15 de novembro de 2016

DA ARTE DA DOÇURA

A vida era tão mais doce se doce fosse a vida.
Ontem falava com um amigo de longa data, daqueles que conhecemos aos treze, e que por qualquer milagre da amizade, esse sentimento tão doce, mantemos ainda por perto.
Zangou-se com os irmãos por conta de ideias desirmanadas.
Coisas de família, como se família fossem coisas, e as coisas mais importantes que a família.
Eu, que cá por coisas de família, também tenho coisas com a família, sei bem o amargo que é.
A certa altura da vida percebi que ter as pessoas é mais importante do que ter coisas, e que a maior parte das guerras (da família) são feitas numa arena em que o que se joga é o poder pelas coisas que nada interessam para as famílias.
Depois, quando já não podia mais calar-me, fui deixando pistas de mim, e do que sentia sobre tudo isto, este amargo, e lembro-me de ter aqui escrito, com muitas lágrimas nos olhos, que, as voltas que a vida dá, me deram uma  volta à vida.

Chegou o momento de regressar aquele tempo.
Era um tempo maravilhoso.
O mel não é, nem nunca foi, mais importante que as abelhas.







Honeycomb sculpture made by bees TOMAS LIBERTINY
http://tomaslibertiny.com/

14 de novembro de 2016

DOS AMASSOS DA VIDA

Ninguém é perfeito.
Quando até a fabulosa Kim Kardashian tem a pele cheia de psoríase, quando o povo escolhido foi afinal escolhido duas vezes, uma para se salvar e outra para morrer, quando até Deus tem defeitos, sobretudo quando depois de escolher os judeus como favoritos decidiu mandar o seu Filho escolher outros favoritos (os cristãos), e depois ainda falou ao ouvido de Maomé a dizer-lhe: isto agora é convosco maometanos, vendendo três vezes a mesma casa (Jerusalém) como se fosse um falacioso vendedor imobiliário, podemos acreditar que não há ninguém perfeito.

Eu, que estou longe de ser perfeita, que apesar de ser alta e ter uma farta (mentira) cabeleira loira, mantenho as minhas cicatrizes intactas, queimaduras que me deformam a pele e me prometem um futuro com quatro queixos - é só deixar a gravidade fazer o que tem a fazer ao meu pescoço - sou, mesmo assim, capaz de fazer 4 coisas ao mesmo tempo e de todas ter orgulho.
Quem diz quatro diz três, claro, depende muito se duas delas forem falar ao telefone e apertar o atacador, ou mexer o açúcar do café e percorrer as parangonas do jornal.
Posso assegurar que o jornal fica bem lido e o café fica bem mexido, e isto há muita gente que não consegue fazer.

No outro dia, que foi hoje, tive uma violenta discussão, coisa muito séria, e a certa altura fui confrontada com uma opinião a meu respeito para a qual não estava preparada.
Ninguém está preparado para ouvir dizerem de nós o que passamos a vida a esconder dos outros.

- A menina tem muitos amassos da vida, e é por isso que quando lhe toco com mais veemência, grita, e defende-se fazendo fazendo fazendo, falando falando falando, trrrrrrr, parece um comboio sem freio, encarrila e descarrila sozinha sem deixar ninguém interromper. Não está preparada para o fracasso. O seu ego é frágil e não se aguenta.
Aguente-se!

Ninguém é perfeito.
E eu estou toda amassada.
Deixem-me a sós com o meu ego.
Precisamos muito de conversar.

12 de novembro de 2016

MAIS-OU-MENOS-ASSIM-ASSIM

É impressionante a quantidade de coisas que se fazem profissionalmente sem pensar na perfeição. A fórmula que está estabelecida no trabalho que se faz para os outros é uma fórmula muito aquém daquilo que sabemos realmente fazer. Sujeitamos continuamente as nossas tarefas à mediocridade, supondo que o outro não precisa de mais, ou que se basta com o mal menor. Ninguém parece ter aprendido que aquilo que se faz assim-assim tem um preço muito elevado, e que num futuro muito próximo, ou mesmo no presente, os principais prejudicados são exatamente aqueles que o fazem dessa forma, porque mais cedo ou mais tarde terão de se confrontar com aquilo que fizeram.
Se passei o que passei, foi por não ter sabido fazer as analogias certas, como as de igualar a minha profissão - e as tarefas que desenvolvo-, à ciência exata da medicina, à perfeição de uma operação ao coração. Foi por não conseguir perceber a tempo que, quando faço algo para o outro, o que me paga um trabalho, o que me confia uma tarefa, devo fazê-lo como se fosse para mim.
Em todas as situações laborais se podem encontrar analogias perfeitas para aquilo que fazemos mais-ou-menos-assim-assim, precisamente por não considerarmos que estamos a fazê-las para nós próprios.
A maioria das pessoas não consegue alcançar que aquele cirurgião que lhe salvou a perna da amputação, não pôde em circunstancia alguma, tratá-lo mais-ou-menos-assim-assim, quando se encontrava debruçado sobre a mesa de operações. Não pode estudar mais ou menos quando fazia o seu curso, observá-lo mais ou menos quando tentava perceber o problema, ou desinfectar-se assim-assim. Opera aquela perna como se fosse a sua e salva-a.
Não é natural encontrar tanta gente a trabalhar mais-ou-menos-assim-assim. A displicência, a desresponsabilização do trabalhador no seu local de trabalho é o que mina as relações entre colegas, e o que mina os resultados da empresa. O quero lá saber que isto não é meu, mesmo que o 'isto' seja verificar se não estará a comprar demasiado descafeínado para a quantidade que na realidade se consome, é estar a diminuir a sua importância naquela tarefa e a abrir caminho para que outros, mais interessados, se possam apoderar dela.
Comprar um ror de caixas de descafeínado que não se consomem no prazo da validade, é um disparate que nunca faria na sua própria casa, mas ainda assim fá-lo no seu emprego, porque não observou que as sobras das encomendas anteriores supriam as necessidades para mais dois meses, e gastou o dinheiro porque não era seu, ou porque não observou que aquela perna estava infetada, e deixou-a morrer, porque a perna não era sua.
Porque razão dividem as pessoas a vida privada da vida profissional?
Tudo o que se passa no nosso trabalho deve ter o nosso cunho pessoal, e esse cunho pessoal é tão somente fazer as coisas com o mesmo esmero como se as fizéssemos para nós.
Não é possível operar mais ou menos uma perna, ou deixar a ligação dos ossos mais-ou-menos-assim-assim. Poderemos pensar que abrir uma carcaça para lhe meter uma fatia de fiambre, quando estamos atrás de um balcão de pastelaria, não é o mesmo que abrir um coração para lhe meter um bypass quando estamos atrás de uma mesa de cirurgia, mas é.
Em última análise tudo o que fazemos no nosso trabalho, de uma forma ou de outra, servirá para salvar uma vida, um emprego, uma família. Não é possível salvar assim-assim.
Quando as pessoas que trabalham se aperceberem que ser bom, dignificar o seu emprego e a sua profissão, é tomar como suas todas as necessidades e excessos daquilo que faz para os outros, então sim, diria que a situação das falências ficaria 50% resolvida e que as relações no trabalham serviriam para salvar muita gente.

11 de novembro de 2016

DE LÁPIS AFIADO

A maior parte das vezes, especialmente desde que fiz os 40, nem me dou ao trabalho de discutir nada com ninguém.
Aprendi há pouco tempo que nas relações laborais nada é 'pessoal' e que as pessoas andam sempre stressadas, independentemente do dia da semana. Basta-lhes uma coisinha de nada para se lhes atear o pequeno fósforo que trazem em cima dos ombros. Por causa deste grande ensinamento, dei comigo a imaginar as pessoas assim mesmo, como fósforos, e no meio da minha angustia, que é muita, vi-me a esboçar um sorriso.
Então vamos a isto Uva, dá lá à manivela. O que vês agora?
Vejo os fósforos moles. Aqueles que raspamos, raspamos, raspamos mas que ficam com a cabeça esborrachada na lixa. É inútil. Não se incendeiam mas também não têm cabeça para nada. Vejo também os que andam todos acesos, cheios de fogo no rabo, mas fogo na cabeça que é bom, nada. É tudo fogo de vista, tu vês o fogo, mas é só faísca.
E depois vejo os que mais me irritam: aqueles que andam sempre em manada, que não conseguem arder sozinhos, que se metem a faiscar por todos os lados e incendeiam a caixa toda. 
Por exemplo: hoje de manhã, ainda mal abria os olhos, e já tinha um fósforo laboral a incendiar-me os ouvidos. Esteve para ali a arder ferozmente durante 5 segundos, que a malta anda sempre com o pavio curto, e apagou-se todo retorcido sem que eu tivesse percebido a ideia dele. 
E eu ali, com os olhos meio mortiços, completamente apagada, sem cabeça para riscar nada.
Assim não vamos lá.
Andam para trás e para diante, a acharem-se muito iluminados, mas estão todos queimados.

Tomei um decisão. 
Para sair deste inferno quente, de fósforos sempre prontos a incendiar-me a vida, decidi que seria melhor transformar-me, modificar-me, e sem dar muito nas vistas, tornar-me diferente na essência mas parecida na forma. 
Transformei-me num lápis. Um lápis pequenino, de cabeça vermelha, sempre afiado. 
Um fósforo com um novo penteado.
    
