10 de março de 2016

Não há coincidências

A vida é um trapo sujo, um desperdício de pano. Um andrajo velho cheio de nós nos fios soltos. Um frangalho feito de nódoas e mazelas.
Com ela limpamos as coisas, os desejos, as coincidências, os amores platónicos, e os sonhos. Limpamos tudo com a vida, proficuamente, sem culpas, sem canseiras, sem nada.
Podem acusar-me de muita coisa, mas cá nas minhas coisas, sei limpar tudo como ninguém.
Lembro-me da excitação que senti, ainda não fez duas semanas, quando imprimi o regulamento de um concurso literário. Ah, que maravilha, se ao menos pudesse tentar, que mal faria se me sentasse na mesa grande da sala, pedisse a todos que saíssem, apanhasse o cabelo no cocuruto, e começasse a escrever? O sol iluminaria a história, o gato faria piruetas no teclado, as personagens saltitavam na janela, rebolavam pelo chão, divertiam-se numa festa, davam o primeiro beijo e seriam felizes para sempre. Mas não.
Escrever uma história para um concurso literário? Isso está totalmente fora de questão! - disse-me a Vida, de olhos muito abertos, zangada, agarrando-me e revirando-me, apressada em limpar-me por dentro.
Acumularias os estudos da miúda, o pó dos vidros, as nódoas do chão da cozinha, o lixo dos dias no beiral. Quem daria comer à gata, quem limparia o tapete?

Tirei a vida do armário e limpei tudo com muita pressa. Limpei a história, o prémio, e as palmas. Arrumei as cadeiras da grande livraria, desmontei um pesadíssimo palanque, e recolhi os despojos da grande festa.
Quando me pus muito direita, quase indignada, a olhar o regulamento, tive pena.
Muita pena.
De ser tão asseada. 

5 comentários:

  1. Que pena. Um bocadinho de desarrumação fazia algum mal a alguém?

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  2. Oooohhhhh. Que pena! Por vezes há que esconder o lixo debaixo do tapete para se poder respirar melhor....

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  3. Olha depois no teu fantástico texto no concurso e está a decorrer no tasco da filipa, acho q ficamos todos a perder ;)

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