20 de maio de 2016

Enquanto os comboios passam, a caravana pára




É uma bela metáfora para o dia de hoje.
É uma bela metáfora talvez para muitos dias.
Às vezes é necessário repensar os projetos, a trajetória, verificar o estado geral da linha, se a bitola não terá sofrido alargamento ou estreitamento, se há interrupções graves na comunicação entre estações, descarrilamento de comboios mais à frente, manifestações civis na passagem de nível, animais presos ao carril pelo pescoço.
É preciso perceber se é mesmo este o comboio que queremos conduzir, se aquilo que levamos lá dentro faz sentido, e se as pessoas que connosco viajam o fazem por bem, com energia, com interesses, também comuns, ainda que seja apenas e só na paisagem lá fora.
Não posso deixar de verificar que os vagões são imensos, compridos, cada um contendo a sua própria mercadoria, e estão todos entrelaçados, interligados, uns fatidicamente, outros felizmente, mas todos à sua maneira vão sugando o tempo à sua frente, como é natural nos comboios, como é natural na vida.
É pois escusado andar para trás, mudar de vagão, trocar de mercadoria. Somos arrastados, e uma vez lá dentro, não há forma de parar com aquilo tudo em andamento.
Para já, e posso dizê-lo com segura certeza, há muita coisa que deixou de me fazer sentido.
Houve um solavanco qualquer na viagem, sentiram? E o grito furioso dos carris, raspando e chispando na linha?
Entrou-me pelos ouvidos adentro, e assustou-me.
Algo se quebrou.
O que foi?

Ainda não sei.
Preciso sair, apear-me um pouco, comer qualquer coisa doce, um café quente, descansar as pernas, meter as ideias no lugar.
Não saio de mansinho, solto-me dum vagão cheio de pessoas, palavras, histórias, imagens, artistas, delírios.
É uma parte da vida, é a vida que parte, que se parte.
Salto da linha, saio do carreiro, deixo a bagagem?
Estou livre.

Foi contudo uma belíssima viagem.

16 de maio de 2016

A carne toda no grelhador

Daquilo dos Globos de Ouro, que é coisa que provoca sempre muita celeuma na blogada feminina, ora porque o rei vai nu, ora porque vai demasiado vestido, o que tenho a dizer da frase mais ouvida nas caixas de comentários por essa blogosfera a fora, sendo que é exatamente a mesma que dá o título ao post, é que relativamente ao prémio que foi entregue ao Marco Paulo, que aquilo credo, até me vieram as lágrimas aos olhos (e nem sequer reparei no que o rapaz tinha vestido), que aquilo, dizia eu, é que foi meter a carne toda no grelhador.

Fizeram-lhe um texto de 1500 linhas, 1500 febras, 1500 salsichas brasileiras, 1500 entremeadas, e um peitinho de perú fatiado muito fininho, o grelhador a abarrotar de carne, que aquilo no fim nem se percebeu nada, uma coisa amontoada de imagens, ora velhas ora novas, que o rapaz ia morrendo em apneia por força de ter ficado todo o santo churrasco sem respirar, inspirando apenas aquilo que toda a gente que enche chouriços na comunicação social deveria ter dividido em suaves refeições ao longo dos anos, não só para não deixar o homem à beira do colapso cardíaco - que aquilo foram muitos anos a matar porcos para serem comidos num churrasco só -  como para não nos deixarem a nós, os tele-espetadores, a penar sob um texto por demais gorduroso, misericordioso, e piroso, que mais parecia o texto das exéquias fúnebres do artista.

Já o Rui Reininho, até meteu dó.
Ficou a ali a olhar para a carnavança do outro, um Marco Paulo inflado sem saber o que fazer a tanta chicha, e nem um ossinho lhe deram para roer.

A Queima é que não

Se perguntarem às pessoas do meu bairro, da minha escola, aos meus amigos, professores, antigos ou recentes, mestres, familiares, enfim, às pessoas que partilharam comigo a minha infinita juventude, a minha pilha alcalina, as opiniões não se dividem, aliás, as opiniões vindas e provindas de todos os cantos por onde espraiei a minha fresca e deliciosa adolescência, imberbe juventude maravilhosa, dirão sem reminiscência de culpa (ou erro), que eu fui de todas a mais louca, a mais difícil, a mais terrível de todas as aves mais raras, enfim, fui a verdadeira gata assanhada de uma ninhada frouxa e tímida, de betas suburbanas, e sensaboronas.
Isto para enquadrar a doce cabeleira loira nuns olhos verdes arregalados, que me coube no destino.
Quem vê caras não vê o porradão de inconseguimentos que obtive no percurso escolar, que acabei com honra e distinção, a defender uma tese sobre Delinquência Juvenil.
O Universo também tem porras.

