estava sempre cheia de gente.
O meu avô, homem de muitos amigos, sempre pronto a receber mais um, ou mesmo muitos, sempre disposto a abraçar, ou beijar, um qualquer desconhecido que lhe entrasse pelo quintal adentro, tinha destas coisas.
Armava grandes festas na Casa dos Pinheiros, as mais conhecidas de todas, ainda aquilo não tinha um muro em condições, e nem nada em condições, mas enchia-se à mesma de pessoas, ricas e pobres, finas e grossas, e as que eram finas às vezes ficavam grossas, e as grossas ficavam quase sempre que era uma finura.
Não era preciso mandar chamar ninguém, e nem ninguém se atrasava, e se alguém metia o pé na argola, lá ia o meu avô com o seu pezinho maroto até à rua de terra batida, para meter os dedos à boca e lançar um silvo daqueles que se ouviam na Apostiça.
Era comum vê-lo esbracejar. Não sei se era um problema que tinha nos braços, ou se era só uma forma engraçada de gritar, já que nunca o ouvi levantar a voz a não ser para cantar o fado da Mouraria.
E ai de quem não viesse ajudá-lo a pendurar o porco enorme que ele comprava todos os anos para dar de comer a tanta gente amiga. Lançava-lhes pragas horrendas, daquelas que terminavam com os castigados, pendurados nos pinheiros do quintal a cortar as pernadas mais afoitas.
Ai não vens? Então já sabes que para a semana tens ali um petisco dos bons.
E na verdade os pinheiros estavam mais limpos do que São Bento em dias de visita oficial, e não se dava conta de faltar alguém à festa.
E o meu avô era só um avô normal, não era cá capitão de nada de nem ocupava lugar no parlamento. Acontece que tinha uma maneira muito peculiar de tratar todos os amigos e toda a gente o adorava.
Para dar conta de tanta gente, especialmente no inverno, à falta de uma lareira, o meu avô mandou construir duas no salão da festa.
Apesar da caloraça que transpirava nas camisas, os amigos do meu avô, ora dançando ora bebendo, ora fazendo as duas coisas em simultãneo, frio era coisa que não sentiam, mas era preciso aquecer melhor a casa, muito húmida, sobretudo para o velhedo, que já não dançava e nem bebia, mas que tinha o seu direito a aquecer as partes.
Aquilo era coisa nunca vista. Duas chaminés a fomegar no meio de um pinhal, um porco pendurado no meio da sala, e os convivas, na ausência do bacalhau, emborcavam copos de vinho, e atiravam-se à carnavança alegres e com pouca religiosidade.
Nesse ano de 1982 não foi diferente.
A árvore de Natal, um pinheiro bebé desses que havia a rodos no quintal, encontrava-se ainda vivo e cheio de algodão, que era assim que a minha avó gostava de decorar a árvore.
Quando a meia-noite chegou, como chegava todos os anos perante os gritos esfuziantes de toda a turba de amigos do meu avô, todos se abraçavam e beijavam, homens com homens, mulheres com mulheres, faziam-se rodas de abraços, juntavam-se as cabeças ao meio, e aquilo era tudo recheio. Festejava-se o Natal como se festejava a lotaria, ou a pescaria, ou o regresso de uma garrafa de água-ardente, perdida pela serra de Monchique, ou em algum armário da dispensa.
Uva! Anda cá miúda! Vamos dar as boas vindas ao sacana do Pai Natal!
Corria para os seus braços, muito finos, encostava as minhas costas ao seu tronco barrigudo, e cá ao nosso jeito, eu muito pequena e ele muito marreco, 'passava-me a caçadeira para as mãos', encostava-me aquela coisa enorme ao ombro, apontava para a lua e TARUZ!!!!
Duas bordoadas no rabo do Pai Natal.
O Pai Natal da Casa dos Pinheiros nunca me trouxe grandes presentes, e nem pequenos.
As duas lareiras do grande salão enchiam-se sim de chouriças, febras e torradas, feitas com grandes fationas de pão enfiadas num garfo de cozinha.
Desconfio mesmo que o meu avô partilhou comigo todas as bordoadas que deu na vida e que demos juntos ao Pai Natal, para me ensinar que o importante não são os presentes, e muito menos os tiros, mas sim o que sentíamos por todos aqueles amigos.
Há lições que só aprendemos quando ficamos sem munições.
há memórias que não nos largam, e ainda bem! aconchegam-nos e confortam-nos em dias mais secos e arrepiados de consolo. fica aqui um abracinho!
ResponderEliminarPodes crer. Estas nunca vou esquecer. Era mesmo uma maravilha. Uma alegria.
EliminarAwwwwwwwwwwwwwwww.
ResponderEliminarNós ceávamos em família, as crianças faziam um espectáculo de variedades (teatro, música, poesia), abriamos os presentes (dos tios e avós) e iamos à missa do galo. Na manhã seguinte madrugávamos para ir ver o que o pai natal tinha deixado no sapatinho (os presentes dos pais). Assim de repente parece um aborrecimento de morte, mas não era (aliás, as férias de natal eram passadas a ensaiar o grande espectáculo, e já se sabe que muitos primos juntos nunca dão "coisa boa").
Essa parte foi depois. Deixámos completamente de fazer o Natal na Casa dos Pinheiros, porque o meu avô reformou-se e já não havia dinheiro para a festa grande.
EliminarMas nunca associei muito o Natal ao sapatinho e ainda hoje festejamos o Natal como se fosse festa grande. Com uma família mais pequena.
Ver presentes no sapatinho sim, mas numa altura em que já não acreditava no Pai Natal.
A minha filha agora tem um Natal assim.
Mais calminho, mas com os primos e bastante agradável.
Das boas recordações que nos vêm à memória todos os natais da nossa vida... O teu avô ensinou-te o espírito de natal como ninguém :) Abraço
ResponderEliminarO meu avô era muito fixe. Tenho muitas saudades dele. Nunca conheci ninguém com aquela capacidadde para fazer amigos.
EliminarEram grandes festarolas. Depois tudo acabou. As pessoas foram envelhecendo, os filhos pequenos foram criando as suas famílias e o meu avô era mesmo especial.
ResponderEliminarMas é bom teres tudo isso na tua memória, nas tuas vivências. Com certeza que te proporcionou formas diferentes de ver a época e um certo calo na vida.
ResponderEliminarNão duvides. É que não duvides mesmo.
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