A partir de hoje, sempre que me aparecer à frente um fósforo desarvorado, pronto para me incendiar a cabeça, espeto-lhe com o bico na barriga.
E vai ser uma grande matança!










Otherworldly Pencil Sculptures by Jennifer Maestre
http://jennifermaestre.com/

10 de novembro de 2016

UM TEXTO IMPERDÍVEL SOBRE TRUMP

Não deixem de ler.
É muito interessante.


Trump y el momento populista
Por: Pablo Iglesias
Público.es, 9/11/2016
 

Ha ganado un fascista. Decirlo no es banalizar el fascismo. El fascismo no es un fenómeno exclusivamente italiano y alemán de los años 30; es una forma de construir lo político. Algunos politólogos españoles trataron de delimitar el fenómeno fuera de nuestras fronteras para evitar hablar de fascismo en España. En España sólo habrían sido fascistas los camisas viejas de la minúscula Falange joseantoniana. No es cierto. El fascismo en España se construyó con los materiales ideológicos disponibles para un proyecto de masas; el catolicismo más reaccionario. Lo que algunos llamaron nacional-catolicismo es la versión española del fascismo. Y fascismo ha habido en muchos países de Europa y de América con diferentes combinaciones discursivas de patrioterismo, xenofobia, reivindicación de un pasado nacional glorioso, religión, una fraseología anti-élites, chovinismo y ningún cuestionamiento de las relaciones de propiedad. Trump es un fascista viable en los EEUU; no hace el saludo romano ni luce esvásticas, pero ha sido apoyado explícitamente por fascistas inviables, desde el Ku Klux Klan hasta varias milicias armadas americanas.

DO FAZER

Das coisas que mais adoro, é fazer. Tenho este espírito redutor, ou pelo menos assim me dizia a minha avó quando me via a fazer disparates: 'a vida é para ser pensada, menina'.
Eu penso muito na vida mas só o suficiente para fazer a vida. Se a minha vida para hoje é escrever, então eu vou pensar para escrever bem. Escrever é fazer. Se eu não tiver disposta a escrever, então de pouco me serve a intelectualidade e as grandes epifanias.

Nunca fui menina de tratar a vida com pinças.
A aprendizagem que advém da consequência dos atos praticados só se aprende se praticarmos os atos uma e outra vez, verificando a forma mais correta para nós, a mais confortável e a que melhor se encaixa na nossa maneira de viver.
Praticar bem um ato, isto é, praticá-lo socialmente bem, pode ser uma angustia muito grande e uma grande tormenta. Era isso que a minha avó me dizia. Pratica os atos de forma a que não te envergonhem socialmente. Pensa a vida em sociedade. Não subas às árvores. Não és nenhum macaco.
A minha avó não sabia que isso que ela dizia é que era ser macaco.

Nunca quis aprender a vida através da experiência dos outros. O comportamento social é um carreiro muito apertado para mim. Quero a maior parte das vezes abrir os braços. Não tenho muito espaço para correr se tenho constantemente gente à minha frente a ditar-me a exata velocidade da minha corrida. Eu só quero que me saiam da frente e me deixem fazer.
Depois logo penso se fiz bem ou mal.



9 de novembro de 2016

EU NÃO ENTENDO NADA SOBRE AMERICANOS

A ilação do dia seguinte é além de tudo, perdida.
Perdida do seu contexto, feita de retalhos de opiniões diversas, também elas perdidas, que são lançadas de um computador para a arena dos leões que a única coisa que sabem fazer é abocanhar.
Quando, em setembro, os membros da reserva Sioux – Standing Rock, realizaram gritantes protestos contra a construção de um oleoduto em Dakota do Norte, construído pela petrolífera DAPL e da qual quer Trump quer Hillary são accionistas, a turba intelectual, a mesma que hoje, o dia seguinte, debita nas redes sociais grande tiradas filosófico-alienadas, indignava-se com a poupa amarela de Trump, mais do que com a possibilidade dos dois candidatos serem co-responsáveis pela destruição de mais um reduto natural, e um punhado de seres humanos, dos poucos que ainda não foram destruídos pela América.
E eu sei pouco de americanos.
A maioria dos que hoje se insurgem e metem as mãos à cabeça por uma vitória que nunca conseguirão perceber, não sabem nada sobre as artimanhas de Hillary nos anos 90 que levaram à desregulação da banca, ou a sua participação selecta na venda de armas para aqueles países que são afinal os que atingem a tiro todos os dias a inatingível América.
O homem que toda a vida se preparou para aquele nobilíssimo papel, cola-se, como o stencil numa parede, aos ideais do The Crusader, a publicação do mais antigo grupo racista que defende a supremacia branca nos Estados Unidos. 
E de resto, vir para a comunicação social com a cama do Freud para expor os traumas da coitadinha que perdeu as eleições para alguém que é no fundo a própria sombra, é só pobre.

Aqui no Uva Passa, onde há tanta variedade de fruta, é preciso arranjar mais uma cesta cheia de tomates para assistir ao massacre do povo americano, que morre apelidado de ignorante e inconsequente.
É que eu não percebo nada de americanos, mas neste teatro de guerra onde todos nos encontramos, os artistas não são propriamente o povo americano, diria mesmo que o povo nunca conhecerá os verdadeiros artista que movimentam as marionetas.

É que os olhos do povo, à custa de tanta areia, estão a morrer.
E não se opera a morte.

A INCRÍVEL HISTÓRIA DO AVO JOAQUIM

É uma história magnífica.
Certa noite, escura como breu, saía o avô da taberna, e como sempre, cantava. Dava-lhe para cantar às noites, não sei se para afogar as mágoas ou se por sair da taberna com as mágoas já afogadas. Tanto faz.
O caminho para casa fazia-se por uma vereda inclinada, e inclinado, para não fazer a desfeita à vereda, caminhava o avô, com um pé na vereda e outro no carreiro, deitando culpas injustas às pernas, que lhe pareciam de cumprimento distinto.
Naquele tempo de breu, não se podia cantar à noite na rua, mas o avô, que porventura esquecera a memória na taberna, cantava e cantava tão alto que acordou a chibaria.
Foi assim, nestes preparos, que os dois fiscais da vila, esses sim bastante coxos, lhe cobraram cinco tostões pela cantiga, mas como o avô não tinha um tostão inteiro, quanto mais um furado, prenderam-no, e a história não fica por aqui.

The world is a vampire




Vasco Gargalo
http://ilustragargalo.blogspot.pt/

5 de novembro de 2016

Não sei como era

O que se fazia antigamente era enfiar pés de salsa por ali adentro e tudo se acabava.
Não sei se era a terra que por ali se entranhava, pútrida, agarrada às raízes também elas arrancadas à mãe, ou se era o veneno da planta que toda a humanidade usava para dar gosto à vida.
Não sei como era.
Não sei se eram as mães que na orvalhada alentejana saíam para a horta, como gatos, passando pelo corredor onde dormia o mestre, com cuidado, sem mostrar as unhas aduncas, ou se eram elas, as meninas, cheias de medo de ficar cristalizadas, sem avançar, com a vida ceifada com um filho nos braços, que saiam já desventradas, já libertas.
O mais difícil nisto tudo, visto que já não as posso salvar, é querer contar como era, como a minha avó me contou, é querer salvar as minhas memórias, como a minha avó salvou as dela, e já não me lembrar de nada.
Não sei como era.
A mim ninguém me salva.

4 de novembro de 2016

Da fragilidade

Gostava muito de ser sempre divertida, mas a vida não dá.
Gostava de ser sempre perfeita, aqui, debitando só as melhores palavras, as que não ofendem ninguém, aquelas que todos gostam muito de ouvir, as que conseguem atravessar toda e qualquer personalidade, para se colarem na perfeição a quem as lê.
Nunca serei capaz de ser aqui o foco que irradia por toda a casa, como quando era pequena e tinha todas as atenções sobre mim.
E nessa altura não era como sou hoje, complacente, paciente, capaz de me elevar para além de mim e calçar outros sapatos. Viajar para além do meu mundinho e sentar-me na pequena plateia que me vê.
Que vejo eu quando me vejo?

Aqui, como na vida, ninguém me perdoa o deslize dos maus dias, dos maus meses, da má vida.
E é verdade que já nada disto é como antes.
Vão-se encavalitando as desilusões umas nas outras, ora porque é um mau livro, ora porque não soube avaliar a consequência das minhas palavras, e tudo se afasta. Fazem-se texto velados sobre aspetos menos bons da minha conduta, mas eu, que não desgosto disso, dói-me.
É como se fosse aquela dor boa, que dá prazer, mas eu fico toda partida na mesma.
Ninguém quer saber das fragilidades dos outros, e eu sou toda frágil.

Gostava que ficasse aqui escrito que a minha única rebeldia, a única que me sobrou dos velhos tempos, quando era uma miúda e ninguém gostava de brincar comigo, é a absoluta necessidade que tenho de me dar aos outros.
A rebeldia é muito emocional.
Subi muitas árvores sozinha para contemplar os meninos lá em baixo. Nem eles se atreviam a subir e nem eu me atrevia a descer.
Às vezes, nos maus dias, saltava da árvore e caia mesmo em cima de uma qualquer brincadeira, e estragava tudo. Estragava-os a eles e a mim.
É o que faço aqui.