Não fui melhor do que esta juventude a quem todos culpam de rasca.
Não fui melhor do que essa juventude que desfila em Coimbra. Não fui melhor e seria hoje infinitamente mais triste se não tivesse pintado a manta, e o negro manto, de todas as cores que alegraram os melhores dias da minha vida.

Tenho, por virtudes que me couberam em jovem, e muito por culpa de uma grupeta absolutamente maravilhosa, um amor infinito pela gaiatada. Percebo-lhes os passos, os tiques, as porras. Sei perfeitamente o que lhes passa na cabeça, na alma, e sobretudo na goela. Sei que não vale a pena insistir que passem pela fase soberba, sem que lhes passe efetivamente a soberba.
Passarão todos, que a vida é um caminho.
A juventude é afinal aquilo que todos queremos ser, para sempre. Fazem-se as mais diversas (e inomináveis) loucuras para evitar o impossível e depois, bom, depois envelhecemos e quando damos conta disso olhamos para a juventude e parece que odiamos tudo o tenha a ver com ela.

Tenho visto por todos os cantos da comunicação social os ecos desse triste ressabiamento. Os mais ilustres jornalista prestaram-se a viagens a Coimbra, grandes secas rodoviárias por essas autoestradas a fora, para regressarem a Lisboa com a pena cheia de rancor, e de ódio, pela juventude ébria que desfilou a alegria (e a borracheira) pelo fim do percurso académico. Escreveram-se textos ofegantes de inveja, multiplicaram-se as críticas do velhedo restiliano, ouviram-se as vozes da inveja.
Que tristeza, meus senhores, que tristeza.
Hoje em dia o intocável cidadão atira com a pedra dos impostos à cara do prevaricadores, e sem memória e nem cabeça atira-a primeiro que todos. Os jovens não podem vomitar a borracheira no passeio porque são os seus impostos! que pagam a limpeza pública. Os jovens não podem arrogar-se ao desmaio por excesso de cerveja, porque são os seus impostos! que pagam o serviço nacional de saúde. E quem paga a polícias e seguranças, senão os impostos dessa gente que trabalha e que passou diretamente da infância para uma qualquer linha de produção?
Ai que nojo beberem diretamente das garrafas, ai que nojo irem todos mergulhar no Mondego, ai que nojo serem jovens, e livres, e loucos, esses montes de coisa alguma, gente rasca e sem valores, que vagabunda, esbardalha e destrói o bom nome deste país, o bom nome de doutores, engenheiros e demais caganças do ego, que emborcam pipas e pipinhas, fodem que nem loucos sem camisinhas, rasgam mantos e capinhas, ahh fadista!
E os pais a pagar.
 
Que tristeza, meus senhores, que tristeza.
Vivem o ano inteiro à custa dos estudantes, mas a Queima é que não.


13 de maio de 2016

Da igualdade

Não sei o que se passou comigo na infância, mas culpo-a de tudo o quanto sou.

Cresci no meio de uma família que não tinha [quase] nada, além de uma enorme alegria. Bebiam e fumavam, dançavam na rua, e em todo o lado, numa grande algarviada. Cantávamos todos, as modas tristes daquela terra, e ainda hoje não posso pensar nas cantorias, que fico logo com as lágrimas nos olhos.
Aquele núcleo de pessoas que me criou, a mim e às minhas primas, teve a capacidade de nos dar tudo o que lhes foi negado. Se apenas uma conseguiu ir calçada quando pisou pela primeira vez o pequenino pátio da escola primária, todas nós, as gaiatas, conseguimos ter pelo menos isso. E era uma grande alegria, pisar o pátio da escola primária com uns sapatinhos nos pés.
Apesar de todos os reveses da vida, que a vida ao contrário do tempo não anda sempre para a frente, a família, puxando daqui, empurrando dali, lá foi trôpega, mas sempre cantando, lutando pela Igualdade.

