3 de janeiro de 2014

Paris - Um conto inacabado

Não sabia já de onde lhe nascera o sonho de ir a Paris, apesar de, e especialmente nos dias que se seguiram à notícia da viagem, ter tentado em vão, levar a sua memória onde ela já não sabia ir sozinha.   
Interessara-se sempre muito pela imagem que tinha da cidade. O seu melhor amigo de infância, Titi, um francês muito louro e magrinho com quem costumava passar os três meses de verão, fazia-lhe as delícias dessa época e sempre que chegava um novo início de férias, era um manancial de brinquedos que nunca vira até então, surgirem-lhe no grande quintal de pinheiros, onde uma rede por cima de um muro pequenino separava as duas casas. Para uma criança modesta, prima em 2º grau do interior alentejano, um avião vaivém que deslizava zunindo numa corda dupla, um par de skys aquáticos, duas barbatanas e um colete amarelo, pareciam-lhe de outro mundo.
Não era comum comprarem-lhe brinquedos, quer dizer, desses brinquedos tão diferentes, que não eram bem brinquedos, eram antes coisas extraordinárias que vinham de Paris.
E de Paris vinham muitas outras coisas. Vinham gomas Haribo, pastilhas elásticas em berlinde e câmaras-de-ar de enormes pneus, onde cabiam os dois, os quatros e todos os amigos de praia com quem partilhava aqueles dias.
Vieram também de Paris os primeiros beijos de verão, que ainda hoje revisita, sobretudo se lhe vem à ideia o seu sabor delicioso. E era Titi, que corria à sua frente, levando na boca o beijo roubado. Quantas vezes a ouviam gritar: Titi, fou, vous êtes fou! E que saudades daquele menino magrinho. Onde estará Titi?
Ao fundo da rua de terra batida, onde gostava em pequena de acelerar numa bicicleta de pneus amarelos, vivia uma família francesa. Claro que a família francesa, ou “os franceses” eram ainda mais apetecíveis do que o franzino Titi. E eram imensos.
Uma casa cheia de miúdos e graúdos que ali se juntavam no repasto dos dias e que falavam em comer, sobretudo caracóis, que vinham a ser cozinhados fora da casca e metidos novamente lá dentro.
Todas as crianças da casa eram rapazes. Sempre tivera queda para rapazes. Nada encontrava nas raparigas de que gostasse. O corte de cabelo, sempre muito curto, para fortalecer – coisa que nunca chegou a acontecer -, joelhos esfolados, pernas longas e espírito rebelde, eram de tudo menos de menina, e esses franceses da casa ao fundo, o Titi, e anos depois muitos amigos da praia, recordando-os agora e trazendo-os mais para a frente para os ver melhor, poderão ter sido os principais causadores desta espécie de alegria que sentia sempre que pensava em Paris.
Poderia radicar nesses tempos, a sua obsessão? Mas porque seria uma obsessão se nunca lá tentara ir?
Rebuscou uma e outra vez, nessa memória que teimava em não aparecer, e novamente chegou a parte nenhuma.
Não era certo que na reminiscência do passado radicasse o seu sonho antigo de visitar Paris.
Tinha também partilhado com primos alemães, dias solarengos e quentes de verão.
Uma das primas, grande amiga de quem se despedia em setembro sempre em lágrimas e em nervos, era a mais viva memória desses dias. Isso e o cheiro das malas. Cheiro de quem viaja, cheiro misturado de roupa suja e roupa lavada, cheiro de cigarros escondidos, de pastilhas de mentol; tudo misturado em cores, em calções de cores fortes, calças rasgadas e discos dos AH-A.
Todos os anos, os primos traziam os seus Marcos alemães que viriam a comprar, anos mais tarde, o seu afastamento e o corte radical com quase todos eles. Nunca gostou da soberba alemã. Logo desde pequena se habituara a ser pobre, mas o seu tipo de pobreza não era uma pobreza miserável, não, era pobrete mas alegrete, como sempre gostava de recordar. E ser alegre nesses tempos era qualquer coisa que não estava ali à mão de semear, pelo menos não à custa de um punhado de marcos. Nem de escudos.
A alegria não se compra, pensava muitas vezes, a alegria é um sentimento que se ensina, de geração em geração, que se passa no genes, nas festas de família, nos Natais à roda da lareira, nas matanças de tantos porcos, nos bailes dos Santos Populares ou em outros tantos Carnavais.
Alegria foi aprender a dançar em cima dos pés do pai, a nadar pequenina nas suas costas, a ser amarfanhada no abraço da mãe e tão amada por avós apaixonados, naqueles verões quentes da sua infância.
Agora que crescera, precisava de saber outras coisas, sobre outros sítios, sobre outros sentimentos.
precisava de sair, tão somente para se conhecer melhor, mas sobretudo para aprender a viver sem alegria da infância, agora transformada numa coisa que chamava de maturidade.

Partia para Paris nessa mesma tarde.

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