Situada no início da Rua das Pretas, a Tabacaria Lelo era a casa e o local de trabalho de Olinda, havia mais de 40 anos.
Da porta da velha Tabacaria, bordejada por cascatas de jornais desportivos, presos a molas de escritório, podia ver-se ainda, contrastando, o fulgor e a modernidade da Av. da Liberdade.
Era uma loja antiga, o balcão corrido, que ocupava grande parte do pequeno espaço, estava forrado de jornais do dia e de revistas cor de rosa. No lado direito do balcão, encostado a um cabaz de Natal envolto num plástico amarelo transparente, estava um cartão com 3 números riscados, o 7, o 12 e o 23. O preço de cada aposta era simbólico, uma moeda de 1 euro habilitava o cliente apostador a ganhar um conjunto de bens mais ou menos essenciais, que incluíam entre outros, uma garrafa de Whisky novo Grants, uma garrafa de azeite Oliveira da Serra, uma caixa de 6 figos com nozes, uma lata de cavala A Portuguesa e ainda um pacote de amêndoas da Páscoa. Pelo tempo que ali se viu o cabaz, quase se poderia dizer que todos os brindes do seu interior tinham perdido a sua validade há mais de 3 anos.
Linda vendia de tudo, mas especialmente sonhos.
Por um lado, o sonho de um grande prémio dos que ali apostavam forte no Euromilhões, e por outro, o sonho das vidas vertidas nas páginas das revistas cor-de-rosa que lambia diariamente, e das quais sabia todos os pormenores.
A Tabacaria Lelo, toda ela enfeitada com livros velhos, cadernos de capa preta, conjuntos de copos de cristal, serviços de chá de 12 peças e faqueiros em inox da fábrica da Maia, possuía ainda um leve toque de antiquário, já que nas prateleiras empoeiradas dormitavam também diversas bonecas decadentes que encafuadas em caixas de papelão amarelado com janela plástica, faziam lembrar bibelots de casario nortenho. E tudo se amontoava sem organização, ora por cima do balcão, ora no chão, junto à janela.
Por detrás do balcão da loja pendia uma cortina castanha de tecido grosso que arrepanhada por um esticador ferrugento dava acesso direto à sala de estar do pequeno anexo, onde morava.
Era ali que descansava as agruras da vida, onde almoçava e jantava qualquer coisa “de jeito” e era ali que se entretinha a fazer as contas da Tabacaria, em cima de uma mesa de tampo redondo e pés de galo.
Não tinha grande conforto. A casa de banho era minúscula e o autoclismo ainda era dos antigos, que puxados por um cordel e sem força suficiente para lançar a água na sanita, a fazia carregar com baldes de água sempre que utilizava aquela divisão para trabalhos mais pesados.
Não haveria de sair dali tão cedo. A casa da Bobadela estava vazia, bem sabia, mas o que lá tinha a não ser três pés de laranjeira e um galinheiro vazio? Não, preferiu sempre Lisboa a um casarão de dois andares na zona saloia, mesmo que lhe entrasse um ou outro vagabundo loja adentro, desses que arrumavam carros na Avenida. Não lhe importava. Ali via-se acompanhada pelos clientes e pelo reboliço do centro.
Não tinha amigos e há muito que tinha desistido de os fazer. Apesar de viver pobremente naquele anexo sem janelas, algarviava, sempre que lhe aparecia algum cliente mais composto, que era mulher de grandes posses, casarios e haveres, e que só ali permanecia na tabacaria para cumprir uma promessa que tinha feito a N.ª Senhora da Conceição, por lhe ter salvo a velha cadelinha Ondina de um depravado que quase lhe matara a bichana, quando num acesso de raiva, o pobre animal lhe ferrara os dentes mesmo em cheio no cotovelo.
Olinda Estebeira não tinha vida, quer dizer, vida normal como as pessoas normais.
Solteirona, nunca ninguém a tinha visto da cintura para baixo, escondida que estava pelo velho balcão, o que vinha suscitando as mais diversas teorias sobre o que escondia Linda debaixo das saias. A teoria mais consensual era a de que tinha uma perna de pau, que desatarraxava todas as noites antes das rezas à santinha da sua devoção.
Havia uma outra, esta de cariz mais intimo, defendida pelo Sr. Joaquim do talho, e que fazia saber que a pobre senhora possuía umas rubicundas e avantajadas partes genitais que lhe faziam levantar o avental, mas esta teoria, de difícil imaginação, especialmente para as senhoras mais finas do Bairro, estava completamente posta de parte, e sempre que a conversa descambava na risota dos senhores daquela exemplar e séria rua de Lisboa, as senhoras, como que atacadas por um enxame de vespas, zuniam dali para fora, ruborizadas.