A marca que me deixou essa luta, fez de mim quem sou, e fez afastar de mim quem não sou, nem nunca me permitiria ser.
Fomos criadas na alegria de conseguir, de conquistar, hoje um par de sapatos, amanhã um futuro melhor, dando valor ao valor de conseguir alcançar, independentemente da enorme diferença que os outros viam em nós, que os outros queriam de nós. Por termos conseguido igualar a nossa família, e em muitos, muitíssimos aspectos, de termos conseguido ultrapassar as diferenças que nos afastaram sempre dos outros, é que hoje em dia não sou capaz de aceitar que haja alguém, muitíssimo mais infeliz do que eu, filho de uma família que nunca soube dar valor aos valores da outra gente, que nunca cantou de alegria por ter finalmente um par de sapatos, me subjugue, me menospreze, me afaste e me divida - como se eu fosse uma espécie de casta - de outras pessoas que diferentes, são iguais a mim.

É no fundo um grito que dou, que sinto e não minto, que tudo farei para me salvar, para me diferenciar, para me afastar de quem se julga na soberba, no preconceito, na minoridade de pensamento, de julgar e condenar os outros, pelas suas competências bancárias, familiares, educativas, formativas ou profissionais, criando fossos invisíveis e ridículos, para reinar, baseado em complexos de inferioridade do passado que todos carregamos como fardos.

Não sou inferior.
E a mim não me olharás jamais lá do alto.
O meu par de sapatos já calcorreou muita terra, muita pobreza.
Estão duros como calos.
São fortes como o aço.

13 de Maio

"São os peregrinos ainda o epítome da devoção, ou estamos a embarcar numa fanfarra de ilusão colectiva, que serve para alimentar os média com imagens fortes mas sem substância?"

John Gallo

12 de maio de 2016

Acabo de saber

Que esta maldita chuva de maio, que não arreda, estragou praticamente toda a produção de cereja deste ano.
Por outro lado, são de maio as pessoas que mais gosto.
Tanto como cerejas.

Na minha rua moram escritores

Ontem, já tarde, enquanto consultava a já compostinha página do Fólio de Óbidos para este ano, li, por um acaso muito casual, um poema de Ary dos Santos.
Ary dos Santos foi o nome da minha rua durante 10 anos. Antes desta, José Gomes Ferreira, e agora é um outro escritor que me recebe e cumprimenta, lá do alto da imponente parede, que faz esquina com o Duque.
É engraçado como antes de tudo isto, na minha fase menos católica, eu tenha morado numa rua com nome de Padre, também ele escritor.
Ontem, já tarde, enquanto lia deitada, alguma coisa de divino me dizia, que se nunca leres poesia, jamais serás escritora.

E era assim o poema que li, ontem à noitinha, pela primeira vez.

Era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia
Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu entardecia
Era tarde, tão tarde, que a boca, tardando-lhe o beijo, mordia
Quando à boca da noite surgiste na tarde tal rosa tardia

Quando nós nos olhámos tardámos no beijo que a boca pedia
E na tarde ficámos unidos ardendo na luz que morria
Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol amanhecia
Era tarde de mais para haver outra noite, para haver outro dia

Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria ou se és a tristeza
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza

Foi a noite mais bela de todas as noites que me adormeceram
Dos nocturnos silêncios que à noite de aromas e beijos se encheram
Foi a noite em que os nossos dois corpos cansados não adormeceram
E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo fizeram
Foram noites e noites que numa só noite nos aconteceram
Era o dia da noite de todas as noites que nos precederam
Era a noite mais clara daqueles que à noite amando se deram
E entre os braços da noite de tanto se amarem, vivendo morreram

Eu não sei, meu amor, se o que digo é ternura, se é riso, se é pranto
É por ti que adormeço e acordo e acordado recordo no canto
Essa tarde em que tarde surgiste dum triste e profundo recanto
Essa noite em que cedo nasceste despida de mágoa e de espanto
Meu amor, nunca é tarde nem cedo para quem se quer tanto!


