13 de maio de 2016

Da igualdade

Não sei o que se passou comigo na infância, mas culpo-a de tudo o quanto sou.

Cresci no meio de uma família que não tinha [quase] nada, além de uma enorme alegria. Bebiam e fumavam, dançavam na rua, e em todo o lado, numa grande algarviada. Cantávamos todos, as modas tristes daquela terra, e ainda hoje não posso pensar nas cantorias, que fico logo com as lágrimas nos olhos.
Aquele núcleo de pessoas que me criou, a mim e às minhas primas, teve a capacidade de nos dar tudo o que lhes foi negado. Se apenas uma conseguiu ir calçada quando pisou pela primeira vez o pequenino pátio da escola primária, todas nós, as gaiatas, conseguimos ter pelo menos isso. E era uma grande alegria, pisar o pátio da escola primária com uns sapatinhos nos pés.
Apesar de todos os reveses da vida, que a vida ao contrário do tempo não anda sempre para a frente, a família, puxando daqui, empurrando dali, lá foi trôpega, mas sempre cantando, lutando pela Igualdade.

A marca que me deixou essa luta, fez de mim quem sou, e fez afastar de mim quem não sou, nem nunca me permitiria ser.
Fomos criadas na alegria de conseguir, de conquistar, hoje um par de sapatos, amanhã um futuro melhor, dando valor ao valor de conseguir alcançar, independentemente da enorme diferença que os outros viam em nós, que os outros queriam de nós. Por termos conseguido igualar a nossa família, e em muitos, muitíssimos aspectos, de termos conseguido ultrapassar as diferenças que nos afastaram sempre dos outros, é que hoje em dia não sou capaz de aceitar que haja alguém, muitíssimo mais infeliz do que eu, filho de uma família que nunca soube dar valor aos valores da outra gente, que nunca cantou de alegria por ter finalmente um par de sapatos, me subjugue, me menospreze, me afaste e me divida - como se eu fosse uma espécie de casta - de outras pessoas que diferentes, são iguais a mim.

É no fundo um grito que dou, que sinto e não minto, que tudo farei para me salvar, para me diferenciar, para me afastar de quem se julga na soberba, no preconceito, na minoridade de pensamento, de julgar e condenar os outros, pelas suas competências bancárias, familiares, educativas, formativas ou profissionais, criando fossos invisíveis e ridículos, para reinar, baseado em complexos de inferioridade do passado que todos carregamos como fardos.

Não sou inferior.
E a mim não me olharás jamais lá do alto.
O meu par de sapatos já calcorreou muita terra, muita pobreza.
Estão duros como calos.
São fortes como o aço.

17 comentários:

  1. Há, de facto, alturas na nossa vida que esta coisa da soberba dos outros que se sentem superiores nos pesa um bocadinho mais e às vezes não é fácil de ultrapassar mas está tudo dito aqui, neste post. Às vezes olho para o meu filho, que aos olhos dos seres iluminados que cirandaram na minha vida, tinha tudo para andar de braço dado com o insucesso, e lá está ele, no primeiro ano da faculdade, a levar a sério o que lhe ensinei sobre não se deixar afectar por cocós engomados, como carinhosamente chamamos a essas pessoas fantásticas na arte da superioridade. O meu pai chama-lhes pessoas marca merda!

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    1. Tanto, mas tanto para dizer sobre o teu comentário Sal, que até se me vêm as lágrimas aozólhos.

      Não posso, não posso. Infelizmente.

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    2. :) ai tu não faças uma coisa dessas que ainda ne ponho para aqui a fungar também. Eu já havia sentido na pele mas nunca me tinha passado pela cabeça que houvesse mesmo pessoas que achavam que o meu filho, por ser meu filho, uma pessoa que conta tostões, não havia de ter direito a mais do que aquilo que eu também já tive a mais do que os meus pais, que também souberam já tarde o que eram uns sapatos. Só que o dinheiro não compra cérebros. Às vezes ainda tenho dificuldade em sorrir e acenar quando oiço certas coisinhas de certas pessoas dessa tal marca : merda. Dava pano para mangas dava...

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    3. O dinheiro não compra cérebros nem humanidade.

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  2. Que post tão bom, Uva...

    (De costas direitas. Sempre.)

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  3. Como sempre, maravilhoso Uva.
    sal, cocós engomados é uma expressão que não esqueço mais :)

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    1. É para nunca esquecer as minhas origens e a humildade que devo a todos.
      Cocós engomados há muitos, mas não me passam por cima porque simplesmente a merda não tem pernas.

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    2. Mãe Sabichona :) rir e cantar e dançar em qualquer lado, como as pessoas da Uva, tem sido o meu melhor remédio. Que nunca se perca o sentido de humor.

      Ahahah Uva, essa coisa da merda não ter pernas ahahahaaha são cocós, engomados e ainda por cima pernetas. Como a outra (com o maior dos respeitos, mesmo, é só uma graça) coitada, não lhe bastava ser ferida, ainda tinha um calo.

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  4. [Levanto-me e aplaudo]
    não por me rever em tudo, mas em algo e por ter sido ensinado a respeitar e saber ver o próximo, sem superioridades, cada um é como cada qual, mas sempre com respeito. que nunca olhes para cima (que não seja para admirar as belas árvores que te rodeiam ;))

    bom fim-de-semana

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    1. Misha, aplaudo-te eu também por teres guardado em ti os valores que mais alto se levantam.

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    2. Grato pelas simpáticas palavras,

      Esqueci-me de dizer que faço questão de o passar à pequena e é um orgulho ver certas atitudes.

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  5. Aplauso por ser assim, diferente no modo de estar na vida, de pé! Apetece-me deixar um abraço - posso? Gosto de gente guerreira - continue igual por muitos e bons anos...

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  6. A minha filha hoje disse-me "há pessoas que andam sempre com a mesma roupa, não têm outra, nem muito para comer. São esses os pobres?" Respondi-lhe que não, que pobres são os que não têm ninguém para gostar e ninguém que goste deles. Acho que não percebeu, com o tempo vai chegar lá.
    Adorei o post.

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  7. ~~~
    A maior parte dos países evoluídos valorizam muito quem venceu na vida
    a partir do zero, são os «self made men/women».
    Por cá ainda temos muitos portugueses pobrezinhos de espírito...

    A maior força e sorte nesse louvável afã por se valorizar...

    É preciso termos um bom fim de semana, apesar deste Maio molhado.

    ~~~ Um grande abraço amigo.~~~
    ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

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  8. Hoje sinto pena das pessoas que se julgam superiores aos outros, (já me chocou e humilhou), hoje não ligo, ignoro. Sou mais feliz assim. Bonito texto, Uva.

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