24 de janeiro de 2014

Assuntos Póstumos




Escrevo hoje sobre a atualidade mórbida e sobre os assuntos póstumos que tanto parecem interessar o nosso povo.
Temos tido pano para mangas e os últimos dias têm sido proveitosos.
A prova está visível, e basta espreitar as caixas de comentários dos jornais on line, para vermos de imediato o enorme interesse que tudo isto suscita.
Isso e a impressionante frieza das pessoas, autênticos juízes do além, que fazendo horrendas decapitações em praça pública, fazem já da morte e dos mortos, um certo estilo de vida.
Tivemos muitas ondas, muitas praxes, muito cavalo na estrada, muito pescador ao mar, muito crime passional.
É disto que o meu povo gosta.
Se alguém morre, o assunto arrasta-se semanas e semanas nas televisões e nos jornais. Só o telejornal das 20h mata em média 80 pessoas por episódio. 50 que morrem de verdade e mais 30 que são mortos à pancada pelo virtuoso povo que os julga. O povo é perito na matança.
Dissecam os mortos e a vida dos mortos, como faziam às rãs nas aulas de biologia. Assim que se avista mais um caso no telejornal, esticam o falecido de braços e pernas abertas, colocam-no em cima da mesa da sala e por ali andam às voltas verificando o cadáver, cheirando-o, apalpando-o, vendo se o coração era bom ou se alma ainda lá está, presa entre os dentes. E não o largam da mão. Levam-no para o café, para o emprego, para a barbearia, e até que não apareça outro caso, aquele morto é sugado, na verdadeira aceção da palavra, até ao osso. É um festim.
Tudo excita o santo povinho. A família chorosa, a esposa desolada, a família em abraços, as flores em pilhas.
Por estes dias, tudo o que está morto é bom. Podiam ser os maiores canalhas desta vida, mas se morreu é imediatamente elevado a santo.
Cria-se a moda do Panteão e a moda da cremação. Eu fico expectante: para quando a moda da pira Viking afastando-se da margem do rio, em chamas?   
Tudo é elevado ao extremo, passam-se horas, dias, semanas, discutindo no Parlamento a última morada do Eusébio. Há apostas a correr sobre se o Cavaco irá para o Panteão ou será enterrado nas selvagens, juntamente com as suas cagarras. O homem está vivo! Mas o povo não quer saber. Matam-no só para ter o prazer de o enterrar. 
A morte é, por estes dias, um acontecimento nacional que assume grande importância social e até de elevado desenvolvimento económico.
As funerárias não sabem já o que mais inventar para satisfazer os mórbidos desejos do povo. Ele é guest list para o enterro, ele é música no velório, ele é urnas com luzes néon, pois pode o morto querer ler - à falta de ter o que fazer -  um livrinho ou dois, na sua morada eterna.
E o menino da Madeira? Ah! Estava já tudo de enxada na mão, a salivar pela notícia do rapto do garoto, que vendido a Ingleses por dois reis de mel coado, acabaria escravo numa quinta escocesa. Acabou tudo em bem, felizmente, mas o povo está doido, o povo quer é sangue, desgraça, assuntos póstumos para esfrangalhar semanas inteiras. O povo quer é saber, se na confusão do rapto, a família não terá vendido o rim esquerdo do pobre menino. 
Mas e os vivos? Há ai alguém interessado nos vivos?
Sim, há. O Governo.
Para quê?
Para os matar.
Porquê?
Porque é disso que o povo gosta...

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