José Carlos Ary dos Santos - Estrela da Tarde

11 de maio de 2016

Dépasser les limites de la peur

Não.
Não escrevi em francês para me armar em poliglota; sou aliás bastante fraquinha nas línguas, o que desde logo demonstra bem o meu baixo QI.
Também por isto [o baixo QI] é que eu teimo em ler coisas, muitas coisas; mas tenho péssima memória, o que faz de mim uma bulímica intelectual. Sorvo tudo, leio tudo, gosto de tudo, e no instante seguinte já não sei de nada, como se fosse um gato enervante que derrama as coisas da estante só pelo prazer de as ver cair.
Farto-me de derramar livros para dentro da cabeça, e aquilo dá-me tanto prazer como dá ao gato, e depois, quando quero aplicar aquela ilustre matéria, tenho de lá ir novamente, enervantemente, ler tudo de novo, tal como os gatos, que derrubam a vida inteira o mesmo objecto para o chão, sem no entanto aprenderem nada com isso.
'Exceder os limites do medo', é um livro do genial Giorgio Nardone, que tudo (e não foi pouco) o que escreveu, se aproveita e vale a pena.
É um génio e eu, pasma de admiração, adoro génios.

Neste livro excecional (acho que o AO é mesmo para ficar) ele escreve qualquer coisa como isto:

Da mesma forma que não há limite para nossa imaginação, não há nenhum limite para nossa capacidade de inventar medos. Quais são os medos patológicos? Como é que eles são formados? Como é que eles são mantidos? Como é que eles podem ser superados? Medo generalizado, medo da solidão, medo de falar em público, medo de animais, medo de tomar decisões, o medo da doença, obsessão compulsiva, síndromes do pânico – todos estes distúrbios produzidos pela nossa psique podem ser superados rapidamente.

Eu sei - porque sei - eu sei porque isto se passa comigo, que a maior parte das minhas desilusões pessoais, as minhas maiores falhas, vêm de um medo qualquer de falhar, ou do medo de cair, ou de me queimar, medo disto, medo daquilo, que depois se transforma num fardo que torna ainda mais pesado e difícil obstáculo que tenho de o ultrapassar.
Se eu conseguir superar o medo através de qualquer coisa que o elimine rapidamente, sei que talvez possa vir a falhar menos, e ser feliz mais vezes.
Soubesse eu ler em francês, como sei ler português, e derramava sem medos todos os livros deste génio para dentro da cabeça.


O Processo


Ups!
Acho que deu raia!

Mas, mas... fui tão bonita, toda aperaltada, perfumada, tudo estudado...


Não! Será que é daqueles casos complicados de défice de irony comprehension? Ahh, já sei... não pode ser... ná, já ninguém liga à cor do cabelo pois não? Ohh, tu queres lá ver que ficaram com medo da minha beleza transcendente ofuscar todo um departamento?


Não acredito. As pessoas não podem ter duas caras, pois não?


Hum... talvez tenha feito as coisas mal. Uma palavra mal entoada, um discurso desinteressante.
Também, quem é que quer saber do meu passado como sindicalista, se a maior rentabilidade lá da coisa é nos despedimentos coletivos?


Ahh, será que é daqueles casos de 'sei onde trabalhaste no verão passado e essa vaga era para mim'?


Por amor da Santa, Uva. Tu ainda te prestas a estes disparates?
E que tal fazeres uma viagem super cara, comprares todo um novo guarda roupa, 4 ou 5 pares de sapatos, e esqueceres este inútil processo?
Tens noção do dinheiro que já gastaste com isto?

Diz mas é às ´ssoas que afinal de contas não era bem aquilo.
Assim tipo: desculpe menina, desculpe menina, vim ao engano, compreenda, a Uva é uma sonhadora incorrigível, e.... pensou que poderia.... que era possível....desculpe menina. Estava mesmo de saída.
Zás! E pões-te na alheta.


Mas quem sabe se não terá sido melhor assim... seja como for vou precisar de me inteirar dos verdadeiros motivos .... talvez acenda aqui um cigarrucho só para o desanuviar os neurónios, fazer um post cheio de azedume e mandar o Processo à fava, chamar-lhe filho da coisinha mais velha, e cabum! espatifar isto tudo com palavras muito duras.


