Que o nosso país está feito em fanicos, já não é novidade para ninguém.
Que há ladrões em cada esquina, e em cada esquina um malandro, também não temos disso dúvidas.
Mas quando alguém nos diz que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) lhe perdeu a mãe, a coisa fica esdrúxula, o sobrolho encolhe-se, confina-se no meio da testa, o olhar assume uma expressão incrédula, e a boca abre-se num esgar pendurado de velha, muito ao jeito da que fez o Manel quando deu de caras com o primo Joaquim na cama com a sua Cidália.
Pior.
Esta é mesmo daquelas de pedir ajuda para meter os olhos para dentro.
O conselho que vos dou é que se sentem aí numa banqueta, acendam uma porra qualquer que dê para fumar, e peçam a alguém aí das vossas ralações que vos ampare e ajude - mais na queda do que na qualidade de testemunhas - na compreensão da história que estou prestes a contar.
Vamos a ela.
Lurdinha, moça dos seus oitenta e muitos, pesada que só ela, levantou-se às cegas no meio da madrugada para mudar a água às azeitonas.
Teve azar, coitadita. Não bastava já a idade tolher-lhe a fraca musculatura, e agora também o tapete a pregar-lhe esta partida.
Da laje fria do corredor, foi direitinha para o hospital.
Coisa feia, como está bom de ver, que um pé mirrado, e mesmo que não fosse, já não tem saúde para aguentar com tanta arroba de peso em cima.
A convalescença de Lurdinha, do ponto de vista familiar, iria doer muito mais do que um pé cheio de ferros. Lurdinha acamada, sem apoio domiciliário disponível, haveria de pesar mais à filha do que três alqueires de favas em cima duma burra velha.
Ai Doutora, não pode ser! Já viu o peso da minha mãe? E eu lá posso deixar de trabalhar?
O SNS é mau mas também não é líder de nenhum gang.
Albarda-se o burro à vontade do freguês, a Lurdinha é pobre, o SNS também, tornam-se amigos e a Lurdinha zarpa para um Centro de Recuperação ali numa encosta luminosa para os lados da Ericeira.
Ui! Coisa fina, tudo novo, parece mesmo um hotel.
Lurdinha nas sete quintas, não fosse o pé escafiado, estava melhor ali do que em casa, a falar para o passarinho.
Problemas! Lurdinha, moça dos seus oitenta e muitos, pesada que só ela, começou a inchar, diz que de retenção de líquidos. Trouxa ensacada, mala aviada, cama desocupada e siga para o hospital.
Tinóni, tinóni, chega a Lurdinha ao hospital e toca de esvaziar a Lurdinha inchada como um balão. A coisa não é assim tão simples como dar uma passa, não, e a Lurdinha vê-se obrigada a passar 2 dias em esvaziamentos.
Ora, dois dias em esvaziamentos e demais tratamentos, vai totalmente contra as regras do Centro de Recuperação, e diz a clausula 10º do Regulamento e o restante regimento, que quem vai ao mar perde o lugar.
Estou sim? É a filha da Lurdinha? É só para lhe dizer que a sua mãe já está vazia e vai ter alta. Está pronta para ir para casa.
Para casa? Mas se tem o pé todo escafiado, se está em tratamentos nas sete quintas, e ainda pesa três arrobas, ó por favor, resolvam-me a situação! Para casa é que não!
Nisto, a Lurdinha que não nasceu naquelas bandas, e foi pena, foi recambiada por quem trata dessas coisas, para outro hospital mais perto da residência.
A filha da Lurdinha, avisada que foi da transferência da mãe para um hospital perto de casa, foi visitá-la, na esperança de a levarem novamente para as sete quintas.
A D.ª Lurdinha? Ai sim sim, está quarto 45.
Só que não. No quarto 45 estava uma Lurdinha, pois que estava, mas não era a nossa.
O SNS perdeu a Lurdinha.
A nossa Lurdinha, a velhinha do pé escafiado, afinal apareceu nos registos do hospital, mas com a indicação de alta, só que ninguém sabia para onde tinha sido levada.
Olha que isto é uma história macabra, perderem assim a velhinha.
Olha que isto é uma história macabra, perderem assim a velhinha.
E assim esteve Lurdinha, desaparecida na bruma 3 dias e uma noite.
3 dias e uma noite?
Não tenho conhecimento de processos estarem tanto tempo desaparecidos no CITIUS.
