16 de maio de 2015

A Mala de Livros



Martina arrancava os livros das prateleiras como se uma catástrofe natural tivesse surgido repentinamente, obrigando-a a salvar o mais que pudesse, antes que a casa lhe caísse em cima.
O cabelo, num enorme desalinho, tentava em vão segurar-se ao elástico que o apanhava na nuca, mas Martina, num aflição crescente, parecia não querer saber da revolução que se desenrolava na sua cabeça e atirava, cada vez com mais fúria, os livros para dentro de uma pequena mala aberta, pousada em cima da cama.
- O que estás a fazer Martina? - Perguntou uma voz rouca de homem.
- Não vês o que estou a fazer? Claro que não vês! Como podes ver se passas os dias enterrado no sofá com esse maldito cachimbo?
Peter, ainda de pijama, viera encostar-se com o jornal debaixo do braço, à porta do quarto de Martina, placidamente, numa óbvia posição provocadora, quase pornográfica, para a qual muito contribuía a sua posição dileta de mão enfiada na virilha e pé apoiado na parede.
Optava sempre por esta posição desdenhosa porque Martina a odiava por lhe parecer uma puta velha e barata, e desde que estivesse sóbrio o suficiente, havia de a representar, como as putas representam o prazer. E era com este mesmo prazer, representado, fingido, até doloroso na sua essência, que Peter verificava a confusão que se instalara no quarto da rapariga.
- Então menina, que temos hoje? Novo episódio catatónico? Mesmo que quisesses nunca conseguirias levá-los a todos nessa ridícula mala. És tão ridícula Martina, olha para ti. Devias pensar num tratamento muito sério para essa cabeça doente. Estás doente Martina. Estás completamente doente e o pior é que toda a gente vê isso menos tu.
- Cala-te! Cala-te já! Julgas que não tenho outras malas? Milhares de malas! Milhões de malas! Julgas que não tenho capacidade para levar os livros todos desta casa, julgas? São meus, não te pertencem. Agora afasta-te deles. 
- Ohh, a Martina vai fugir outra vez. Muito me contas Martina. E desta vez levas só dois ou consegues levar três? Se bem te lembras, da última vez que tentaste levá-los a todos nessa estúpida mala...
- Cala-te, não vês como estou ocupada? Sai e leva daqui esse miserável cachimbo que me põe doente!
- Que sensível que ela é. Quando andavas a fumar às escondidas de todos, já não te fazia confusão o cheiro, pois não Martina? Claro que não, a Martina só detesta o meu cachimbo.
E fazendo uma vénia curta, de natureza cómica, pôs o jornal no cocuruto da cabeça e, retirando-o como se fosse um chapéu, gracejou:
- Apresento-vos Martina, a escritora maluca do 2º andar! Ela, e claro, os seus estúpidos livros! És tão ridícula Martina. Não passas de uma ridícula mulherzinha infantil. Olha para ti, já olhaste bem para ti? Uma cadela magra agarrada aos livros. Pouco te falta para comeres papel. Se quiseres um pedacinho do meu jornal, dispenso-te com todo o gosto as notícias da bandalha.
Martina, que continuava a arrancar os livros das prateleiras e a atirá-los para cima da cama, sentia os pensamentos confusos, vinham-lhe à cabeça imagens muito difusas de cadáveres, abismos, pessoas a cair, atropelamentos, gente morta na beira da estrada, membros decepados, pensamentos e mais pensamentos em catadupa, saltando uns por cima dos outros, como os livros, retirados à estante, espalhados pela cama, pelo chão, abertos, amontoados uns em cima dos outros, desencontrados, capas rasgadas, folhas soltas, cujas histórias não conseguia controlar. As vozes, que tinham voltado havia semanas, gritavam impropérios, faziam apostas, riam-se, e Martina, num estado cada vez mais psicótico, levantou-se e começou a sacudir o ar com as mãos.
Sentia um zombido caótico nos ouvidos, de tal forma forte que começou a esfregar as orelhas até um dos brincos lhe rasgar a pele, abrindo uma ferida recente.
- Já andas outra vez às borboletas? Olha ali uma na parede, Martina! Agarra-a, agarra-a!
- Cala-te! Que barulho é este?
Martina, que continuava com os braços a rodopiar no ar, afastava frenética aquilo que lhe pareciam ser milhões de borboletas vermelhas, enquanto tentava, de joelhos, procurar o brinco no chão.
- Mas onde pensas que vais, menina? Julgas que te vou deixar sair nesse estado? Diz lá, quando é que decidiste deixar os comprimidos Martina? Ahh deixa-me adivinhar, quais comprimidos, diz lá, eu não sou maluca, vá repete lá, eu-não-sou-maluca, eu-não-sou-maluca...
- Quais comprimidos? Outra vez a conversa dos comprimidos, Não sei do que estás a falar. Não sou maluca, não estou maluca. Só quero ir embora com os meu livros. Sai, estás a por-me doida com esse cheiro.
Martina tirava agora as borboletas da cabeça esfregando freneticamente os cabelos, enquanto Peter, sem sair do mesmo sítio, voltava a dar lume ao cachimbo, calmamente, saboreando o momento.