Ná. Já não tenho idade para isto.
Vou mazé marcar as férias. É para isso que me pagam.


http://www.melaniebourget.com/
MÉLANIE BOURGET - CONTEMPORARY CERAMIC SCULPTURES

10 de maio de 2016

Proposta para a substituição da estátua de D. Sebastião

A gaitada do nosso tempo não vê nada nem ninguém.
Assim mesmo é que é, sem medos, sem fronteiras, sem nada.
Só eu sei o que sofri por ter partido a janela do meu vizinho com uma pedrada certeira.
Armou-se em inclíto cavaleiro e foi dizer à minha mãe que me tinha visto com as botas novas da Bamby a patinhar nas poças da rua. Até parece que era ele que andava a pagar as minhas botas a prestações. Assim de repente fez-me lembrar o D. Manuel Clemente com aquela conversa mole de que o pais que têm os filhos no colégio também pagam as escolas públicas. Como se o meu vizinho fosse também ele responsável pelas botas que a minha mãe me comprou, só porque pagava impostos ao Estado para o Estado emitir as licenças de produção das botas Bamby.
Que grande palerma.
Acho muitíssimo bem que a juventude de hoje tenha uma atitude iconoclasta, de demérito perante ícones que abandonam os seus deveres. O dever do meu vizinho era o de fazer queixa à Junta de Freguesia sobre os buracos na rua, não o de fazer queixa à minha mãe, armado em palerma.
Foi tão bem metida a pedrada, como a queda da estátua.
Abaixo com os palermas. Abaixo com o betão.

Mas o que vinha aqui fazer, não era queixa do meu vizinho, que em última instância ficou uns meses sem a janela da sala - para não ser palerma - mas para propor uma alternativa artística para o síndroma de ninho vazio com que se debate atualmente o nicho da Estação de Comboio do Rossio, onde jazia morto e petrificado, o palerma do D. Sebastião.

Trabalho da dupla italiana:Antonello Serra Sara Renzetti

Duvi-de-ó-dó que houvesse algum palerma que se fosse agarrar a isto.

E se entretanto...

Ouvirem: cabum!!!!!
Foi a minha braguilha a rebentar, e as banhas a espalharem-se pelas paredes da copa.

Vou almoçar.
Deus me ajude.

Hoje deu-me para isto

Para vestir umas calças do ano passado.
Agora estou aqui que nem consigo respirar.

8 de maio de 2016

Dos colecionadores

Aquilo que mais tenho colecionado na vida são pessoas perdidas.

Tive uma pessoa na minha vida, numa altura em que andava escondida - para não ser sovada -, que se chamava Josina. A minha amiga Josina foi a primeira pessoa negra que tive na vida e tive-a precisamente numa fase muito negra. Era muito sisuda e irascível, mas quando me via, largava a correr em cima das grandes pernas ossudas, e ainda hoje me espanta, como é que [nessas alturas] conseguia fazer um sorriso tão alvo, numa escola tão escura.

Tive uma ginasta na minha vida, numa altura em que fazia muito bem o pino. A Susana protagonizou os melhores recreios de que tenho memória porque foi ela que me ensinou a chegar com os pés à cabeça, apoiando-me apenas nos braços. O flick à frente, que eu fazia aos 5 de seguida, desde a porta da secretaria até às escadas da cantina, perdiam a graça toda quando ela fazia um mortal atrás, a partir do muro alto do pavilhão de ciências. Ainda hoje me espanta, como é que se perde a melhor amiga, por um salto no crescimento.

Tive um génio na minha vida, numa altura em que ainda não havia testes que testassem isso. Sentava-se em meditação, com as pernas muito cruzadinhas, em cima duma secretária na aula de português. Calem-se, dizia a Sara de olhos fechados, estou a tentar perceber de onde me vem a alegria. Era tão inteligente que resolvia problemas através da poesia, e resolvia a vida com cálculos de cabeça. Ainda hoje me espanta, como é que uma menina tão pequenina pode deixar uma saudade tão imensa.

Gosto muito de coleções.
Acho que era bom começar uma coleção nova.
A coleção das pessoas achadas.










Scientific Collections of D.C.’s National Museum of Natural History 

6 de maio de 2016

On-line

Tenho o stock de roupa (e sapatos) na última desgraça.
Conto-vos por isso [que eu conto-vos tudo] sem pejo e sem vergonha, que perdi a pachorra para andar de volta da trapajem, no veste-e-despe 36-38-36-38-36-38-36-38-36-38, mas tá-me tudo apertado? o tira foto ao espelho para postar para as seguidoras: uau, estás ótima para 40 anos! a somar à falta de condições a tardoz, e ralas mamas na frontaria, e é isto que aqui vedes, uma Uva falida, com um guarda roupa nojento.
Não compro nada para mim há meses sem fim, e isso tem vindo a notar-se na quantidade de vezes que visto a mesma camisola.
Fiz queixa à amiga moderna, e obtive uma certa resposta.
Ahh, eu agora compro tudo on-line!