Linda, que vivia alheada de toda esta comenda, ali continuava com o xaile preto pelos ombros, fumando cigarros, baforando teorias para cima dos clientes como quem achava, e achava deveras, que o fumo da sua boca era poesia na cara dos simplórios transeuntes.
Mas este quadro trágico-cómico, que emoldurava Linda em frente ao balcão de gavetas, na sua Tabacaria de fim de século, não ficaria completo se nele não fosse pintado o seu elemento principal. Não que Linda não fosse um elemento já de si bastante completo, mas, tal como nos grandes quadros impressionistas, também na Tabacaria, ao lado da máquina registadora que Linda manejava à custa de uma pesada e barulhenta manivela lateral, dormitava a pequena Margarida.
Margarida, uma pequena Chihuahua de cor castanha, foi a única sobrevivente da última ninhada da cadela Ondina, e apesar de arreganhar constantemente os dentes aos clientes que ali passavam a fazer as suas compras ou apostas, era tudo o que Linda tinha na vida. Amava-a acima de tudo.
Era muito comum ver a estranha senhora falar com o pequeno animal como se de gente se tratasse, e sempre que algum cliente entrava na Tabacaria, tratava logo de fazer as devidas apresentações.
Naquela tarde, tendo entrado um cliente habitual, Linda destapou a pequena cadela, que sentindo o gesto da dona, se levantou de súbito nas patinhas sacudiu frenética as orelhas, ao mesmo tempo que com pequenos movimentos do focinho, farejou no ar o odor conhecido do cliente.
- Olá Margarida! Disse o homem aproximando-se. Quantos anos é que já tem a Margarida?
- Treze. Disse Linda orgulhosa.
- Treze aninhos! Já está numa idade provecta!
- Linda, rindo-se, solta: provecta, essa é boa!
A cadelinha voltou a deitar-se e poisou complacente a cabeça sobre as patinhas cruzadas.
Neste instante, entra uma senhora. Trás um chapéu de feltro verde com uma pena na fita escura.
Aproxima-se do balcão com um talão de apostas em riste. Vem reclamar um prémio.
Nisto, a cadelinha, como que pressentindo um amigo intimo, salta da cestinha e põe-se a abanar o rabo com o focinho esticado em direcção à senhora.
- Ela conheceu a doutora, por cima dos outros a olhar para a doutora. É muito esperta. Eu sou muito esperta, sou, sou! Eu sou uma menina, não sou velhinha!
Linda, passando a mão pela cabeça da cadela, assim dizia, distraída da clientela.
- Ai por favor, D. Olinda! A senhora se não se importa tire-me daqui a cadela! A bicha até mete medo!
Linda, enfurecida, fica de boca aberta, pasmada em frente à senhora, que continua com a mão esticada segurando o papel da aposta.
- Ora, ora, ora! Querem lá ver que temos conversa? Oiça cá: a minha Margarida não é nenhuma doutora, mas também não é nenhum animal raivoso. É uma menina muito educada, a mãe dela era uma senhora, percebeu? Uma senhora, a minha Ondina!
- Ai, desculpe, não leve a mal, mas a cadela até cheira mal! Ainda para mais, aqui em cima do balcão. É muito pouco higiénico, convenhamos!
Linda, arreganhando o cenho, cegando de raiva pelas palavras da senhora, agarrou no malho de ferro que usava para fazer peso nos jornais, e com toda a força, arremessou-o contra a cabeça da pobre senhora, que caiu no chão, inanimada.
- Aqui tem o seu prémio! Grita Linda.
- Já não se perde tudo, não se perde tudo!
N.A.
Conto baseado numa gravação, feita numa tabacaria da Rua das Pretas.
As passagens a bold são falas verdadeiras e foram propositadamente deixadas no texto, como mote para a história.
O local existe, Linda e Margarida existem, mas toda a história foi inventada.
Existe igualmente a Senhora doutora de quem sou especial admiradora, sobretudo depois de a conhecer no seu lado mais criativo, e sem a qual me era de todo impossível inventar esta história. Foi ela que fez a gravação que deu origem ao conto.
Resta-me apenas dizer, que a minha caríssima G. que acaba inanimada no chão da Tabacaria, sobreviveu. Ficou-lhe apenas um grande galo como recordação.
Dedico-lhe este conto.
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