Ontem, já tarde, enquanto consultava a já compostinha página do Fólio de Óbidos para este ano, li, por um acaso muito casual, um poema de Ary dos Santos.
Ary dos Santos foi o nome da minha rua durante 10 anos. Antes desta, José Gomes Ferreira, e agora é um outro escritor que me recebe e cumprimenta, lá do alto da imponente parede, que faz esquina com o Duque.
É engraçado como antes de tudo isto, na minha fase menos católica, eu tenha morado numa rua com nome de Padre, também ele escritor.
Ontem, já tarde, enquanto lia deitada, alguma coisa de divino me dizia, que se nunca leres poesia, jamais serás escritora.
E era assim o poema que li, ontem à noitinha, pela primeira vez.
Era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia
Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu entardecia
Era tarde, tão tarde, que a boca, tardando-lhe o beijo, mordia
Quando à boca da noite surgiste na tarde tal rosa tardia
Quando nós nos olhámos tardámos no beijo que a boca pedia
E na tarde ficámos unidos ardendo na luz que morria
Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol amanhecia
Era tarde de mais para haver outra noite, para haver outro dia
Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria ou se és a tristeza
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Foi a noite mais bela de todas as noites que me adormeceram
Dos nocturnos silêncios que à noite de aromas e beijos se encheram
Foi a noite em que os nossos dois corpos cansados não adormeceram
E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo fizeram
Foram noites e noites que numa só noite nos aconteceram
Era o dia da noite de todas as noites que nos precederam
Era a noite mais clara daqueles que à noite amando se deram
E entre os braços da noite de tanto se amarem, vivendo morreram
Eu não sei, meu amor, se o que digo é ternura, se é riso, se é pranto
É por ti que adormeço e acordo e acordado recordo no canto
Essa tarde em que tarde surgiste dum triste e profundo recanto
Essa noite em que cedo nasceste despida de mágoa e de espanto
Meu amor, nunca é tarde nem cedo para quem se quer tanto!
José Carlos Ary dos Santos - Estrela da Tarde
Este gajo era genial!
ResponderEliminarQuando soube que a letra de "Cavalo à Solta" foi escrita em dez minutos, numa tasca barulhenta na toalha de papel enquanto jantava...
...e é para mim um dos grandes poemas e talvez a mais bela letra da música Portuguesa...
Minha laranja amarga e doce
Meu poema
Feito de gomos de saudade
Minha pena
Pesada e leve
Secreta e pura
Minha passagem para o breve
Breve instante da loucura
Minha ousadia, meu galope, minha rédea,
Meu potro doido, minha chama, minha réstia
De luz intensa, de voz aberta
Minha denúncia do que pensa
Do que sente a gente certa
Em ti respiro, em ti eu provo
Por ti consigo esta força que de novo
Em ti persigo, em ti percorro
Cavalo à solta pela margem do teu corpo
Minha alegria, minha amargura,
Minha coragem de correr contra a ternura
Minha laranja amarga e doce
Minha espada,
Poema feito de dois gumes
Tudo ou nada
Por ti renego, por ti aceito
Este corcel que não sossego
À desfilada no meu peito
Por isso digo,
Canção, castigo,
Amêndoa, travo, corpo, alma,
Amante, amigo
Por isso canto,
Por isso digo
Alpendre, casa,
Cama, arca do meu trigo
Minha alegria, minha amargura
Minha coragem de correr contra a ternura
Minha ousadia, minha aventura
Minha coragem de correr contra a ternura
:)
Muito bonito!
EliminarSó não sou é grande apreciadora do Fernando Tordo.
Mas a letra é linda.
Pois...
Eliminar...eu também não, embora seja um excelente compositor.
Já era hora de alguém fazer uma versão disto mais actualizada...
(...e olha que, agora que falo nisso...)
:)
https://www.youtube.com/watch?v=7tcTrOq_vao Uma versão diferente.
EliminarCM
Uva, acabas de pôr aqui, só, um dos meus poemas preferidos. E sim, Ary dos Santos, acho eu, também faz parte da lista dos que vieram ao mundo para ser geniais, e foi, gosto tanto. Lindo, não é? E "Cavalo à solta", que já aqui está em comentário, também. Procura os poemas dele, vais gostar, também é dele a letra da célebre "Desfolhada" cantada pela Simone, por exemplo e muito mais coisas que vale a pena ler.
ResponderEliminar(eu gosto do Fernando Tordo :))
Ando a descobrir a poesia. É uma nova viagem. Mas difícil como tudo.
EliminarSabes, ler gajos como este e o Pessoa deram cabo da minha capacidade de ler poesia...
EliminarNo entanto, por força de estar numa editora em que o editor era poeta, acabei por conhecer alguns poetas, dos que ainda pertencem ao clube dos poetas vivos. E acabei por conhecer a obra deles.
Deixo-te aqui alguns nomes, caso queiras procurar, e digo-te que não sendo eu um grande fã de poesia, gosto de os ler:
Emanuel Lomelino
Joel Lira
Olívia Santos
Paulo Nogueira (tive a honra de ser convidado para apresentar o livro dele "2073)
Todos eles tem livros editados pela "Lua de Marfim Editora" embora os dois primeiros tenham uma extensa obra espalhada por diversas editoras. Se quiseres descobrir algumas coisas deles, procura no facebook.
(se tiveres dificuldade, procura o meu perfil e vê na minha lista de "amigos", que eles constam lá)
:)
REALMENTE, E DIGO-O CANTANDO A TODA A GENTE, DESDE QUE TENHO UM BLOG QUE SOU INFINITAMENTE MAIS RICA!!!
EliminarObrigada Gilinho.
Pois é. E também acho que é preciso um determinado estado de espírito para ler poesia, assim como com a música que também escolhemos mediante o estado de espírito em que nos encontramos, se estiveres em modo desassossego a poesia não será o ideal, penso eu, acho que requer alguma quietude, tranquilidade, precisamente por exigir, muitas vezes, um maior esforço de compreensão, uma pessoa pode ficar ali encantada com a composição, com a harmonia da junção das palavras, mas sem ter percebido nada, (também há quem diga que a poesia não é para perceber) e faz muito pelo pensamento abstrato, que também dá muito jeito e pela capacidade interpretativa.
EliminarAry comove-me até aos ossos.
ResponderEliminarBeijos, Uvinha :)
Tu és a poesia com duas pernas.
EliminarEntão ouve este poema na versão dos Amor Electro. Genial!
ResponderEliminarO genial Ary na voz de Gisela João
ResponderEliminarhttps://www.youtube.com/watch?v=W3Bwb1GgqXA
O Mestre
ResponderEliminarTentei fugir da mancha mais escura
Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.
Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.
Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão...
Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que me sai, sem voz, do coração.
David Mourão-Ferreira