Os dias são quase todos maus e eu não ando divertida.
Busco em toda a parte os ecos de uma qualquer brincadeira, mas estou frágil.
Vou quedar-me na árvore.
E calçar os meus próprios sapatos.

31 de outubro de 2016

Para me redimir daquilo lá do Pipoco

Porque resolvi publicitar hoje um livro que foi escrito por uma jornalista (e eu até percebo que muitas das 'bloggers' que hoje conhecemos são jornalista, e que isso pode estar a inquinar a opinião do Pipoco), resolvi falar aqui de um livro escrito por um Homem que não era jornalista. Foi um cientista e biólogo, um filósofo estudioso do comportamento animal e humano, um grande cirurgião, e foi também ele que introduziu em 1952 a clorpromazina, o primeiro neuroléptico usado no tratamento da esquizofrenia.
Não se ficando por aqui, foi o primeiro a escrever sobre os malfadados radicais livres, muito antes das bloggers do detox, e, cereja em cima do bolo, não recebeu nenhum dos Nobel da Academia.

O livro chama-se "O Elogio Da Fuga" e quem o escreveu foi o iluminado Henri Laborit.

Mas onde quero eu chegar?
Quero dizer (muito inquinada pela opinião de Laborit) que chegámos a um ponto tal que tudo o que fazemos para os outros, ou tudo o que os outros fazem para nós, isto é, tudo o que os jornalistas escrevem, tudo o que os bloggers publicam, as televisões passam, os escritores escrevem, os realizadores realizam, é humanamente insuportável.
Já que ninguém suporta nada, já que ninguém admite mais nada, da pura critica maldosa ao elogio velado da critica construtiva, precisamos de fugir, agora mais do que nunca, uns dos outros.
Dizia-me um amigo próximo que apesar de ser do partido do Governo, era afinal oposição a este Governo. Quão estranho pode isto ser à luz da ideologia de um Homem? Um apoiante fervoroso das ideias que ele próprio gizou, e apoiou, é ao mesmo tempo contra tudo o que seja colocar em práticas essas ideias.
A reflexão de Pipoco sobre o seu éden pessoal, colide com o facto de ter um canal aberto à discussão e à comunicação. As reflexões, também as artísticas, dos outros que gravitam em nosso redor, colidem com as nossas próprias reflexões.
Daí que muitos dos que eram antes ambiciosos produtores e consumidores finais de blogs, livros, filmes e arte, se vejam inconformados e incapazes de se adaptar. E fogem. Uns para dentro de si, mudos e imutáveis, enlouquecendo e suicidando-se, e outros, para dentro do que os outros têm dentro de si.
A arte ou a loucura.

É engraçado que mesmo desdenhando de tudo o que achamos ser o 'Inferno dos Outros', as suas reflexões e opiniões, o seu modo de estar e de viver, nos aproximemos cada dia mais desse inferno.
O Pipoco é capaz de ter razão. Devíamos ser capazes de viver apenas no nosso éden pessoal... mas e os outros?

"En tiempos como estos, la fuga es el único medio para mantenerse vivo y continuar soñando." (“Éloge de la fuite”, 1976)

Livros e mais livros


Da Teorema sai o segundo romance da autora Ana Margarida de Carvalho, que refere, ipsis verbis, ser um livro sobre alteridade, sobre a dificuldade em nos colocarmos na pele daquele que está em posição desfavorável, sobre a facilidade com que julgamos o outro com base na cor da pele, na aparência física e intelectual, na ascendência social – ou seja, julgamos o outro com base naquilo que somos. (in JL - Jornal de Letras)

Se o tema é este, só pode ser um bom livro.
É um dos temas que mais gosto de explorar, por ser o que mais sofre com conflitos e equívocos, sobretudo entre quem escreve e quem lê.
Se for tão bom como o primeiro, temos escritora!

Da vizinhança

Como é natural, uma blogger também tem vizinhos.
Dá-se o caso da Uva ter vizinhos muito metidos para dentro (de casa), e de ela própria viver muito saída para fora, o que nem sempre é propício a encontros, digamos que, tangentes.
As minhas vizinhas do lado, duas senhoras irmãs que se mudaram uns dia depois de mim, não dão sinal de vida desde agosto último, altura em que as encontrei no pátio, vinha eu com um carregamento do IKEA que só visto, e uma delas estava há mais 2 horas presa no nosso belíssimo elevador, um espécime raríssimo do século VIII.
Enfim, digo eu com um longo e complacente suspiro, eu sou uma boa pessoa, lá no fundo tenho a minha caridade a marinar em vinha d'alhos para estas ocasiões, mas deu-se a vicissitude de naquele dia ficar mais lixada por me ver obrigada a carregar todo um quarto escada acima, do que me encher de piedade da vizinha prisioneira.
Eu bem sei que poderia ter ficado ali a compadecer-me com a monstruosa situação, que é uma senhora sem telemóvel, estar presa dentro de um assustador elevador pendurado por arames algures num poço sem fim, mas não. A marinada ainda não estava no ponto e vendo que já havia solução à vista para a pobre senhora, tratei de meter pernas ao caminho e subir as escadas as quatro vezes que a velha me impôs, para carregar os meus próprios monstros para casa.

O karma é um grande camelo vingativo.

No passado sábado, quando regressámos à noite a casa, o sorumbático prédio onde vivemos parecia o Kremlin às 6 da manhã. Mas que barulheira vem a ser esta?
Um estranho sentimento apoderou-se de nós, porque no apartamento das nossas vizinhas a televisão estava tão alta que se ouvia a dois quarteirões.
Ai, tu queres ver que estão para ali as duas mortas, caídas em cima do comando da televisão?
Batemos à porta, e nada. Batemos furiosamente à porta, e nada. Fomos à volta pela varanda, e nada. Nada de nada no meio da grande dúvida que é ter as vizinhas mais caladinhas do prédio a fazer uma rave em casa com a televisão em altos berros.
Bom, assim como assim, dormir não conseguimos, então a única solução foi: polícia com eles.
Foi uma operação rápida e eficaz. O Senhor agente da autoridade, muito incumbido do seu poder de arrombamento da propriedade privada, entrou na casa das duas irmãs, naturalmente pela janela que a minha varanda lhe deu acesso, e logo verificou que na casa apenas a televisão mostrava sinais de vida. As duas irmãs catatuas, foram laurear as pevides, vejam só, e ali nos abandonaram presos numa casa de malucos, que era a nossa, sob um efeito muito parecido com as oferendas que os povos indígenas fazem aos deuses, debaixo de uma forte chuva de tambores.

Escusado será dizer que o senhor agente desligou prontamente a televisão no comando, saltou novamente pela janela, rabiscou umas coisas no seu caderninho Moleskine, e foi-se embora, deixando tudo calmo....

Mas o karma é um grande camelo vingativo.

Não só as vizinhas não voltaram, como a televisão se voltou a ligar passadas 2 horas - calculamos nós por estar ligada a um qualquer temporizador para afugentar ladrões (há muita gente que deixa as televisões ligadas para parecer que está sempre gente em casa).

E agora a minha vida é isto.
Estou a viver desde sábado à noite ao lado duma infernal discoteca, onde ao som explosivo da voz da Cristina Ferreira, onde os biblots do móvel da sala, de duas irmãs catatuas, dançam furiosamente nas prateleiras.