Nisto, que a história já vai longa, lembrou-se uma amiga, já em desespero de causa, de ligar 'só por descargo de consciência' para as sete quintas da Ericeira, já a Interpol se espalhava por todos os aeroportos e fronteiras.
Ahhhh! Lá estava a Lurdinha, coitadinha, já muito mais magrinha, mas sem as suas cuecas. Nem o pijama era dela, pois se saira de mala aviada, é obvio que não tinha lá nada.
Claro que ninguém ligou para a filha da Lurdinha a informar que... para quê?
Larga-se a encomenda e siga para bingo!
Larga-se a encomenda e siga para bingo!
E o Centro de Recuperação na encosta luminosa para os lados da Ericeira?
Ui! Coisa fina, tudo novo, parece mesmo o Hotel Califórnia.
As "Lurdinha" desta vida que vão e vêm qual encomenda mal carimbada em erro constante de código postal, são uma constante na vida de um SNS moribundo e sem oxigénio no horizonte.
ResponderEliminarA narrativa, como sempre, com os requisitos necessários para textos mais palavrosos.
Bom fim de semana, Uva!
A Lurdinha é uma bela encomenda, mas o SNS anda literalmente a dormir. Ou a ganir, não sei bem. Coitadinha.
EliminarLindo.
ResponderEliminarTão trágico que é cómico.
E, relatado por ti...
Gold :)
Foi trágico! Imagina que de repente não sabias para onde um maluco qualquer com uma ambulância tinha levado as tua mãe...
EliminarRaptava-lhe a dele e fazia-a refém, até me devolver a minha!
EliminarTu tens cá uma imaginação. Eu por mim fazia já uma história disso. E tu? Ora experimenta lá.
EliminarDesafiada por ti, sou capaz de criar a história.
EliminarMas podes ter a certeza que a passava à prática no mesmo dia em que me roubassem a mãe.
Pah...
ResponderEliminar(serei muito má pessoa por ter dado uma gargalhada?)
Não! É uma historia trágico-comica. Acabou bem. Mas foi um susto!
EliminarOh Uva.. Isto és tu a reinar não és? Não foi verdade, ora não?
ResponderEliminarNop! Verdadinha! Família.
EliminarInacreditável.
EliminarDá vontade de rir mas não tem graça nenhuma! Após um parto de 2 dias, 5 dias de incerteza quanto ao estado de saúde dele, se vive, se morre, o que tem que ninguém consegue saber. Depois de o ter tido apenas 6 horas nos braços,após o nascimento, recambiado para Santa Maria, tinha macaquito 5 dias e por não haver ninguém para lhe fazer um electroencefalograma em Sta Maria, vai macaquito para a Estefânia para o tal exame. Os papás vão no carro porque na ambulância só o bebé. Ok, vamos de táxi para não nos perdermos, chegamos à Estefânia e ninguém sabe do nosso bebé. Ninguém!! O meu coração parou durante as duas horas que levei a encontrá-lo, na sala de exames, quer dizer no corredor da sala de exames onde o reconheci pelo choro. Dá vontade de rir agora, ou não!
ResponderEliminarNão me espanta que percam a Lurdinha, entre tanta burocracia, se me perderam o bebé na viagem de 10 minutos entre dois hospitais.
Be, rir não é mesmo o que me apetece fazer ao 'ouvir' a tua experiência. Tu tens uma capacidade imensa para enfrentar essa tua vida e a de macaquito. Foste feita para ele. Ele tem muita sorte de te ter a ti como mãe.
EliminarTu és uma boa contadora de histórias... E inventora, também... Ora, isto lá podia ter acontecido, na verdade? Com o nosso sistema super hiper organizado?
ResponderEliminar;) ;) Um beijo Uva, um bom fim de semana!
Foi a mais pura das verdades. O Hospital que perdeu a Lurdinha foi o Beatriz Ângelo. Registaram duas senhoras com o mesmo nome, e sem dizer nada à família deram alta à Lurdinha e mandaram-na de volta para a Ericeira. Esqueceram-se foi de avisar a filha. O que se terá passado 3 dias na Ericeira não sabemos, só sabemos que quando lá chegou a filha, a senhora estava sem cuecas e com um pijama de outra pessoa, há 3 dias, feliz e contente, a fazer a sua fisioterapia. Nem para avisar a filha que a senhora estava sem nada de roupa, escova de dentes e essas coisas do mundo moderno, conseguiram discernir...
