27 de janeiro de 2015

Espreitar o Inferno - 70 anos depois.

Ando novamente metida comigo mesma.
Soturna, arrastada, talvez um tanto ou quanto apática da vida de todos os dias.
Será que a imersão voltou?
Será que me encontro outra vez imersa naquele líquido social que escorre da superfície das coisas, e que me afunda em questiúnculas?
Não.
Não estou afundada em felizes banalidades, superficiais.
Tomei um caminho diferente, encontrei um obstáculo e parei.
Foi isto que me aconteceu.
Porque não posso ser eu como toda a gente que passa pela vida de cabeça erguida, quase sempre de narinas abertas, ao sabor dos cheiros agradáveis de todos os dias?
Que mania tenho eu de querer sugar o tutano, se é na carne que se encontra o melhor sabor?
O que é que raspou no quê, para produzir (em mim) esta faísca, este fogo?

Gosto de coisas banais, claro, sou banal, mas há em mim alguma coisa de muito estranho que me impede de seguir em frente, como se fosse um condutor aziago que teima em parar para ver o acidente, para ver o ferido, ou quem sabe o morto; o condutor à espreita de tomar consciência que ali aconteceu uma fatalidade, que é preciso parar para ver que sim, que há fatalidades que acontecem aos outros, e se seria banal se nos acontecessem a nós.
Talvez o meu problema seja o de não conseguir avançar banalizando a fatalidade dos outros.
Mas por outro lado, tirar proveito da fatalidade dos outros é mórbido, é quase como se aquele momento fosse escoado para dentro de nós, inundando pelo caminho as sedentas e necrófilas papilas gustativas, ao invés de escorrer, como escorre o sangue, sem direção, um sangue que se espraia por ali, sem interesse, como o despojo de uma vida, como a água que morta não move mais nada, nem moinhos, nem folhas.

Então o meu problema é parar? É saborear? Tirar proveito?
Se parasse só para ver não estava agora com tantas questões, afundada, mas o meu caso é grave.
Paro para pensar.
Paro e percebo que a fatalidade dos outros tem (ainda) efeito em mim.
E ademais preciso de escrever isto agora, para não me esquecer depois, porque no que concerne à minha memória, o tempo fez horas extraordinárias.

Hoje falo do Holocausto.
Claro. 
Falarei sempre do Holocausto.
Não quero pertencer ao vasto grupo de inconscientes (e inocentes) que banaliza a morte.
É difícil não banalizar a morte e ser diferente do condutor apressado que apita atrás do que p(á)ra para ver. Sim, está um morto na estrada, é uma fatalidade, mas é preciso desimpedir o caminho.
E eu ainda estou vivo...

Tenham calma, parem comigo, ou se quiserem, façam um pisca e avancem.
Eu compreendo que há acidentes que simplesmente não conseguimos aguentar.

Aos que ficam:

A importância das datas é tão somente esta: parar para pensar.
Hoje a data comemora (se é que a palavra comemoração caberá alguma vez neste sinistro livro) os 70 anos sobre o fim da II Guerra Mundial, sobre a libertação dos Campos de Concentração e de Extermínio.

Não podemos banalizar a morte, o Holocausto, porque vejam, o Hitler era só um homem, não era Deus. Hitler reservou para os seus soldados a tarefa da desumanização dos Judeus, soldados que mais não eram do que crianças dotadas, homens inteiros, filhos de famílias ternas, cheias de moral, religiosas, tementes e prósperas.
Porque vejam, não podemos encontrar diferença entre estes soldados e os nossos filhos, dotados de amor, e no entanto foram estes filhos que mataram 6 milhões de pessoas, pessoas humanas, vidas reais.
Porque vejam, o extermínio da humanidade foi (e é) perpetrado por gente civilizada, altamente culta, sofisticada, homens à frente do seu tempo, na literatura, na musica, no pensamento.
Não podemos avançar sem retirar daqui as devidas conclusões, sem pensar nisto, sem passar os olhos nos livros que falam disto, mostrar aos nossos filhos que é possível voltar a acontecer.
Não podemos não estar preparados para isto. Não podemos viver no meio, ao lado, dentro de campos de extermínio (a ganância, o racismo, a xenofobia, a homofobia, o capitalismo) sem perceber o que lá se passa.
Porque não podemos passar pela vida de cabeça erguida, quase sempre de narinas abertas, ao sabor dos cheiros nauseabundos da morte que nos cerca todos os dias, como cercam os explosivos os corpos famélicos de  crianças sírias.
Morremos todos os dias, como podemos banalizar isto.
Quando o Primo Levi no seu livro Se Isto é um Homem escreve que todos os prisioneiros foram substituídos por números tatuados nos braços e na barriga, podemos ver de perto a nossa imagem atual, tão fria, tão numérica...
Porque vejam, estão a preparar-nos para isto, para esta banalização, para esta 'limpeza'.