Ai sim? Muito me contas.
O que temos então no mundo on-line das mulheres modernas...





@tudo na Zara on line

Fonix, mil vezes a mesma camisola.
Ó ó minha Senhora? Traga-me aí um 40.

5 de maio de 2016

Granda espiga!


O título é irmanado com o dia de hoje, que por sua vez se irmana comigo.
A minha mãe costumava dizer que eu era uma espiga, uma espécie de haste fina, loira e irrequieta.
Ainda hoje, quando vou dançar, não me dá jeito nenhum fazê-lo sem ser de braços no ar.
Sou uma espiga dourada, e tenho espigas todos os dias.

A maior espiga que me lembro foi a de ontem.
Sabem aquele dia em que depois de muitos anos, muitos meses, muitos dias, muitas lutas, muito estudo, nomeadamente em línguas estrangeiras, quase chinesas, muita estafa, muito treino, e em que tu és a água da experiência, do saber e do querer, e ora passas naquela montanha e contornas a montanha, ora encontras um muro, e superas o muro, ora cais num precipício catarático, e cais de pés perto da margem, e depois disto tudo, já na foz, pingando água e sem um pingo de força, uma pergunta, uma única pergunta isolada, numa sala cheia de gente, e vês-te novamente no lençol de água, à espera de uma brecha na rocha dura, que te permita renascer.

Aquilo ontem foi uma granda espiga.
Mas hoje, morta de cansaço, encontrei vivo em cima do meu teclado, um ramo de flores silvestres, gritando:
Desta vez foste água, da próxima serás fogo. 

3 de maio de 2016

Um presente de quem dedica a vida aos livros

Caíram-me assim, os dois, como um dia me caiu Elena Ferrante, em cima do colo.
Pela mesma mão cuidada, e de grande saber, que me embala em mares onde nunca naveguei.
Carlos Drummond de Andrade e o francês Pascal Quignard.
É tão bom ter alguém que nos ilumina.
Sempre grata.
Obrigada.



Morrer é mais difícil do que parece - o texto de Paulo Varela Gomes

«Tenho um cancro de grau IV. De cada vez que abro o teclado do computador na intenção de escrever, ocorre-me a frase, já mil vezes repetida, “Quando estiverem a ler estas linhas, é provável que o autor já não esteja vivo”.

São incontáveis os artigos, livros, documentários e filmes sobre pessoas que morrem de cancro. Nunca vi nenhum porque não aguento o stress mas ouvi dizer que alguns são eficientes e fazem os espectadores chorar muito. Não vou escrever aqui um artigo desse género, primeiro, porque não sou capaz, e em segundo lugar porque a história da minha doença e daquilo que tenho feito para lidar com ela tem algumas características muito peculiares que podem interessar a todo o género de pessoas que se preocupam com a vida e a morte e que pensaram com seriedade no tema deste número da Granta: “Falhar melhor”.

Tudo começou quando acordei uma manhã com um inchaço do tamanho de uma amêndoa no lado esquerdo do pescoço. Iludido por uma espécie de incredulidade optimista, pensei que se tratava do resultado de uma infecção nos dentes ou na garganta. Desenganou-me um médico especialista dessas áreas com quem fui falar alguns dias depois: “O senhor tem uma massa na garganta. É melhor ir ver isso rapidamente.” Estava muito grave e sossegado, ele. Percebi depois que nunca lhe tinha passado pela cabeça que alguém não soubesse o que quer dizer “massa” em termos orgânicos. Esta foi a única consulta médica a que a Patrícia, minha mulher e minha “curadoura”, não me acompanhou. Estava a ajudar a Rita a podar as videiras da Vinha Comprida. Quando lhe telefonei a transmitir a seca mensagem do médico, percebeu tudo e diz-me que ficou imenso tempo a olhar lá para o longe, para o pinhal sobre a várzea, com as lágrimas a correr-lhe pela cara.