Hoje, quando acordei, povoou-me abruptamente a conversa que tivemos ontem, durante o jantar.
Ficaste admirada por te dizer aquilo tudo, mas não era a ti que te dizia, não era a ti que me dirigia.
Às vezes povoam-me ignorâncias, e continuo ignorante por as dizer só a ti, a tal orelha gigante, o tal sentido aguçado, tão próprio dos amigos de longo curso.
A minha boca inquieta, sempre sôfrega, debitando palavras que se soltam, fugidas como prisioneiras, que não me lembrei de calar, descuidada que fui, impavida que fiquei perante a fuga, disse-as a ti.
Desculpa.
Fui sempre uma boca trôpega, soluçante, de meias palavras, de duplos sentidos, na hora de te convidar a escutar. Há anos que ando perdida em pensamentos sobre ti que ignoras, mas deixa-me agora dizer-te, que não me ouves, o que venho afinal pensando.
Andas perdida.
Percebi há muito que não te interessa a nossa vida de ratinhos, todos na rodinha.
Há anos que andas perdida nessas partes de casa que ambas já habitámos, nos moços tempos de alegria e gargalhadas, em que nos sentávamos trincando fatias quentes de pão, numa fome química, das que se compram nas esquinas escuras a homens sem futuro.
Passou-te a vida a correr, e eu sem te conseguir dizer, que a maneira como andas à toa pela vida, deambulando em partes de casa sem janelas, em que já nada - e nem ninguém - mora nelas, a não ser um passado virado a norte, sem luz para o caminho, é uma maneira macabra de viver, igual às galinhas degoladas, que correm só com pernas, e penas, descontroladas.
Onde terás tu deixado a cabeça?
Perdeste a cabeça e eu perdi as palavras.
Mas percebo que não te interessem cabeças povoadas, bancos corridos de cabeças repletas de vocabulário, de nomes intelectuais, verbos e ações, viagens e livros.
É que a vida dá muitas voltas e afinal, não és tu que estás aqui sentada, porque não queres ouvir mais nada.
Ouve o que não te digo.
Trinchaste a tua vida com o duro cutelo da surdez, arrancando de caminho a tua voz ao futuro, promissor, como promissora era a tua beleza especial, que soltavas nos longos cabelos da mocidade.
Não me ouves agora mas deixa-me que te diga: deixaste-te comer pela vida e agora perdeste a força nos dentes, mandíbulas vorazes, que eram as tuas.
Ficas a olhar para a rodinha, repleta de pequenos seres que engolem a vida, que ao contrário do que pensas, é mesmo para comer.
Anda lá, chega-te aqui a mim. Deixa para trás as gargalhadas químicas, os homens sem futuro, e vem correr na rodinha.
Verás que a minha boca inquieta, sempre sôfrega, cheia de vida mastigada, é muito mais saborosa do que permaneceres surda e quieta, numa casa desabitada.
Hoje, quando acordei, vi a casa a andar à roda.
Vens?
Trinchar a vida... vida mastigada...
ResponderEliminarQuer cá me parecer
que a sua fome, é mesmo de comer
A casa andar a roda, é um sintoma.
Coma!
Foi do vinho, homem!
EliminarObriga-a a entrar na rodinha, sob pena de, um destes dias, ela nem sequer conseguir encontrar a porta de saída da casa desabitada.
ResponderEliminarNão posso obrigar gente adulta. Como diria a Nada no post de ontem: as pessoas não mudam.
EliminarUns na rodinha outros a pé, e outros ainda, deitados. Nada a fazer.
Acabei de ler este texto e não me vou embora sem te dizer que achei isto lindo, mesmo Uva, bolas que super texto este, pedaço de escrita tão, mas tão boa.
ResponderEliminar(Que final de domingo de boa leitura nisto dos blogues, acabei de vir da ilustre casa, não de Ramires mas da Susana e agora aqui, só lucro)
Olá Clau!
EliminarNuma fona tu! ;)
Estás boa miúda?
(Obrigada. Este veio lá do fundo do submundo das coisas.)
Olha não gosto quando me deixas pensativa...fico melancolica...fico uma chata. O pior é que gosto do texto...irritas-me!
ResponderEliminarBoa sorte a ajuda-la a voltar para a rodinha, por vezes é difícil com o medo de perder o equilíbrio. Não soltes a mão.
Ficaste pensativa e irrito-te. Fixe, era mesmo isso que eu queria!
EliminarHahahahahahahahaha
Estive ontem no teu canto e também adorei.
As usual.