 
And they said, “From now on you do not answer by your name. Your name is your number.” And the delusion, the disappointment, the discouragement that I felt, I felt like I was not a human person anymore. Lilly Appelbaum Lublin Malnik

2015 ficará marcado.
Ficará marcado sobretudo por ser o primeiro ano em que ficamos irremediavelmente sós, com as nossas imagens, com os nossos livros, e com as nossas memórias. Alice Herz-Sommer, de 110 anos, considerada a mais velha sobrevivente do Holocausto, morreu em fevereiro de 2014.
Estão todos mortos. É preciso pensar nisto. 

2015 ficará marcado.
A marca, que muitos fizeram questão de nos deixar, fica gravada no Cinema, através de antigos e novos documentários, desses que doem muito, desses que não lavam a alma mas que conspurcam antes a pureza e a esperança; na Literatura, com o lançamento de novas obras que nos devolvem à memória o medo dos outros e o medo de nós próprios; na Música, com concertos e artistas de todo o mundo, onde as notas acompanham imagens, e imagens acompanham marchas, marchas fúnebres, tocadas pela pena dos homens por outros homens; em Exposições pelo mundo inteiro, onde haverá total e merecida dedicação aos que trouxeram até morrerem, a morte na alma, e no gene a sobrevivência.

Não deixem de ver, não deixem de parar.
Parar não é morrer.
Não no pensamento.
Não na memória.


Prisioneiros dos Campos de concentração de Dachau no Dia da Libertação 


Desculpem-me se hoje estou soturna, arrastada, e talvez um tanto ou quanto apática da vida de todos os dias.
Amanhã será outro dia.
Obrigada aos que ficaram (para) a pensar...

28 comentários:

  1. Este blog precisa de um botão "gosto". Clicava-lhe BUÉ!!!

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    1. Hahahahahaha.
      Eu hoje estou soturna, até admira teres-me soltado uma gargalhada!
      Olá Mirone!

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    2. «A solução final», foi sem dúvida a pagina mais abjecta da história da humanidade.
      Tenho de concordar com Mirone. Este seu blogue precisa de um pedestal bem acima dos demais.

      ( resolva lá isso dos dias abafadiços e taciturnos, está bem?)

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    3. JM, este meu blog é feito por todas as pessoas que por cá passam.
      Obrigada.

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  2. Parar para pensar é preciso! A memória é que nos pode salvar!
    Fico encolhida por dentro só a imaginar estas vidas, estas mortes...

    Beijo, Uvinha!

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    1. Olá Maria.
      Fui ver na sexta feira passada 'A Noite Cairá' e no domingo 'O ùltimo dos Injustos' ao Cinema Ideal.
      Venho desfeita porque há coisas novas que não sabia. E imagens que nunca foram mostradas.
      Andaram 70 anos a esconder coisas, imagina o que fazem agora.

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    2. Imagina o que será que nós nunca descobrimos sobre as atrocidades. Até que ponto não nos foram veladas informações ou destruídas as provas pelos próprios alemães antes de caírem?

      Tenho muito medo que caia no esquecimento. Acho que quando cair no esquecimento estaremos a dar o primeiro passo para uma repetição.

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  3. Olá Uva:)
    Vim atrás do nosso amigo JM.
    Este assunto diz respeito a toda a humanidade independentemente da raça ou cultura que lhe seja inata.
    Vou reservar a minha homenagem ao silencio, mas deixo-te um bem haja e uma lágrima solidária em memória de todos os que pereceram e ficaram com as suas vida multiladas.

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    1. Olá Sandra! Bem vinda!
      Realmente um assunto que não podemos deixar esquecido nas fotografias e nos livros, não só pela lição que nos traz, mas também, e de algum modo, pela atualidade.
      Um grande abraço aqui da Uva.

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  4. Ontem vi na RTP o depoimento de um senhor que escapou a Auschwitz, hoje no jornal do metro (http://epaper.heute.at/#/documents/150127_HEU/4) vinha um mapa com as vítimas do Holocausto por país. (No mapa o vermelho é o total de judeus e a azul é o total dos que morreram). É horrível... eu fiquei em choque e cito apenas o exemplo da Polónia onde em 3,4 milhões, 3 milhões foram assassinados. Eu acho que todas essas memórias ainda estão bastante vivas aqui na Áustria, afinal não foi assim há tanto tempo... Além disso, a meu ver, também há um complexo de culpa latente. Mal se pode referir o nome Hitler.

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    1. A Polónia, soube domingo no documentário 'O ùltimo dos Injustos' do Claude Lanzmann, tinha já um plano de irradicação de Judeus para Madagáscar, que discutiu com Hitler aquando da anexação. Madagáscar foi a promeira solução. A Polónia tinha 3.4milhoes de Judeus e de resto estava 'farta deles'. Como não conseguiram porque a França não aceitou, resolveram construir os campos na Polónia, onde nasceu em Varsóvia o maior gueto judaico, quase todos gaseados em Treblinka. Soah (documentário de 9 horas) conta essa história muito bem.