Se eu pudesse, matava-te, matava-te! És uma inútil, uma mulherzinha vulgar, doente, igual à tua mãe, uma puta reles, uma mulher de vida podre, comida por homens sebentos, nojentos, homens porcos...

- O quê? O que é que disseste? Atreve-te! Atreve-te e eu..
- Tu o quê? Não disse nada Martina, estás a delirar. Afinal estás muito pior do que eu imaginava. Olha ali outra Martina, é enorme!
Peter, de braços cruzados, continuava encostado à ombreira da porta. Abanava a cabeça e ria-se alto, olhando uma Martina magra, desgrenhada, suada e furiosa.
- Já contaste à tua mãezinha sobre o fracasso do teu último livro? Já lhe contaste a vergonha que fizeste o teu pai passar? A sério Martina, a sério que escreveste um livro sobre borboletas? Pobre Martina... Não devias ter passado tanto tempo enterrada em livros, Martina, quem sabe se trocando a merda dos livros por uma belas fodas, não tinha sido melhor para ti.
Martina já não ouvia nada. O corpo outrora frágil mexia-se agora com uma força brutal, os braços magros retesavam-se e os dedos afundavam-se numa viscose quente. Parecia que toda a força do mundo era dela, e dela era também a fúria, o vento, a maior tempestade. As mãos apertadas, o cabelo em desalinho, a respiração ofegante, o calor, e as borboletas vermelhas, rodopiando assustadas, voando em sentido contrário, batiam nas paredes, e iam morrer, todas no canto do quarto, onde um abajur pequenino emanava uma luz azul, muito mortiça.
Martina, de pé, olhava agora para as mãos molhadas. Limpou-as ao vestido, ajeitou o cabelo atrás das orelhas e joelhou-se em frente à estante retornando, agora metodicamente, a tarefa interrompida.

- Martina!
A mãe de Martina correu para porta do prédio e abraçou-a.
Martina estava pálida e fria, apenas os braços magros agarravam com força a pega da pesada mala que a custo arrastara para a rua.
- O que aconteceu? O que é isso no teu vestido? Estás cheia de sangue, estás magoada Martina?
- Não é nada mamã, foi só a minha orelha. Já estou bem, a sério mamã, preciso ir. Ajudas-me com a mala?
- Estás tão pesada Martina, o que trazes aqui?
- São os livros mamã... os meus livros.
- E o teu pai? Voltaram a discutir? 
- O pai ficou a matar borboletas. Sabes que agora estão vermelhas mamã? Devíamos acabar de vez com elas. Dão-me cabo dos nervos.

Martina, já no carro, meteu as mãos na cabeça e apertou o cabelo no elástico. Da mala caiam gotas quentes e densas, que para Martina se assemelhavam a borboletas vermelhas. Fechou os olhos com força e tentou tirar esse pensamento da cabeça.
Toda a gente sabe que as borboletas vermelhas são coisas da minha imaginação.

6 comentários:

  1. Texto denso, personagens tensas
    Marina não é uma personagem inverossímil, é apenas estranha... num ambiente estranho
    Mas... "nós, somos nós e a nossa circunstância"

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    1. Delírios de uma Uva que passa. ;)
      Martina é uma louca que mata o pai e o enfia numa mala. As borboletas vermelhas são da cor do sangue que leva no vestido.

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  2. Querida Uva Passa,
    Eis uma história. Fantástica.
    Parabéns.
    Outro Ente.

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    1. ;)))
      Martina a assassina em série!!!!!!!!!!!!!!!!!! A seguir vai a mãe. ;))))

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