28 de outubro de 2016

Não sei como é com vocês

Mas eu estou completamente encantada!
A ML cresceu, deixou para trás a imberbe primária, e entrou na escola mais desejada, a escola que eu queria para os meus filhos quando ainda não tinha filhos.
Logo à partida, para quem conhece o sistema de ensino, sobretudo pela experiência de lá ter andado, pensa que sabe o que é mais ou menos possível fazer-se numa escola pública.
Pensa que sabe.
Na minha escola, faltei muitas vezes às aulas para fazer greve de alunos só para ter direito a sentar-me numa sanita, só para ter direito a uma porta fechada enquanto tratava das minhas necessidades, só para ter direito a uma sala que não tivesse pelo menos duas janelas partidas e um estore irremediavelmente estragado. Não tinha consciência de quem seria a culpa do estado daquelas salas, daqueles 'sanitários', daquela Associação de Estudantes. O 'sistema' era o bode expiatório para todos os males escolares, e para a grande fatia de professores que ali reinava, um vagal encolher de ombros enquanto acabavam o cigarro à porta da aula, bastava-lhes para justificar o dolce fare niente da direção, e a certeza de que a fazer-se alguma coisa ali, só se um mecenas despejasse nos buracos do pátio, um grande saco de notas.
Ainda hoje, quando entro na escola da ML, não sei bem que diferenças a separam de outros estabelecimentos de ensino, não sei se aquela escola recebe mais apoios, se arranjou alguma forma de ter mais receita, como é que gere o dinheiro que lhe está destinado no OE, como é que faz, e o que faz, para ser aquela escola. São os professores e uma direção excecional que a alavancam para ser aquilo que é hoje? São os alunos, também eles excecionais, filhos de pais excecionais, que transformam a escola num modelo de escola?
Não. Há também muito disto em várias escolas da cidade, há direções excecionais, há professores empenhados, há alunos muito bons, mas a mística, a mística é que é necessário perceber-se, especialmente pelas outras escolas potenciais de mística.
Para já uma alegria que se nota em tudo o que fazem. Cacifos para guardar tralhas que pesam nas costas; aulas de apoio ao estudo de matemática, português e inglês para alunos com dificuldades e pais inseguros; crianças que se deslocam para a cantina numa liberdade 'encapotada' mas que lhes fomenta a autonomia; uma atenção superior com os pais, envolvidos desde o primeiro dia na escola e diretamente com professores; mails da diretora a dar conta do que se passa com o aluno e o que pensam fazer para o ajudar a melhorar; a ementa da cantina até ao fim do ano letivo, num site da escola que é absolutamente completo, interativo e funcional; uma abertura e um trabalho conjunto, de grande mérito e inteligência, com todas as Universidades das proximidades; protocolos com diversos operadores da cidade, ora oferecendo as primeiras aulas de iniciação à vela, ora atividades tão interessantes como a escrita criativa, o xadrez, a guitarra, as artes plásticas, a esgrima, a patinagem, a multimédia ou o jornalismo, enfim um sem número de ideias com cabeça. Nada parece estar esquecido, da matemática ao hip hop; as crianças podem ter programação, electrónica, design, robótica, animação, entre outras, tudo envolvido diretamente com os pais, numa simbiose que parece que foi ali que nasceu o lema 'como ser uma boa Escola'.
Não, não é um colégio particular, nada disto envolve o meu pagamento, além  das refeições e das atividades extra-curiculares. O que pago pelas atividades da ML agora é exatamente o mesmo que pagava na primária: 90,00€. O espaço é semelhante, o número de funcionários igual, mas a diferença na oferta das atividades é gigantesca. É mesmo incomparável! Porquê?
O contacto com a escola é constante e por email? Já existia email o ano passado. Nunca recebi nenhum. Qual é afinal a diferença. Ordenados? Condições físicas da escola?
Não, que esta é bem mais velhinha, e a outra estava cheia de obras e mimimi.

Acho que é a entrega e o amor que se tem por aquilo que se faz, a motivação dos professores por uma direção competente e crente nas qualidades e nas potencialidades de cada um, e que em algumas escolas é trabalhado ao máximo, e em outras é deixado ao abandono.
É esta a mística. O enaltecimento da pessoa humana, do profissional.
É na motivação das pessoas que reside o segredo: exacerbando aquilo que são as qualidades humanas dos professores e de todos os intervenientes escolares, ao invés de exacerbar aquilo que são as falhas das condições materiais que têm de enfrentar.

E isso a escola da ML tem, e eu estou felicíssima por ela.

27 de outubro de 2016

Dos Lobos (Antunes)

É talvez a pessoa que conheço melhor no mundo e todavia quase não falamos. Para quê? São desnecessárias as palavras entre nós, passámos mais de vinte anos, acho eu, no mesmo quarto, num silencioso princípio de vasos comunicantes que até hoje se mantém. Para além do muito amor que raramente lhe manifestei tenho uma imensa admiração por ele e um orgulho sem limites. Herdou do nosso pai (herdaste do pai, sim, tem paciência) a honestidade, o carácter, a coragem e o horror à mentira. Desde criança foste sempre valente. Se assim à má fi la me ordenassem que dissesse duas características tuas respondia logo a valentia e o pudor, formas supremas da elegância. E isto desde que te conheço, tu que nasceste vinte meses depois de mim (o número vinte deu-lhe para me perseguir hoje) que era cobarde e despudorado e custou-me tanto ver-me livre dessa ganga nojenta, zangado de vergonha comigo. Foste sempre digno e discreto contigo mesmo e com os outros e bem sei, sem mo teres dito, as difi culdades e as dores que sofreste, a carne viva que escondes e eu vejo, a compaixão que não mostras e eu sinto. E a tua oculta e bondosa generosidade. O rigor também, a falta de complacência para com a ingratidão, a pulhice, os sentimentos rasteiros. Claro que tens defeitos: alguns divertem-me, outros enternecem-me, nenhum me incomoda, talvez por serem os defeitos das tuas qualidades da mesma maneira que um automóvel possui os travões adequados à potência do motor. Se fosse Deus não mudava grande coisa em ti: talvez trocasse um móvel de posição, alterasse uma jarra, substituísse um quadro. Na casa não mexia: agrada-me que seja como é. E depois claro que te foi dada uma inteligência superior e isso não vale a pena mencionar porque no meu caso não me serve de nada, ninguém é tão estúpido como um homem inteligente e muitas das asneiras que fi z conhece-las de ginjeira. Lembras-te da mãe - Tão inteligentes para umas coisas, tão estúpidos para outras mas eu canalizei tudo para a escrita, construí-me para isso e os teus interesses são mais variados que os meus. E no meio disto somos tão ingénuos ambos, sensíveis à lisonja, por vezes completamente parciais, cegos em relação aos amigos, de julgamento turvado quando os afectos se misturam nele. É curioso como, sendo diferentes, temos coisas idênticas. O pai não queria filhos, queria campeões de karaté. Conseguiu-os e o preço disso foi uma parte nossa amputada e uma sede de amor sem limites, em ti cuidadosamente escondida. A gaita é que eu sou desbocado e tu não, vivo nas nuvens e tu só às vezes, porque eu vivo nas nuvens e das nuvens e tu tens de confrontar-te com uma realidade imediata que te dá um peso específico maior que o meu e uma relação necessariamente pragmática com certos aspectos do quotidiano. Estou para aqui a escrever isto e a pensar na educação que recebemos, normativa, implacável, no limite da impiedade e da dureza. Quantas vezes nos revoltámos contra ela e, no entanto, que importante foi. Um pai que competia connosco e, mais tarde, te invejava. É terrível a relação do fi lho com o pai, julgando-se mutuamente numa ferocidade sem doçura. Nunca foi doce. Nem tolerante. Que egoísmo horrível naquele homem. E por baixo disso tudo uma vaidade em nós, ou antes uma vaidade nele dado imaginar (a imaginação não era o seu forte, nem o sentido de humor, nem a criatividade) que nos havia feito peça a peça e não fez. Não nos poupava mas poupava-se a si. Dito desta forma parece que lhe quero mal. Não quero. Só que não me acho em dívida: o preço foi alto. Levou a vida que quis, como quis, e impunha-nos à força a sua vontade. É curioso, João: dá-me pena que tenha morrido. Movia-se por paixões, entusiasmava-se e gostava de nós através das nossas filhas por lhe ser impossível amar-nos abertamente. E contudo, mau grado o que acabo de dizer, não duvido do seu amor e de um orgulho genuíno nos filhos, que fazia os possíveis por disfarçar. Estou a ser injusto, de longe em longe descuidava-se. E apesar do que afi rmo, gaita, era, é o nosso pai. Não esqueço as palavras de Herculano a propósito de Garrett que ele repetiu dúzias de ocasiões ao longo dos anos - Por meia dúzia de moedas o Garrett é capaz de todas as porcarias, menos de uma frase mal escrita ou da ordem de Filipe Segundo ao arquitecto do Escorial - Façamos qualquer coisa que o mundo diga de nós que fomos loucos e como esses dois preceitos se gravaram na gente. Isto foi importante para além do que declarei a teu respeito e herdaste dele de facto: a honestidade, o rigor e a coragem. É bom ser filho de um homem desta têmpera e essas qualidades nasceram contigo. Talvez com outro pai houvesses sido igual, não sei. Capaz de todas as porcarias menos de uma frase mal escrita: para mim foi um tiro na mouche. Em cheio. E estou-lhe grato por isso. Estou-lhe grato também pelos irmãos que foram aparecendo, a chorarem como uns danados até aos dois anos, raios os partam. À mãe igualmente claro, de quem a avó nos dizia - Vocês matam a vossa mãe numa convicção que me confundia. Via-nos a apunhalá-la com a faca do pão, a da serrilha grande, e ela a torcer-se na cozinha. Felizmente sobreviveu à faca e segue viva da costa. Agora, há uma semana, sucedeu aquilo do Pedro e de novo te admirei, mano, a tua efi ciência, a tua capacidade de decisão, o teu valor, a rapidez pragmática do teu afecto, eu que de pragmático, pobre de mim, nada tenho. Quando acabaste de operá-lo apeteceu-me beijar-te. Claro que não beijei mas sabes que beijei: és o meu irmão João. Aquele a quem me une um silencioso princípio de vasos comunicantes. E com que alegria repito isto dentro de mim: o meu irmão João. O meu irmão João para sempre. 
15.09.2008 às 18h21 in Revista Visão

As maluquinhas dos filhos

Ontem, em casa, escrevi um post muito azedo.
Talvez alavancada pelo tema quente de ontem, e obrigada a todos os que participaram - tomei o pulso à coisa e fiquei a perceber que para alguns o tema interessa (e muito) e para outros, enfim, é só uma imensa gargalhada.
Avante.
Não publiquei o post, e fiz bem. Desde que li este magnífico post da Miss Smile, tendo a pensar melhor nas minhas azedices, nas minhas toinices, antes de as publicar. Talvez seja isto a maturidade! ou talvez isto seja só o princípio de algo muito triste.
A Miss Smile disse duas coisas que me chamaram a atenção: uma foi que gostava de 'prestar atenção ao discurso das pessoas quando dizem mal de alguém', e a outra foi que 'o que lhe prendia a atenção era, na verdade, o que aquela pessoa dizia de si quando falava mal de alguém'.
Isto é maravilhoso, digo-vos eu daqui de onde escrevo. É preciso uma experiência de milhares de anos para aprender a falar mal de alguém sem deixar tudo em cacos, quer dizer, os outros e a nós mesmos, e eu, no meu post de ontem, não estava a falar mal de 'alguém', estava a espingardar em todas as direções, e isso assustou-me.
O tema era muito criativo, audaz até, mas rancoroso; como se  me afetasse de alguma forma, como se de repente algo extraordinariamente mau, vindo das minhas entranhas infantis, me impelisse a escrever sobre uma doença, doença essa que eu atribuía só aos outros, mas que na verdade, segundo as palavras de Miss Smile, era afinal a minha, isto é, estou doente com aquilo que acho doentio nos outros.