Eliminarfiquei a pensar se a Lurdinha fazia o mesmo à filha quando ela era pequena e pedia ao SNS que resolvesse...
ResponderEliminarTétisq, sim. Compreendo essa parte da realidade. Mas o caso é que Lurdinha (que vive com a filha desde que se separou do marido, vai para 40 anos) partiu o pé e necessitou de fisioterapia e tratamentos especializados num Centro de Recuperação. Se não necessitasse, o SNS não a mandava para lá.
EliminarApoio domiciliário + fisioterapeuta em casa, é assim, em modo particular, super caro, e não havia vagas para o prestar na zona de residência de Lurdinha. A filha da Lurdinha é empregada de limpeza, o marido é taxista. Não podiam ficar sem trabalhar e além disso a filha não pode fazer higiene à mãe de 90 quilos sem ajuda.
O SNS e o Estado Providência existe para dar respostas. O caso da Lurdinha não é um caso de abandono familiar. Há casos desses, infelizmente, mas não foi este.
Abraço.
Que tristeza!!
ResponderEliminarEsta foi comigo: entrei de urgência com indícios de avc num grande hospital da capital, levaram-me a fazer uma tac e análises e disseram à minha amiga para ficar na sala de espera até eu voltar. Passado 2 horas andavam a gritar o meu nome na sala de espera, a minha amiga ao perguntar o que se passava responderam: não sabemos da Sra sua amiga, ela está aqui ou já se foi embora? Pois bem, eu estava num corredor qualquer sem conseguir falar ou me mexer à espera que me levasse a fazer exames.
Alguém se tinha esquecido ali de mim, esqueceram-se também que eu estava lúcida.
Demoraram algum tempo até me encontrarem e o resultado não foi bonito quando eu recuperei os movimentos!
Bem, que descoordenação. Os nossos hospitais seriam tão, mas tão diferentes se tivessem pessoas suficientes para trabalhar, ao invés desta estúpida austeridade que sobrecarrega profissionais e desumaniza as instituições.
EliminarA culpa é de quem gere com sovinice estes espaços que deveriam ser apetrechados com o que há de melhor na sociedade. São vidas. Não são números.
Se tivesse noção da quantidade de Lurdinhas que são deixadas no hospital porque 'para casa é que não!' percebia que essa é que é a parte trágica da história. Porque por cada Lurdinhas que tem alta clínica e fica a ocupar uma cama no hospital, há uma Lurdinhas que tem de ficar no serviço de urgência à espera de vagas. E os filhos que deixam as Lurdinhas no hospital depois da alta clínica são sempre os mesmos que reclamam quando as Lurdinhas têm de ficar na urgência por falta de vagas. 'Pergunto-me muitas vezes se as Lurdinhas também disseram aos médicos 'para casa é que não' quando as suas mães tiveram de recuperar de alguma doença e não precisavam de hospitalização. Pergubto-me muitas vezes se deixaram os filhos que agora se recusam a leva-los para casa no hospital. Perdeu-se a noção de família e a responsabilidade de cuidar dos seus. É triste.
ResponderEliminarSou Assistente Social. Tenho plena noção dos problemas sociais relacionados com a 3ª idade nos hospitais. Trabalhei com essa população 5 anos, a articular com lares e com apoios domiciliários. Há situações gritantes de abandono, de culpa e traumas de infância, velhos maus, mães castradoras que nunca foram mães e que se vêem abandonadas pelos filhos, e outros casos em que os filhos infelizmente não têm condições para tratar deles, quanto mais dos pais velhotes, acamados.
EliminarÉ um horror. É de sair do hospital a chorar todos os dias, tal é o drama de algumas pessoas.
Esta situação vai agudizar-se tremendamente num futuro próximo, e sabes porquê? Porque as mães-carreiristas empregadas de patrões que assumem uma política de terra queimada relativamente à maternidade, têm os filhos cada vez mais tarde e quando forem velhas, os filhos ainda nem sequer saíram de casa para arranjar emprego. Aí sim, vais ver o que são velhos nos hospitais.
Um episódio trágico-cómico que em esmiuçando bem a coisa há mais por aí do que imaginamos. Arrisco a dizer que para muitos filhos a situação do desaparecimento seria ouro sobre azul.
ResponderEliminarMas tadita da Lurdinha, nem umas cuecas?? :))