31 de maio de 2014

O significado da palavra ABUSO.

 
A história é muito antiga, tão antiga que a imagem que tenho dela é já difusa.
Talvez o meu blogue sirva sobretudo para isto, para me lembrar das histórias, para que a memória não me leve, no pardacento dos dias, as recordações que guardo da minha vida.
Assim, no dia em que as quiser contar direito, sobre quaisquer linhas retortas, poderei lembrar-me delas, pois que muitas não poderão, nunca, ser esquecidas. Como esta.
Madalena.
A história desta menina é uma história dura.
Dura para mim, que tinha acabado de me formar e fui deixada à minha sorte numa escola de intervenção prioritária (TEIP) e dura para a menina, que não vendo um fim à história, se viu para sempre nela, porque decerto ainda perdura.
A Madalena chegou a Portugal com 6 anos.
Fazia parte de um protocolo de cooperação entre Portugal e Angola, na altura muito em voga, sobretudo por ser coordenada por um conceituado cirurgião plástico e cirurgião pediatra português, e que veio acompanhada de um progenitor (vamos chamar-lhe assim, já que a palavra PAI não cabe nesta história) angolano, seu tutor, a quem foi dada a oportunidade de trabalhar no mesmo hospital em que a menina fazia tratamentos, durante o tempo que eles durassem.
A Madalena tinha, e tem, um problema físico relativamente incapacitante, que tratava num hospital da capital e que a obrigava a usar umas próteses nas pernas, que lhe pesavam na alma e lhe davam um andar estranho, e por isso, diferente.
Mas a diferença da Madalena não era só física. Com efeito, a menina era diferente de todas as meninas daquela escola. A Madalena era uma menina abusada.
Quando se fala em abuso, a maioria das pessoas pensa em violação.
Sim, há decerto uma violação, mas no sentido mais amplo da palavra, porque violação é abuso, mas abuso é muito mais do que violação.
Mas não, a Madalena não foi violada, mas sofria um imenso abuso físico, constante e brutal, que o progenitor perpetuava, para que a sua permanência em Portugal perdurasse, ou seja, era o progenitor que infligia à Madalena os danos físicos que, de certo modo, a obrigavam a manter os tratamentos que ela fazia em Portugal.
Quando conheci a Madalena, já ela cá estava há dois anos. Sem melhoras.
Lembro-me bem da forma direita como se sentava na pontinha da cadeira, e de como andava com as costas estranhamente descaídas para trás, quase como se não aguentasse a roupa no corpo. 
Não deixava ninguém tocar-lhe.
Não me lembro de quantas vezes que a vi a chorar ao portão da escola, encolhida, com malinha nas costas. Era a única menina que não queria voltar para casa.
O progenitor vinha todas as tardes, sorridente, cumprimentava a diretora, as auxiliares, e levava a menina pela mão, pelo caminho estreito de terra batida que bordejava a escola, e ela olhava para trás, uma e outra vez, dando sinais que ninguém percebia.
Eu, que tinha a meu cuidado cerca de doze crianças em risco, olhava para ela e não a via a melhorar. Escrevia coisas sobre ela, e pensava coisas dela, e sentia-me mal por ela, porque era tudo inútil. A visita domiciliária era inútil, a conversa com aquele tutor era inútil, eu era inútil, a escola era inútil, os médicos eram inúteis e tudo o que tinha, os estúpidos relatórios, as infrutíferas reuniões multidisciplinares, o apoio alimentar, não serviam para nada.
O cerne do problema da Madalena não estava nas próteses tão pesadas que usava, tão pouco nas dificuldades financeiras e materiais ou nas letras que não entendia, que lhe toldavam o futuro. Era naquele regresso a casa, aquele sofrimento infantil e constante, aquele afastamento físico que se impunha a ela própria, sem liberdade, sem culpa, nas brincadeiras que não tinha, no ser amorfo que se tornava a cada dia.
Passei então a dedicar todo o meu tempo aquela criança. A escola achava que a menina tinha um problema mental, além de físico. Em Portugal não havia, à época, grandes apoios na saúde mental para crianças, os psicólogos eram contados a dedo, ainda hoje há falta de psicólogos nas escolas, 20 anos depois. Na área do Serviço Social, que era a minha, ainda pior.
Como técnica, não podia desfraldar no meio da escola a bandeira da intervenção, ou seja, não podia dar a conhecer aos outros meninos que intervinha nesta ou naquela criança, sob pena da estigmatização e crueldade infantil, tão profícua em rotular os diferentes, ainda que inocentemente.