Falava eu das 'maluquinhas dos filhos', e de como me perturbam - nesta fase da minha vida - certas e determinadas mães. Determinadas porque são muito determinadas em levar assim a vida, numa maluqueira constante, e determinadas porque são umas mães específicas que eu já identifiquei.
Começava por dizer que estava farta, saturada, pela testa, dessa new species que são as mulheres-filhos, e que fazia de tudo para não as encontrar, só para não as ouvir falar.
Mas depois parei um bocadinho para pensar. Porquê? Porque vês tu, Uva, sempre segundas intenções nas pessoas que sobem o ego à sombra dos filhos, que são pessoas só porque têm filhos, que vivem em osmose romântica com os filhos? Porque não és tu capaz de ver nisso só amor?
A resposta poderá estar aqui: porque eu sou mãe e não amo assim. Para mim os longos meses em casa são mesmo longos, e a opção religiosa de me tornar freira da minha filha, nos claustros da casa, fazendo papas conventuais e outros docinhos, não é o meu tipo de fé.
A minha exposição aqui espelhada. O meu eu-todo-feio aqui disperso nas palavras. A maldicência gratuita de mim própria.
Porquê? Porque me propus eu a falar assim desta gente? Que disparate é este, nesta fase da minha vida, de me encanitar com as mulheres que só pensam nos filhos?
O nosso miúdo ainda dorme na nossa cama. 
What?? O puto já anda nos linguados atrás do pavilhão de ciências e ainda dorme na vossa cama? E ainda lhe puxas a pele para trás quando lhe dás banho, ou ele já percebeu como é que a coisa funciona?
A humilhação que é para mim saber-me falha, falida, e imprópria. A absoluta incapacidade de mudar sentimentos sobre mim própria, comportamentos que tive toda a vida, e de ser egoísta, de ter auto-estima, de não me ajoelhar perante a maternidade a todo o custo, a amamentação, as noites mal dormidas, a pele cheia de sal nos lençóis lavados.
A miúda não toma banho? Não. O sal faz bem à pele.
Não faz, mas agora não em apetece dar-lhe banho, deixa-me ficar aqui, com o meu livro, agora não quero ser mãe.  

Sou só eu que estou completamente farta, fartinha, pela testa, das 'maluquinhas dos filhos'?
Ou pelo contrário sou eu que sou totalmente maluca?

Tenho tanta coisa dentro de mim que não entendo.
Talvez me interne dentro de um livro, e nunca mais me esqueça que isto das letras, isto de escrever, isto de dizer coisas dos outros que na verdade são as minhas, é que me faz um mal terrível.

26 de outubro de 2016

Kids Market ou Mercadito, eis a questão

Não sei, sinceramente, para onde me hei de virar este fim de semana.



Do espetacular Vasco Gargalo, uma ilustração que diz tudo sobre injustiça, sobretudo da injustiça que ninguém parece ver: a exploração infantil, também nos blogs.

http://ilustragargalo.blogspot.pt/

Desculpem, por favor, mas tenho que o dizer outra vez:

Não posso, não quero, e não concebo, a continuidade da exploração infantil em blogs, como pretexto para as mulheres que por algum motivo (escolhido ou imposto) decidiram fazer da sua atividade profissional uma variante suja das stay home moms, utilizando os seus filhos como receita.
É sujo, é horrível, e custa-me muito saber, que as marcas que patrocinam mercaditos e quejandos estejam dispostas a tudo, sobretudo dispostas a ser cúmplices de um roubo humano, como o roubo da infância das crianças, perdidas em incontáveis e inconcebíveis sessões fotográficas, no veste e despe, sobretudo do despe, na praia, nos seus quartos, na sua intimidade, autênticos bonecos de montra blogosférica, para aumentar lucros.

Se há tantas vozes que se levantam, como a minha tantas vezes, contra a publicidade encapotada em blogs, não entendo como é que essas vozes não se viram contra a exploração infantil encapotada em blogs.

Isto não pode continuar.

24 de outubro de 2016

Ahhh os encantos dos Recursos Humanos

Não há nada como ter uma profissão eclética.
A pessoa faz perninhas em todo o lado e torna-se logo mais compreensiva no que diz respeito aos traumas profissionais de cada departamento.
E há com cada traumatizado, credo.
Desta vez, como algumas vezes, urge voltar a fazer uma pequeníssima seleção de candidatos à guilhotina estagiária do Rule of Law.
Estamos cá é para isso, não é verdade? Para cortar umas cabeças...
Devo começar por dizer que é uma guilhotina muito fina, muito afiada, que corta antes de cá meterem a cabeça, por isso a seleção é feita (logo à partida) tendo em conta uma série de condicionantes, nomeadamente as que mais condicionam: nota final, escrita, CV, e entrevista.
Assim sendo, para não perder aqui o raciocínio, queria dizer-vos que durante a minha (vastíssima) vida académica, e depois laboral, houve um tempo em que me dediquei aos estudos (e naturalmente à aplicação dos estudos) na área dos Recursos Humanos.
Uma das coisas que me lembro foi a de me encanitar com a palavra 'recursos'. As pessoas não são recursos, as pessoas são carne para canhão, e isto, parecendo que não, faz uma grande diferença.
Vejamos:
Os estagiários são exatamente o quê, senão carne para canhão?
Ora, se isto é verdade, se já milhões de pessoas importantes escreveram sobre isto, concordam com isto, defendem isto, qual é o problema de um estagiário enviar um CV que se assemelhe a uma ... bala.

Foi o que fez este estagiário, quando resolveu dobrar o seu CV como se fosse um cartucho e enfiá-lo nos canos serrados de um envelope.

Posso assegurar que dos 140 aborrecidos CV´s que recebi durante esta semana, este foi o único que abri. E não foi uma bala, foi uma bomba.
Passa já à Administração que é um tiro!



21 de outubro de 2016

Cada vez mais baralhada das ideias, com as ideias baralhadas dos outros

Há certas coisas que me põe nervosa, sobretudo se for antes do almoço.
Uma delas é esgrimir argumentos com alguém que, sendo um profissional ligado à contabilidade, se arroga na defesa do indefensável, sobretudo no que diz respeito a impostos.
Não sou nenhuma iluminada das ciências matemáticas, mas não balizo (e não pondero) um pedido de fatura, na hipótese do vendedor estar ou não estar no início de sua atividade, praticar ou não praticar preços muito baixos.
Se está no início da atividade e se pratica preços baixos, é da sua inteira responsabilidade. Ora eu, que nada tenho a ver com isso, com as decisões dos outros sobre a forma de gerirem a sua atividade, não posso permitir que penda sobre mim o ónus do sucesso ou insucesso do marmiteiro por pedir ou não fatura sobre a minha marmita, seja qual for o preço praticado, seja, em última análise, qual for o motivo.
Para mim a coisa é simples: há regras a cumprir pelas empresas. Eu também cumpro regras, eu também pago impostos (que não me apetece nada pagar), eu pertenço a este sistema, este sistema funciona assim. Não sou a maluquinha das faturas, um palito uma fatura, mas faturas de almoços, meus amigos, temos pena. Peço sempre, indiferentemente do preço.

A discussão: Que tive 'a distinta lata' de pedir uma fatura por um almoço de 3,50€.

Para vos enquadrar:
Temos um novo fornecedor de marmitas, que além de permitir a encomenda do almoço no próprio dia (coisa que dá imenso jeito), vem entregar à porta, traz a comida naquelas embalagens de plástico dos take-away, que vem mais ou menos bem servida, e cobra por isto 3,50€.
Já várias vezes nos indagámos como é que o marmiteiro consegue fazer a marmita tão barata, se pensarmos que inclui entrega, embalagem e que até nem vem mal servida.
Na minha curiosidade doentia, o que fiz foi sondar o novo fornecedor e pedi-lhe, à queima roupa, uma vulgar fatura.
Não tinha. Que podia passar um recibo verde depois de vários pedidos, espaçados dois ou três meses entre cada um, mas que seria uma grande maçada, sabe lá, fatura a fatura, imensa papelada, não dá jeito nenhum.
Ahh, bom! Estou esclarecida. Não passa fatura - não paga os impostos.
Contei isto às restantes clientes, e, qual não foi o meu espanto! fui logo atacada pela turba em fúria.
Que o senhor estava a tentar sobreviver, que fechara um negócio falido e estava a tentar levantar a cabeça, que pedir fatura por um almoço de 3,50€, era além de muito feio, maldoso.

