1 de fevereiro de 2015

Sentenças

Cada pessoa uma pessoa, ou em cada cabeça sua sentença.
O pior é que quem tem sentenças na cabeça, acaba sempre por se enforcar com elas, e de caminho, se a sentença for daquelas muito injustas (ou muito estúpidas) - o que normalmente acontece quando o juiz não sabe absolutamente nada do processo e julga mal ou atabalhoadamente - pode acabar por nos enrolar aquela corda ao pescoço, como se durante a laçada apanhasse por acaso todas as outras cabeças que ali estão a presenciar o enforcamento.
Quando encontramos pessoas condenadas por sentenças incompetentes, como são sempre as proferidas pelo mau entendimento da pena que lhes é aplicada, devemos salvaguardar as nossas cabeças, que é como quem diz, devemos afastar-nos o mais que podemos, porque vamos lá a ver, a justiça e as sentenças do povo, inflamadas de erros e de emoções distorcidas, podem condenar-nos à forca. 
E não há forca maior do que enchermos a cabeça de erros e de sentenças mal proferidas.

Ontem por exemplo.
Deu-se o caso de me encontrar numa sala cheia de gente. 
Pessoas comuns, com vagais ligações familiares e de amizade, alguns trabalhadores fabris, outros do campo, um cozinheiro, três reformados, duas licenciadas e uma desempregada. 
Na equação soçobravam três velhotes, que durante toda a cena foram abanando a cabeça afirmativamente, quase sempre de olhos fechados.
No cadafalso, sentada numa cadeira alta, e na ponta da sala, uma senhora pequena e redonda - que levava amiúde a mão ao carrapito apertado, tentando entalar a melena mal cortada que lhe ficava pendurada na testa - abanava os pés traçados, para a frente e para trás, como fazem as crianças pequenas quando não chegam com os pés ao chão. 
Falava alto e gesticulava, e porque gesticulava, não parava quieta na cadeira. 
E lançava o tronco para a frente, para ouvir falar alguém, e quando isso acontecia e se calava por momentos, recostava-se outra vez no espaldar, lançava as pernas gordas para a frente, as duas ao mesmo tempo, cruzava-as no ar, e assim cruzadas voltava ao movimento-baloiço, para a frente e para trás, lançando um vento ao redor que servia para arrefecer a temperatura.

O tema, que apanhei já a meio, desbastava terreno na área do 'RS' e do número de contribuinte nas faturas do supermercado, coisa levada da breca, pois 'essa agora, até tinha muita graça andarem a ver as coisas que uma pessoa come'.
E a conversa seguia animada. 

- Então se uma pessoa quiser comer um camarãozinho, vá, uma sapateira, então eles têm alguma coisa a ver com isso?  Eu cá não ponho lá o número, que isso não vai p´ró 'RS'.
- Mas pode ganhar o carro, aquilo vai lá para o computador e ganha o Audi.
- Mas quem é que consegue alimentar um bicho daqueles? C'aquilo a pessoa tem de ficar co'aquilo cinco anos e sempre a dar de comer aqueles gulosos! Impostos. Então uma pessoa não paga os impostos?
- Ahh pois é! E agora pagam sempre em cartão, c'a pessoa se tiver uma dívida e ganhar o prémio, não pode pagar a despesa e tem de lá ir ao supermercado gastar... ora, ora, ora, sabem muito!
- E é, e já reparou que o prémio sai sempre lá para o norte? Aquela gente do norte arrebanha tudo.
- Isto agora é tudo dos supermercados.
- É uma vergonha! - continuava gesticulando a senhora no cadafalso - então se eu lá for comprar um 'peservativo' ficam a saber que uma pessoa usa aquilo não? Isso ainda é pior! Se consigo fazer essas coisas ainda pensam que não estou doente e ainda me tiram a baixa e a comparticipação dos medicamentos!
- Ai andas doente?
- Então não ando tão doente.

E com os braços entrelaçados por cima do peito bojudo, lançando a corda às cabeças dos presentes, a senhora do cadafalso, que proferia sentenças e maus juízos para uma sala repleta de gente, ia condenando os presentes ao terror dos maus julgamentos.

- Mas oiça (interrompi eu a medo), isso não é bem assim, o número de contribuinte nas faturas serve para evitar a fraude e equilibrar ...
- Oiça cá menina, a menina é muito bonita mas é ainda muita nova para perceber estas coisas. Você quando for da minha idade logo vê como é que elas lhe mordem!

Os velhinhos, ainda de olhos fechados, abanaram as cabeças afirmativamente, e as restantes pessoas, que assistiam ao interessante discurso, mexeram-se nas cadeiras e ajeitaram as cordas que tinham no pescoço.

11 comentários:

  1. Sala cheia de gente: "pessoas comuns, com vagais ligações familiares e de amizade, alguns trabalhadores fabris, outros do campo, um cozinheiro, três reformados, duas licenciadas e uma desempregada."
    Só uma desempregada,
    acho que se manteve calada
    a sala
    tinha uma presença seleccionada
    e ela
    fugia à regra, coitada

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    1. E não abriu o piu. Disse que não gostava de marisco, e a meio da conversa levantou-se e foi fumar um cigarro à janela.

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  2. ouviu? " a menina é muito bonita mas é ainda muita nova para perceber estas coisas..." contenção, muita contenção, pois num assunto tão sensível à volta 'RS, audis e impostos, vai a menina e debita, ainda que cautelosa? Veja lá isso! Arrisco perguntar: estas pessoas não estavam numa sala "à espera de Godot" ou da vacina da gripe, pois não?

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    1. Não! Era uma festa de aniversário de moços pequenos. Eu sentei-me sossegada (depois de abandonada pela herdeira) e vi-me no meio deste grupo muito animado, que ululava de volta de uma 'tia' de Famões, costureira numa fábrica de roupa interior. Depois falei de forma mais recatada com a senhora e ainda tentei explicar a teoria, mas ela riu-se condescendente e disse que eu era muita tenrinha e para não meter o número de NIF que eles eram bem capazes de me diminuir o ordenado se soubessem que eu 'comia certas coisas assim mais caras'.

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  3. Vejam bem, uma menina bonita e tenrinha a dizer essas coisas.... e vê lá os que pões nas faturas ein?? :D:D:D

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    1. Essa foi a melhor parte da festa.
      Chamarem menina bonita a uma Uva Passa, com 38 anos... Weeeeeeeeeeeeeeee.
      Pró ano tou lá batida outra vez!

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  4. Tu escreves bué...
    Independente do que disser o post... boa semana :P
    (dei a minha...)
    (sentença)

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    1. Olha SOG, eu escrevo bués e não digo nada de jeito.
      Tu é que fazes bem. Não lês, não te chateias, e enfim, és mais feliz assim.

      (Estás bom miúdo?)

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    2. Oh... tão fofa:)
      é que sou mesmo mais feliz assim :)

      Estou bom (nunca fui "bom"). E a senhorita da cabeça amarela, como tem passado?

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    3. Um nadinha mal. Ando cheia de frio...

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    4. Dizem que é psicológico!
      ...o frio :P

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