No início, a Madalena tinha muito medo de perguntas. A resposta pronta de 'não sei' era desculpa para um medo gigante, que se via crescer a cada dia.
Certo dia, na sala de aula, enquanto registava a condição física dos meninos na primeira hora da manhã, reparei na Madalena. Era muito comum os meninos virem fraquinhos, a abanar de fome, mas a Madalena estava visivelmente transtornada.
Ao aproximar-me da mesa dela, inclinei-me e pousei a minha mão nas costas dela.  
O que se seguiu foi de tal forma impressionante, que receio não ter as palavras certas para escrever, (que não tenho), e que não tenha ainda os sentimentos no lugar, devidamente distanciada como se quer numa técnica, para espelhar a plenitude da palavra ABUSO.
Madalena estava queimada.
Nas costas pequeninas, desenhava-se um mapa. Uma mapa sórdido. Uma mapa desenhado com pontas de cigarros, feridas abertas que lhe marcavam a pele, a infância, e toda a (nossa) vida, antes e depois daquele dia.
Abuso. Um progenitor que magoa a filha, que lhe bate e lhe retorce as pernas depois de cada tratamento, que a queima com pontas de cigarro para a fazer prometer que não conta o que lhe faz, e que a faz crer, acima de tudo, que o sofrimento dela é para um bem familiar maior, que lá onde viviam era pior, que precisavam de ficar.
Abuso. Uma sociedade que não vê, que não tem meios para resolver, parar ou enfrentar, que não é capaz de prevenir, mesmo que olhos médicos vejam todos os dias, esses mesmo maus tratos.
Abuso. Uma escola displicente, cheia de miúdos-órfãos, descrente, que encolhe os ombros e não se aflige, não se aplica, não tem meios nem os procura, que se demite, que se demitiu, deixando nas mãos de uma miúda, que era eu, a resolução de uma problema tão profundo, tão grave e tão miserável.
Abuso. Uma sociedade que não se compromete com os outros, e que no fim do seu turno, vai para casa, tomar conta da sua vidinha, como se a vidinha dos outros fosse só mais um episódio de uma série de terror, que à primeira oportunidade se pode passar para a frente.
Abuso. Madalena não foi retirada ao progenitor. O progenitor-abusador é o primeiro a beneficiar do benefício da dúvida, da redenção. A família é suprema, mesmo que a criança esteja em risco.
Abuso. Há oportunidades que nunca deveriam ser dadas.
Tenho desta história uma lembrança muito difusa.
Misturada em tantas outras, esta aparece-me sempre que oiço falar em Carolinas, Rui Pedros, Joanas, Catarinas, e em tantas, tantas outras que povoam o lado escuro da nossa sociedadezinha global, ridícula e mesquinha.
Por isto é que eu sou uma eterna preocupada com o crescimento da caridade, do povo que acolhe, que dá de comer, que cola com cuspo as feridas abertas. Não é o povo que deve ajudar estas crianças, não é o povo que tem de arcar com tamanha responsabilidade. Não tem arcaboiço para isso.
Mas é o Estado, o Estado-Providência, as instituições, que vemos desaparecer a cada dia, que deve ser o cerne da nossa LUTA, da nossa manifestação.
As Madalenas desta vida, são pessoas como nós.
Mas lá está.
É tão difícil virar um espelho como é fácil seguir em frente...
É que na vida, nem tudo passa.
E esta culpa não morre sozinha, morre comigo.

(Madalena é um nome fictício.)

2 comentários:

  1. Sei de algumas crianças que tiveram sorte, porque houve uma intervenção da Comissão e do Tribunal e foram entregues a outras famílias. Num julgamento surpreendeu-me que houvesse testemunhas que vinham protestar contra a intervenção do tribunal, sem conhecerem a situação das crianças, apenas porque sim, porque os pais lhe eram simpáticos e o tribunal queria era tirar-lhe os filhos.

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  2. Também assisti a isso, mas na maior parte dos casos, as técnicas dão sempre uma 2ª oportunidade à familia nuclear. Só quando não pode ser mesmo é que seguem para avós, tios, e internamento. O caso aqui era bastante mais difícil porque a menina era estrangeira, e se ela fosse para casa, em Angola, ficava sem os tratamentos e para continuar com os tratamentos tinha de vir outro tutor de Angola, e tudo isso era já uma grande complicação para todos. Enfim. Metem-se nelas mas depois não sabem como resolvê-las. E o tal médico? Nem um pio.

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