Estarei a ouvir bem?
Deverei então sucumbir à caridade, ser boazinha e bonita para com aqueles (todos) que dão inicio a uma nova atividade, e aplacar uma atividade económica que cobra exatamente aquilo que quer cobrar por uma refeição ao domicílio, sem pedir a fatura que me é devida, por direito, sob pena de destruir a vida de um pobre comerciante que decidiu fazer a sua atividade sem pagar os respetivos impostos?

E esta gente não entende que, para mim, alguém que pondera abrir uma atividade sem pagar os impostos é um empresário do chico-espertismo, que acha que está acima de todos os outros que cumprem a lei?
Entendam: ninguém está acima da lei, além dos que controlam a lei.

E nós por cá temos... (que isto não podem ser só esculturas)

Vasco Gargalo. Um monstro da ilustração que é português... e que esteve ontem no 5 para a Meia Noite e eu fiquei super contente.



E Sofia Neto, que ficou entre os 200 melhores do mundo, também na ilustração, com o cartaz que criou para o primeiro Figueira Film Art - Festival de Cinema da Figueira da Foz, em 2014.



Para quem gosta ou já gostou muito de BD (e eu já fui uma grande aficionada, até a minha mãe me dar o EXODUS do Leon Uris para ler numas férias - o que acabou por ser a razão para do meu maior interesse histórico que é o Holocausto), acho que é daquelas coisas que nunca, nunca se esquecem.
Além disso é a melhor dica para as mães que se vêem e desejam para convencer a gaiatada a ler.
Investiguem.
Vale muito a pena.

20 de outubro de 2016

E o prémio do Blog do Ano vai para...

Desculpem subverter as votações mas tenho de dar o (meu) prémio a uma blogger que nem sequer foi nomeada.
Tantas capacidades perdidas. Tantas injustiças perpetradas!
É que vede, não é só por ser uma blogger de mão cheia, de casa cheia, de mesa cheia, coração ardente...
É por ser também uma poeta.
E eu... sou uma Uva romântica.

Deixo aqui um poema que me tocou no coração, e que no fundo diz muito sobre tudo isto que são os Blogs do Ano.

Chegou Outubro com este início de Outono que mais parece Verão
Esta é aquela altura do ano que os jardins se enchem de folhas
castanhas caídas das árvores
que o frio aparece (ou supostamente aparecia)
as camisolas saem do armário
e as meias voltam aos pés 
Nada disso chegou por enquanto a Lisboa
Se as folhas caíram
nem dei por nada
mas antes que o cabelo comece a invadir o chão da casa de banho, 
dei um corte
e voltei a tentar tê-lo mais "direito"
sem escadeado. 

(não sei se a pensar nele mais tempo curto ou em deixá-lo crescer outra vez).

in: Outono.

19 de outubro de 2016

DA METÁFORA DA VIDA

As esculturas são metáforas. São ambiciosas metáforas para a vida.
Incompletas, falhas, desconstruídas, e no entanto tão perfeitas.
Estas que aqui trago, são a metáfora perfeita para um artigo que li hoje sobre as últimas declarações do Papa Francisco.
A Igreja Católica, tão falha, tão incompleta, tão desconstruída, luta arduamente para nos fazer acreditar em dogmas que já nada significam e que dificilmente se explicam.
A noção de 'Deus', 'Inferno', 'Adão e Eva', 'Paraíso, 'Alma' e 'Pecado', perdem seguidores a cada dia, e a cada dia se desfazem, mais e mais, como esculturas ao relento.
A perfeição tem limites.
A Igreja, perfeita e indissolúvel, omnipresente e omnipotente, ocupando a casa de Deus e falando por 'ele', dizendo o inegável, o inquestionável e a única verdade, vê-se agora numa posição desconfortável e inversa, através daquele que já é chamado em surdina de 'Pastor Inútil'.

Para mim, que sou uma imperfeita escultura da vida, falha e desconstruída, oiço o Papa Francisco e sorrio.
Finalmente uma voz divina, no meio de tanto paganismo católico.













http://www.regardtvandermeulen.com/
Regardt van der Meulen

18 de outubro de 2016

PACIÊNCIA DE GATA


A GATA está uma senhora. A sua atenção, paciência e resiliência para apanhar tudo o que é intruso de asas, apurou-se de uma forma muito consistente e muito madura, que me encanta.
Não lhe escapa nada. É capaz de estar horas de pescoço levantado a olhar para a varanda de cima, só para agarrar a oportunidade de comer um pombo mau trapezista.
Ela sabe exatamente com o que pode e não pode forrar o estômago. Escuso de lhe acenar com um amendoim, com uma pedaço de tomate, com uma tira de maçã, que ela, esperta, cheirando-lhe a minha treta a esturro, vira-me as costas e fica sentida.

Era muito bom que as pessoas que lêem e compram artigos em blogs pirateados e encapotados, cheios de publicidade até à testa, blogs que enganam como respiram, blogs que fomentam a venda de crianças para proveito próprio, ali à vista de todos, sem vergonha, fossem como a gata Meca.
Bastava isso, o desprezo absoluto dos leitores e seguidores por toda essa gentinha sem escrúpulos, e eu era capaz de acreditar novamente na humanidade.

16 de outubro de 2016

Da rebaldaria do arrendamento de curta duração

O arrendamento urbano de curta duração, tipo Airbnb (bed' and breakfast), duplicou em apenas 1 ano e resultou num rendimento para os proprietários de 43 milhões de euros, só em Lisboa.
O retorno monetário para a cidade foi de valor imparável, e de grande contentamento para a Câmara.
O boom turístico está à vista de toda a gente, e é inegável que a cidade de Lisboa está a sofrer a maior das suas [quase inexistentes] transformações, desde o tempo do Marquês de Pombal, muito à custa da taxa turística arrecadada pela Câmara Municipal.
Este fenómeno tem o condão de azucrinar (até à inconsciência) os moradores lisboetas, que se juntam atabalhoadamente e desesperadamente em Comissões de Moradores, tentando convencer os autarcas de que nem tudo o que luz é ouro, e que a cidade, mais ano menos ano, estará totalmente vazia de lisboetas, por um lado, porque ninguém aguenta tanta festa e tanto barulho, tanto tuk-tuk e tanto navio, tanta desordem e tanta destruição do espaço público, dos transportes públicos e de tudo o que é público, e por outro, porque é impossível pagar as rendas praticadas pelos 'novos vendilhões do templo' que viram no boom turístico a derradeira salvação para as suas ridículas pensões.
Mas depois veio um governo de esquerda e plim! resolveu acabar com o regabofe e aumentar (finalmente) os impostos de quem colocou Lisboa numa fasquia tão alta, que para se viver aqui é necessário ter 3 vidas das minhas, tudo no mesmo mês, e não chega.
Aquilo que todos, de uma maneira ou de outra, desejam, é a igualdade. Não uma igualdade comunista, em que não há diferenças entre os que se destacam, mas sim onde haja igualdade para quem parte com as mesmas ferramentas.
Eu, que tenho a minha casa alugada a terceiros no regime de arrendamento permanente, tendo feito aos meus arrendatários um contrato de aluguer comme il faut, pago mensalmente 28% de taxa sobre o rendimento total, isto é, números redondos, se a minha casa estiver arrendada por 700,00€ eu pago ao fisco 198,00€, ficando com um 'lucro' de 502,00€ com o qual tenho de pagar IMI, condomínio, obras e reparações no apartamento, seguro de vida, seguro multirriscos, e o empréstimo ao banco. Sou uma proprietária esquizofrénica, que para manter um património que me salve a vida se necessitar de a salvar, pago para alugar a casa.
Mas isto ninguém vê, porque a ideia geral do arrendamento é que somos todos ricos, com património soçobrante, e que vive à custa de pobres arrendatários.
Esta ideia é também partilhada pelo Fisco, que carrega como o Benfica em cima de tudo o que é proprietário, e por isso é que 28% de imposto sobre o rendimento total de uma aluguer é um chamamento de sereia para a fuga aos impostos.
Por um lado temos filhos e por outro enteados.
Os filhos, os proprietários que arrendavam em curta duração,  eram poupados em praticamente metade do imposto, com tratamento fiscal mais favorável, sendo a taxa apenas de 15%. Porquê? Não sabíamos. O que sabíamos é que arrendar a casa a uma família portuguesa (ou estrangeira) que queria arrendar para habitação permanente, para assentar arraiais, meter os filhos na escola, ter uma vida normal num país da Europa, obrigava (e obriga) a um imposto que desinteressava (e desinteressa) ao proprietário, e que (está à vista de todos) levava (e leva) a mais fuga aos impostos.
Acontece que o OE 2016 deu uma reviravolta nisto e decidiu que para determinação do rendimento coletável no que diz respeito ao arrendamento de curta duração, o imposto é alterado de 0,15 para 0,35 do total do rendimento.
Está o baile armado.
Por mim é injustíssimo que o fisco me leve mensalmente 28% do total do rendimento que tenho com a  casa que decidi alugar, mas era ainda mais injusto que levasse só 15% ao arrendamento de curta duração aos outros proprietários. A diferença entre um e outro não me parece suficientemente díspar para significar 50% de diferença no imposto porquanto o que se trata é de alugar uma casa exatamente nos mesmos moldes. Ainda para mais, os contratos de curta duração e hiper valorizados em termos de rendimento, vieram acabar quase por completo com a possibilidade de um qualquer português viver em Lisboa.
Hoje em dia um quarto com cama de solteiro, em Lisboa, vale entre 350 e 400 euros por mês, com janela, e um apartamento T0 com vista sobre o rio já custa 1 000,00€ por semana. A culpa não será totalmente do proprietário que se aproveita da conjuntura que o baixo imposto de curta duração lhe impõe, ou do alto imposto que o arrendamento de longa duração lhe impõe. A culpa é do governo que não soube separar o trigo do joio e que permitiu que a situação chegasse a este ponto, deixando que uns fossem filhos e outros enteados, e que todos fugissem (e fujam) aos impostos.
Considero que todas as medidas de igualdade que possam ser tomadas pelo governo para regular o setor são boas, e que a rebaldaria do arrendamento de curta duração acabe de uma vez por todas.
Lisboa agradece e muito.
Apesar de ser uma fórmula muito dolorosa na defesa das limitações ao alojamento local, é a única que abre uma janela a todos os portugueses que queiram viver em Lisboa, por um preço justo e adequado, e sossegadamente, sem ter todos os dias as irritantes rodinhas dos trols, escada a cima, escada a baixo, a importunar o seu merecido descanso.