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  5. Três em um:

    Primeiro, o melhor de saborear está no tutano.
    Segundo, estar soturno é estar num estado elevado de consciência
    Terceiro, 2015 ficará marcado, por tudo o que está no seu escrito

    Tenho dito!

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    1. Estou afinal num estado elevado de consciência?
      E eu a pensar que estava apenas tristonha.

      Um abraço Rogerio. Já lhe tinha dito que também sou Pereira?

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  6. Boa noite, Uva. Cheguei e demorei-me aqui, pois que o texto manda sorver cada golfada de parágrafos dedicados à memória dos que já morreram. Tal como dizes:"estão todos mortos" , e se a História pudesse de facto, ser bem interpretada, bem entendida, já tínhamos aqui, no Holocausto, um testemunho absurdo de algo que nunca mais se poderia repetir. Os teóricos afiançam que não, a história não se repete, pois ela ensina que dois acontecimentos não se reproduzem de forma semelhante porque as condições humanas nunca coincidem exatamente. É verdade. Contudo, o horror que se viveu não se apagou; existiu ao longo do século XX noutros cenários: os gulag soviéticos, a guerra do Vietnam, o genocídio cambojano com os Khmer vermelhos, o culto da personalidade desde Mao Tse Tung ao "querido" líder da Coreia do Norte, a guerra dos Balcãs, o complexo enredo que se vive no Médio Oriente, a Síria mais recentemente viveiro de jihadistas, e a eternização dos campos de refugiados ( e havia muito, muito mais para acrescentar). Quantas Anne Frank, não houve por esse mundo fora, que não deixaram testemunho? Tudo isto comparável com o Holocausto? Não. E também não é uma simples enumeração de acontecimentos históricos, na minha humilde retórica apenas quero exponenciar o sofrimento que posteriormente outros já viveram e vivem, apenas, porque a história ensina tanto, infelizmente não há quem a entenda.

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    1. A tua humilde retórica tem aí muito sumo. É só o que te digo.
      Um abraço Mia.

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  7. Ao ler este seu texto, se pudesse dava-lhe um Abraço!!!!!

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  8. Cada vez gosto mais de te ler.
    Um beijo Uvinha!

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    1. Também não perco um post teu, mas isso tu também já sabes!

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  9. Uva, ontem chorei com todas as imagens que vi sobre o holocausto, enquanto conseguirmos sentir um aperto no peito e sofrer com o sofrimento dos outros, ainda há esperança não há?. Acredito que seja impossível esquecer uma coisa tão horrível, mas também acho que não estamos livres duma repetição, afinal e como bem disse "desabafosemrodape", continuam a existir focos de horror por esse mundo fora.

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    1. Aquele documentário que deixei ali (Memória dos Campos) a partir do minuto 7:00, não só é para chorar como te garanto que nunca viste nada assim.
      Nem em filmes.

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  10. Tenho sempre palavras desarrumadas no caderno que são o meu quebra-cabeças...História ,estórias...recontos...
    Obrigada por nos ajudares a "repensar",Uva.
    Auschwitz; que na memória perdure...

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    1. Olá Adelaide, ainda bem que há quem pense a vida.
      É essencial fazer esse exercício.
      Obrigada eu, ora essa.

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  11. Adorei o texto! Numa fase da minha vida, estive obcecada por este assunto e li e reli livros, documentários, vi filmes e esmiucei tudo quanto pude, cada história mais horrível que a outra, sofri com eles e por eles e nem sei o que me deu naquela altura. Infelizmente outros horrores continuam a existir por este pequeno globo fora, até parece que é a nossa sina... São atrocidades que é impossível deixar passar ao largo.
    Abraço Uva

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    1. Eu gosto do tema, vejo tudo, leio tudo. Falta-me lá ir. Se calhar para sossegar, quem sabe.

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  12. É de facto brutal. Não consigo ver documentários sobre o tema sem que me caia uma lagrima ou fique, pelo menos, angustiada durante um bom bocado.
    Mas é importante relembrar, para que nunca ninguém se esqueça daquela monstruosidade. Não esquecer nunca, para nunca se repetir!
    Estive lá em 2012, e ao vivo (mesmo desocupado há tantos anos) continua a arrepiar!

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    1. Estiveste lá... talvez vá lá, mas não é ainda.
      Gostava de ir mas sozinha, sem companhia. Gostava de estar só.
      Não sei porquê.
      Coisas...

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  13. Sim. Era algo que já queria fazer há mto, em 2012 lá convenci o macho cá de casa. Tb n sei explicar a "vontade", acho q era um tentativa de exorcizar a coisa.
    Vale a pena ir, mas é mto "bruto".

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