Há muitos anos atrás, não teria mais de 5 anos, encontrei-me subitamente na presença de um espírito. Fui imediatamente tomada por ele, como se a partir daquele momento todos os meus movimentos, todos os meus sentidos, tudo o que fazia de mim uma banal menina de cabelos loiros tivesse subitamente desaparecido e aquele espírito selvagem, que ninguém sabia de onde vinha, se fundisse em mim, para sempre.
Dir-se-ia que para afastar novamente aquele vendaval do meu corpo, seriam necessárias muitas horas de delicadas intervenções cirúrgicas, para me separar daquilo que eu até hoje chamo de a minha irmã siamesa.
Ninguém entendia o que aquilo era, e eu compreendo agora que talvez fosse [naquela época] muito mais fácil identificar outros espíritos, talvez por serem mais comuns, mais audíveis, mais extraordinários. Lembro-me por exemplo do espírito que tomou a minha amiga Alexandra, um espírito artístico, de traço muito fino, que a tomou em ombros fazendo-a desenhar quase na perfeição as caras das bonecas que lhe ofereciam pelo Natal, e depois, numa admirável arquiteta. Ou o espírito do pianista que aterrou em cheio na cabeça da Marisa, um prodígio das teclas, um encanto de menina.
O meu espírito tomou-me e virou-me do avesso. Não era nenhum espírito especial, aliás, era antes um espírito que trazia sempre água no bico, recados da professora e chinelada no rabo. Espírito indomável que me possuía inteira, roubando-me a pacatez de menina e o amor da vizinhança.
Tornei-me elástica, nasceram-me asas, cresceram-me fios de cola na ponta dos dedos que me colavam às paredes, às ombreiras das portas, às árvores, aos telhados, a tudo.
A minha mãe, debulhada em lágrimas, ria-se às escondidas para evitar que a tomassem por maluca, e foi talvez a única pessoa que acolheu, parcimoniosa, o meu novo espírito, e que agarrou nele e em mim, e nos foi entregar aos préstimos do professor Lelo, o mais famoso professor de ginástica do subúrbio.
A menina precisava de quem a domasse. Não era viável que andasse às rodas, aos flics e às espargatas no meio da estrada íngreme do bairro. Tornou-se até perigoso deixá-la andar em cima dos patins, sem o medo que caracteriza os adultos, rua abaixo, travando apenas na parede da loja da Leonor, uma senhora que sofria do coração e que não parava de dizer: esta menina tem o diabo no corpo!
Ela não sabia o nome do espírito que me acompanhava, talvez fosse um diabo de espírito, talvez, mas se fosse hoje era certo que tinha proposto à minha mãe a Ritalina para me acalmar os nervos, talvez o boxe se o houvesse assim como há agora, ou o judo, o desporto para rapazes e meninas ‘estranhas’.
A minha avó entendeu que para domar o meu espírito o baptismo e as aulas de catequese seriam prudentes. Infelizmente (para ela) redundaram num completo falhanço. Faltei a todas as aulas para ir apanhar pássaros.
Dou graças por não haver na minha altura a fobia dos psicólogos infantis e de tudo o que actualmente se faz para agrilhoar um espírito mais mexido.
Fico feliz quando vejo os pais levarem os meninos para o futebol, para a natação, para o judo, para o balett, para a ginástica, para o hip hop, para as actividades físicas imprescindíveis ao correto desenvolvimento da criança.
Mas também fico desesperada por ver pais que levam a mesma criança para todas estas actividades sem preceito e contrariadas. A mesma criança não precisa de fazer trezentas coisas com o corpo e é prudente que os pais saibam reconhecer nos filhos o espírito que se manifesta com mais fulgor.
Poderemos até, no decurso do crescimento dos nossos filhos, verificar que o antigo espírito pianista deu lugar ao espírito ciclista ou até mesmo ao cientista, ou perceber que o miúdo fica mais atento aos colegas que jogam ténis no campo ao lado do que ao jogo de futebol em que participa.
A partir de certa altura as mudanças de interesse acontecem e devemos ser prudentes e experimentar estes novos espíritos, conscientes de que são exactamente os espíritos que temos lá em casa, e que não estamos a empurrar as nossas filhas para o ballet quando o que elas gostam é de surf.
Os pequenos grandes atletas são espíritos compreendidos, são espíritos apoiados, não são os espíritos cujo desejo é fabricado por modas. Os meninos, ou quase todos os meninos gostam de jogar à bola, mas apenas 2 é que serão futebolistas.
Fui uma pequena grande atleta porque alguém percebeu o que eu gostava de fazer.
Se depois aquilo deu em nada, se depois desisti, se depois não fiz da ginástica o meu futuro, foi porque na realidade não tinha de ser, ou porque as circunstâncias da minha vida assim o entenderam, mas posso jurar que as horas do dia em que me sentia mais feliz e mais livre, foram aqueles em que pude ser uma pequena grande atleta, em comunhão com o meu espírito hiperactivo, a minha irmã siamesa.
À parte disto, nasceram-me amigos que nunca chegaram a chutar uma bola ou a fazer uma espargata, mas também eles foram pequenos grandes atletas, espíritos compreendidos, os melhores de todos, nos puzzles, no xadrez, nas letras, na música, e em tudo o que o espírito deles ditou.
Há muitos anos atrás, não teria mais de 5 anos, encontrei-me subitamente na presença de um espírito.
Hoje, com 39 anos, encontrei-o outra vez nas rodas de uma bicicleta de BTT.
Oxalá não me abandone nunca este vendaval.
A isso chama-se fibra!
ResponderEliminarBeijos, Uvinha. :)
Olá Maria Miúda. Fibra e alguma loucura... mãe sofre.
EliminarFantástico Uva, revi-me neste texto, a mim e ao meu espírito, o do desporto. Da ginástica, da dança,da patinagem, da luta grego romana, do atletismo e do btt e revi meu MaisVelho e o seu espírito, o da escrita e o da música... Diz-me cá, escreveste isto para mim não foi?
ResponderEliminarTambém andavas nos patins? Bem, se não somos almas gémeas, olha, não sei o que somos. ;))))
EliminarAntes do btt, a patinagem foi a minha grande paixão....
EliminarIsto é
ResponderEliminardepois de uma espera
severa
mete o dito na assentadera
os pés na pedalera
e as mãos na guiadera
e ninguém a apanha
o tal esprito empurra
É isso mesmo Roger. Empurra e às vezes faz cair.
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