14 de outubro de 2016

Ó Bob, escreve lá qualquer coisinha, sim?

Filipe Homem Fonseca
"Está lá, Bob? Fala da Svenska Akademien, man. 
Olha, estávamos aqui a ver: por acaso não tens letras de canções que nunca tenhas gravado? Umas que possas publicar num livro de poemas?  É que estávamos a pensar entregar-te o Nobel da Literatura, mas se não tiveres nada publicado exclusivamente em livro, vai haver pessoal que se vai passar bué, um chinfrim do catano como aconteceu quando foi o Dario Fo a ganhar, e na altura não havia redes sociais em barda como agora, por isso imagina o salsifré...! Eh pá, e sinceramente não estamos para aturar essas macacadas, man. Publicas o livro e depois descansa que há-de haver malta que vai pegar nesses poemas e vai musicá-los, que é o que está bué na moda fazer com a poesia. Tem é de ser poesia de livro, 'tás a ver, se for poesia que venha da música já não pode ser musicada, percebes? O chamado Paradoxo do Pingarelho. Não percebes? Pois, nós aqui também não, mas o que é que queres, há gente nhónhó que só está bem é a estragar. Já 'tou a ver o filme: vai haver gente a dizer "Ah e tal, se o Bob pode ganhar o Nobel da Literatura, então o Muarakami também pode ganhar o Nobel da Física". Ya, man, eu sei que não tem nada a ver, mas o pessoal fica bué ressabiado por se estar a mexer nas porcelanas da literatura e entra numa bué totó, 'tás a ver? Ah, olha, e sabes o que é que dava uma jeitaça? Era se os poemas não rimassem. Isso é que era tabaco, man. Porque a malta não curte poemas que rimam, porque a rima é uma regra, e a malta é bueda rebelde e não curte regras, e vai daí criou-se esta regra que é de não ter rimas, 'tás a perceber? Não? Ya, nós também não, é uma cena do caraças...! Olha, fazemos assim: a gente vai dar-te o Nobel e siga, os ressabiados que se aguentem à bronca, caguei d'alto. Boa? O quê? O Lobo Antunes? O Lobo Antunes está na boa contigo, o stress dele é com o Saramago e com o Pessoa, que já estão os dois mortos, por isso é tranquilo. S'a foda, Bob. Anda receber o Nobel, tu recebes bem. Se houver gente a stressar, que s'a foda."

É mais ou menos isto.
Mas sem o s´a foda, que fica uma beca chunga.

Das virgens ofendidas


Este é o chamado post-bomba!
É aquele post que pode muito bem acabar com a carreira de uma blogger se calha a ser lido por olhos errados, especialmente aqueles olhos que usam as palas, e só vêm ataques por todo o lado, isto é, criminosos e violadores everywhere, mesmo os que costumam parar em cima dos andaimes.
Para mim é aquele post em que há uma linha que separa o bom senso do nonsense.
É capaz de ferir muitas susceptibilidades, mas aqui vai ele.

Julguei que as mulheres de hoje, as muito modernas, as todas práfentex, as que querem impor-se na vida como homens, fortes e sem medos, estavam muito melhor preparadas do que as gerações mais antigas para i) identificar os verdadeiros perigos e agir em conformidade, ii) separar o trigo do joio no que diz respeito aos cães que ladram mas não mordem, iii) ter algum bom senso no que diz respeito a certo tipo de bocas da reação, sobretudo quando o emissor é apenas um transístor velho, que repete frases feitas ou provérbios, que já ouvia dizer ao seu avô, que além de não terem cabimento nenhum em situação nenhuma, não têm cabimento nenhum nesta situação em particular.
Enganei-me redondamente.
Parece que a situação atingiu níveis de toxicidade tais, que já há quem queira aplicar à triste figura do Senhor Jorge Máximo, - o taxista que esta segunda-feira causou revolta ao dizer que “as leis são como as meninas virgens: são para ser violadas” -, o artigo 297º de instigação pública a um crime.
Um homenzinho que não usa o cérebro, também para pensar nas grandes questões da vida, vai para mais de 70 anos, vai ser acusado por uma seita de mulheres virgens (em piropos) do crime de incitação à violação sexual de meninas virgens.

Bom, sinceramente não sei por onde lhe pegue, mas acho que os meus dois neurónios ainda me permitem ouvir e seguir em frente, sem alardear aquilo que na verdade não tem alarde algum.
Foi evidentemente uma frase ofensiva, boçal, condenável e descabida, mas daí até considerar que encerra um comportamento criminoso contra as mulheres, tenho muita pena, pessoas, mas não me revejo.
Não me revejo porque não me parece que o taxista tenha usado a frase na sua forma literal, que a tenha sequer usado bem, ou que tenha com ela incitado à prática de um crime, mas que tenha, isso sim, sugerido a estúpida metáfora para a aplicar a outra situação, essa sim, de monta: incitar à violação das leis, a quem chamou de virgens.

É lamentável que este tipo de discurso possa ainda ter lugar na nossa sociedade, e é por demais evidente que o senhor que o proferiu deve dar inicio, o quanto antes, ao uso do seu cérebro, parado há 70 anos, para rever a conduta e os princípios pelos quais deverá reger-se, mas daí a até lhe imputarem a pena de crime até 3 anos de prisão como se o homem fosse o bode expiatório conhecido e visível, o alvo a abater, de todas as mulheres virgens violadas, parece-me um cumulo absurdo que em nada abona quem luta de verdade, contra os crimes de verdade, que todos os dias se cometem contra mulheres.

No fundo parece-me toda esta esquizofrenia em torno de uma frase boçal, um bocado... boçal.

Por outro lado, a ignorância (e a exaltação) do taxista é por demais evidente se atentarmos no contexto em que a declaração foi feita, porque se a UBER está a violar as regras, e é isso que impele os taxistas para a luta, então o que o taxista queria dizer era que as regras são como as meninas virgens, NÃO devem ser violadas.

13 de outubro de 2016

Antecipando o NOBEL da LITERATURA 2017


Dialetos de ternura
Foram mais que para mim
Onze minutos de história
Interminável e sem fim

Extravagância nos teus olhos
O meu olho pra pintar
Porta fechada numa tela
Sem azul e sem mar

Ohuô.... Ohuô.....
Hoje Maria Leal aqui, só pra ti (bis)

Pensamento proibido
Entrar no teu olhar
Foram coisas desse trilho
Que me deixaram a pensar
Estrada proibida 
Entroncamento sem fim
Restos sucessivos
Que sobraram para mim



Maria Leal será a escolhida por ter criado novas formas de expressão poéticas no quadro da grande tradição da música portuguesa.


A sério?
Isto é sério? Bob Dylan?
Maravilhoso mundo novo.

11 de outubro de 2016

Não quero

Não quero magoar ninguém, nem quero que ninguém me magoe.
Não quero maltratar ninguém e não quero que ninguém me maltrate.
Gosto muito de pessoas, mas às vezes acho que não sou pessoa de quem se goste. Não sei, mas deve ser por ser grandalhona, e os grandalhões serem um bocadinho assustadores.
Não tenho culpa de ser assim. Agora ainda menos, desde que deixei de usar os saltos altos e me mudei para as sandálias.
Às vezes esqueço-me se fui malcriada para uma certa pessoa que passa e não diz bom dia. Detesto as pessoas que passam e não dizem bom dia, mesmo que esteja um dia bom.
Não quero que as pessoas me mintam, e se não está um bom dia para elas, pois poderiam ao menos indagar se o meu dia está a ser bom.
Assim só me apetece bater-lhes, mas não quero magoar ninguém.
Não gosto muito de usar exemplos pessoais para justificar os problemas dos outros, mas pode muito bem ser que os outros também tenham problemas parecidos com os meus e se esqueçam, porque têm má memória, de serem educados e de dizer bom dia.
Preferia mil vezes que se esquecessem de ser malcriados.
Não quero maltratar ninguém, mas hoje, se tivesse que descer do salto, era miúda para fazer um rotativo e ia tudo a eito.
O que lhes vale é que eu agora mudei para sandálias.

