Nunca me tinha apresentado à recruta.
Estou naquilo a que se chama
posto inicial da carreira, um soldado raso das multidões, das tropas fandangas, que se perfilam em batalhão, ou magotes, para participar na guerra.
Só que a minha guerra é outra.
Venho tarde ingressar as massas. Já não se usa a tropa.
O que agora
toda a gente pratica, e o cómico desta situação jaz aqui mesmo, nas palavras tombadas, é o individualismo. A solidão e o absurdo de fazermos todos o mesmo, mas em alturas diferentes. Na escolha do momento certo, jaz o pináculo da perfeição.
Eu entendo.
Não é fácil ser acusada de seguidismo e logo a seguir chamarem-nos ovelhas não-tresmalhadas. Para quem nasceu metido para dentro, como um furunculoso sinal, torna-se-lhe difícil aceitar as pequenas borbulhas que como eu, explodem para fora.
Somos todos ovelhas, mas agora as negras é que estão na moda.
Ahh a moda...
Escrevo zangada.
Na verdade há muito que me zanguei com isto, mas teimo. Teimo porque acredito que há algo em mim, na minha escrita, que vale a pena. Estes espaços de introspeção e partilha que aqui vos deixo são cada vez menos, e é talvez a falta de treino que me deixa mais cansada.
Perdi a mão para isto. Perdi a mão nisto.
E zango-me porque me aparecem aqui soldados perdidos que não me acompanham desde o inicio desta guerra, e que, naturalmente, me abatem a tiro porque não me (re)conhecem.
Nos últimos dias tenho escrito muitos posts para me defender de morrer às mãos de assassinos, que não publiquei
Matam-me à séria, todos os dias um pouco mais, porque me julgam uma recruta que só agora entrou num museu de guerra para ver os antigos canhões.
Desconhecem que aqui se partilha arte, que aqui se respira arte, que aqui mora uma apaixonada por arte.
O estranho seria exatamente o contrário. Não ir à guerra.
Disse ali em cima que nunca me tinha apresentado à recruta, mas talvez tenha falhado o juízo. A minha recruta é isto: a defesa perante o ataque escarninho dos anónimos da vanguarda, os que se têm em grande consideração perante os demais, que querem ter ideias individuais, muito únicas e exclusivas, mas que querem que todos concordem com elas.
As pessoas gostam de ser especiais, de ser pessoas únicas, trendy, gostam de não fazer parte dos que se metem à besta em inaugurações cheias de gente, mas ao mesmo tempo participam e partilham das mesmas atividades. E assim vão à praia do Ribeiro do Cavalo, ao Pingo Doce dos 50%, a concertos com milhares de pessoas das carradas de artistas que voltam todos os anos, a Fátima sempre no 13 de maio, para o Algarve na última quinzena de Julho, ao Louvre que não vai a lado nenhum, à Torre Eiffel que não cai amanhã, a maratonas a abarrotar de gente, correr com ténis personalizados todos da mesma marca, aos eventos da EDP, da PT, da RTP, tudo empresas que nos comem os olhos na sopa, a cursos de escrita criativa ou caminhadas contra o cancro organizadas pela Câmara Municipal de Lisboa - a maior sacana da atualidade -, ao Bairro Alto que se um dia cair lá de cima, cai com tudo em cima de nós, porque lá também
Mora Gente.
Não vão com as 15 mil, mas vão com os outros milhões.
É um contra-senso e é muito difícil perceber onde querem chegar.
E depois misturam tudo. Querem as obras e detestam as obras. Detestam o ensino público mas arrasam o particular. Detestam o Benfica mas só falam, vivem, comem daquilo, dias inteiros. Falam mal dos hospitais públicos, mas quanto a especialistas, pois.
Querem comer o bolo, e ter o bolo.
É cliché mas fica aqui bem: tudo junto escreve-se em separado, e separado escreve-se tudo junto.
É uma canseira esta vida de partilhas, de exposição, de constantemente nos colocarmos a jeito para o deboche de tanta gente.
Quem diria que umas sandálias brancas que me custaram 19 euros, pudessem gerar tanta raiva. É afinal isto que interessa? Umas sandálias brancas no final de umas pernas?
Talvez seja esta a cor da massa na cabeça destas pessoas. Talvez. Não posso jurar que haja verdadeiramente uma 'massa'.
Escrevo zangada.
Fico aqui muito espantada, com os olhos todos para fora, com a raiva e a revolta que uma ida minha a uma inauguração pode suscitar nas pessoas.
É que eu tenho aqui leitores de uma capacidade intelectual extraordinária.
Eu tenho aqui leitores exímios no tiro!
O que não tenho é pessoas que apesar da excecionalidade do seu pensamento possam ser toldadas pelas escolhas espatafurdias dos outros, mesmo que as suas sejam exatamente as mesmas só que em contextos diferentes.
Como é que podem denegrir seguidismos, ou mesmo seguir o que quer que seja, quando tudo o que seguem é ao mesmo tempo seguido por tantos milhares de pessoas, se tudo o que pensam já foi pensado por milhões de pessoas, se tudo o que fazem fazem-no exatamente da mesma maneira que todos?
Serão uma espécie de seguidores excecionais? Só seguem execões? A estrada que vai dar ao Algarve é só percorrida por vós, os excecionais?
Qual é a diferença em ir ao MAAT no dia da inauguração ou noutro dia qualquer? Não é o mesmíssimo princípio? Não vai lá toda a gente? Não irá lá toda a gente?
Julgam que é só a
manada de gnus que atravessa a savana?
Afinal a tropa não é aquela coisa de escolha individual não obrigatória.
Afinal há mais recrutas.
Afinal estamos todos na mesma guerra.
A única diferença é que só alguns dão o peito às balas.
E já o disse aqui no Uva e volto a dizer: prefiro mil vezes ser fuzilada contra uma parede, do que ser desertora da minha própria humanidade.