10 de outubro de 2016

Passarinhos

Pensativa. Ando sobretudo pensativa.
Ontem, quando saí de casa para comprar um frango, a correr, ia tão metida para dentro que fui bater com o ombro no semáforo da Vilhena. Capaz de arrancar o braço!
Pensas muito mas não o suficiente para te lembrares que sem os olhos não vês nada.
Tenho 40 anos. Vejo mal. Se tivesse nascido antes de inventarem os óculos estava bem lixada.
Também não tenho boa memória. Se tivesse, agora dizia com que idade pensei pela primeira em ter 40 anos. Devia ser uma cachopa, uma pirralha muito ranhosa dessas que andam a passear os burros no Alentejo.
Com 40 anos, pensava eu com os olhos semi-serrados, já terei uma vida descansada, um carreiro certo por onde empurrar a minha burra.
O caminho é incerto. Não vês por onde andas, tu, quanto mais a burra.
Tinha a cabeça cheia de pensamentos mas nunca andava pensativa. Qual quê.
Não me lembro bem - porque não tenho boa memória e nasci num tempo em que ainda não a inventaram -, mas acho que no Alentejo nunca bati com o ombro num semáforo.
E era sempre a minha avó que matava o frango.
Um dia, estava eu no monte muito metida para dentro, aborrecida por não ser pensativa e de não ter cabeça para nada, quando o frango morto da minha avó passou por mim a correr. Lembro-me de ter pensado que era exatamente igual a mim. Sem cabeça.
A minha avó que gostava muito de mim, e pouco dos frangos, dizia-me que ali no monte eu era livre como um passarinho.
Ó vó, o frango é um passarinho?
Tu és bem capaz de ser um frango-sem cabeça, livre como um passarinho.
Já não me lembro bem, mas parece que só o pensamento é livre.

Hoje em dia, há muitos dias que penso naqueles dias.
Às vezes, aqueles que não têm cabeça para nada também não têm com o que bater contra as paredes. Esses são verdadeiramente livres.
Mas depois, sem que eu queira, passa-me o frango morto da minha avó outra vez pela cabeça e eu pergunto-me, especialmente quando continuo a andar na rua sem a cabeça no sítio e vou contra os semáforos da Vilhena: ó vó, o frango é um passarinho?

Então porque me sinto eu tão presa?

Da adoção emigrante

Daqui de onde me encontro, vejo passarem-me à frente imagens surreais e relatos por demais gravosos e insuportáveis, que tenho de partilhar.
Está a ser difundida, com o intuito de procurar quem ajude, através do link da TVI, a reportagem da Ana Leal sobre a adoção de crianças filhas de emigrantes portugueses em Inglaterra, por partilhas entre colegas, amigos, professores, ou simplesmente conhecidos, ora da televisão, ora do Rule of Law, escritores, jornalistas, todos, mesmo as altas instâncias ministeriais, ou sobretudo essas, que possam ter algum peso ou alguma experiência no campo dos Direitos, Liberdades e Garantias.

Se alguém que por aqui passe durante o dia de hoje, ainda não teve a oportunidade de ver, que veja.
E partilhe.
Esta situação é dramática demais para fecharmos os olhos.

Ao minuto 45m, por favor.
Obrigada pela partilha.

9 de outubro de 2016

A recruta

Nunca me tinha apresentado à recruta.
Estou naquilo a que se chama posto inicial da carreira, um soldado raso das multidões, das tropas fandangas, que se perfilam em batalhão, ou magotes, para participar na guerra.
Só que a minha guerra é outra.
Venho tarde ingressar as massas. Já não se usa a tropa.
O que agora toda a gente pratica, e o cómico desta situação jaz aqui mesmo, nas palavras tombadas, é o individualismo. A solidão e o absurdo de fazermos todos o mesmo, mas em alturas diferentes. Na escolha do momento certo, jaz o pináculo da perfeição.
Eu entendo.
Não é fácil ser acusada de seguidismo e logo a seguir chamarem-nos ovelhas não-tresmalhadas. Para quem nasceu metido para dentro, como um furunculoso sinal, torna-se-lhe difícil aceitar as pequenas borbulhas que como eu, explodem para fora.
Somos todos ovelhas, mas agora as negras é que estão na moda.
Ahh a moda...

Escrevo zangada.
Na verdade há muito que me zanguei com isto, mas teimo. Teimo porque acredito que há algo em mim, na minha escrita, que vale a pena. Estes espaços de introspeção e partilha que aqui vos deixo são cada vez menos, e é talvez a falta de treino que me deixa mais cansada.
Perdi a mão para isto. Perdi a mão nisto.
E zango-me porque me aparecem aqui soldados perdidos que não me acompanham desde o inicio desta guerra, e que, naturalmente, me abatem a tiro porque não me (re)conhecem.
Nos últimos dias tenho escrito muitos posts para me defender de morrer às mãos de assassinos, que não publiquei
Matam-me à séria, todos os dias um pouco mais, porque me julgam uma recruta que só agora entrou num museu de guerra para ver os antigos canhões.
Desconhecem que aqui se partilha arte, que aqui se respira arte, que aqui mora uma apaixonada por arte.
O estranho seria exatamente o contrário. Não ir à guerra.

Disse ali em cima que nunca me tinha apresentado à recruta, mas talvez tenha falhado o juízo. A minha recruta é isto: a defesa perante o ataque escarninho dos anónimos da vanguarda, os que se têm em grande consideração perante os demais, que querem ter ideias individuais, muito únicas e exclusivas, mas que querem que todos concordem com elas.
As pessoas gostam de ser especiais, de ser pessoas únicas, trendy, gostam de não fazer parte dos que se metem à besta em inaugurações cheias de gente, mas ao mesmo tempo participam e partilham das mesmas atividades. E assim vão à praia do Ribeiro do Cavalo, ao Pingo Doce dos 50%, a concertos com milhares de pessoas das carradas de artistas que voltam todos os anos, a Fátima sempre no 13 de maio, para o Algarve na última quinzena de Julho, ao Louvre que não vai a lado nenhum, à Torre Eiffel que não cai amanhã, a maratonas a abarrotar de gente, correr com ténis personalizados todos da mesma marca, aos eventos da EDP, da PT, da RTP, tudo empresas que nos comem os olhos na sopa, a cursos de escrita criativa ou caminhadas contra o cancro organizadas pela Câmara Municipal de Lisboa - a maior sacana da atualidade -, ao Bairro Alto que se um dia cair lá de cima, cai com tudo em cima de nós, porque lá também Mora Gente.
Não vão com as 15 mil, mas vão com os outros milhões.
É um contra-senso e é muito difícil perceber onde querem chegar.
E depois misturam tudo. Querem as obras e detestam as obras. Detestam o ensino público mas arrasam o particular. Detestam o Benfica mas só falam, vivem, comem daquilo, dias inteiros. Falam mal dos hospitais públicos, mas quanto a especialistas, pois.
Querem comer o bolo, e ter o bolo.
É cliché mas fica aqui bem: tudo junto escreve-se em separado, e separado escreve-se tudo junto.

É uma canseira esta vida de partilhas, de exposição, de constantemente nos colocarmos a jeito para o deboche de tanta gente.
Quem diria que umas sandálias brancas que me custaram 19 euros, pudessem gerar tanta raiva. É afinal isto que interessa? Umas sandálias brancas no final de umas pernas?
Talvez seja esta a cor da massa na cabeça destas pessoas. Talvez. Não posso jurar que haja verdadeiramente uma 'massa'.

Escrevo zangada.
Fico aqui muito espantada, com os olhos todos para fora, com a raiva e a revolta que uma ida minha a uma inauguração pode suscitar nas pessoas.
É que eu tenho aqui leitores de uma capacidade intelectual extraordinária.
Eu tenho aqui leitores exímios no tiro!
O que não tenho é pessoas que apesar da excecionalidade do seu pensamento possam ser toldadas pelas escolhas espatafurdias dos outros, mesmo que as suas sejam exatamente as mesmas só que em contextos diferentes.
Como é que podem denegrir seguidismos, ou mesmo seguir o que quer que seja, quando tudo o que seguem é ao mesmo tempo seguido por tantos milhares de pessoas, se tudo o que pensam já foi pensado por milhões de pessoas, se tudo o que fazem fazem-no exatamente da mesma maneira que todos?
Serão uma espécie de seguidores excecionais? Só seguem execões? A estrada que vai dar ao Algarve é só percorrida por vós, os excecionais?
Qual é a diferença em ir ao MAAT no dia da inauguração ou noutro dia qualquer? Não é o mesmíssimo princípio? Não vai lá toda a gente? Não irá lá toda a gente?
Julgam que é só a manada de gnus que atravessa a savana?

Afinal a tropa não é aquela coisa de escolha individual não obrigatória.
Afinal há mais recrutas.
Afinal estamos todos na mesma guerra.
A única diferença é que só alguns dão o peito às balas.
E já o disse aqui no Uva e volto a dizer: prefiro mil vezes ser fuzilada contra uma parede, do que ser desertora da minha própria humanidade.