14 de fevereiro de 2014

UMA PASTILHA EFERVESCENTE A CAIR NUM COPO DE ÁGUA (Do ponto de vista da Pastilha - Inspiração "Os Maias")

A noite chegara fria, de semblante carregado, como se fosse Lisboa, em dia de despedida de soldados.
Depressa demais, diria eu, como diriam decerto todas as mães que choraram os seus filhos em vésperas de partida para a guerra.
Estava certa disto e de muito mais. Sabia por exemplo, que quando o malvado cuco de parede, saísse de rompante das portinholas de talha dourada piando histérico o sinal, a Senhora Dona Maria Augusta da Conceição Galhardo, filha ilegítima do falecido Senhor Celestino Galhardo, ao ouvir o sinal estridente do pássaro, que zunia na parede do retábulo, me iria engolir sem dó nem piedade.

Não seria pois, de nenhuma surpresa para mim, a cena que se iria passar, dali a menos de nada.

Nas noites anteriores, havia já reparado na forma como a Senhora Dona Maria Augusta pegava no copo dos remédios e junto à janela, ensovacava as pastilhas.
Era um copo vermelho de pé alto que lhe servia os intentos, mas não era um copo qualquer. Na base vestia-se de uma fina renda de bilros para não riscar as finas mobílias da família, e o brilho ensanguentado que projetava no tampo da mesinha, fazia-me sempre lembrar o assassinato do pobre Senhor Galhardo, ali morto, com um tiro certeiro na têmpora esquerda. 
Era nesta macabra dança noturna, quando ela encostava delicadamente o copo vermelho ao gargalo do arão de cristal, ali vertendo a água morna, é que me convencia que a delicada senhora era pois, totalmente indiferente aos calafrios que provocava em mim, uma magra e seca pastilha efervescente, e que pouco tardava para me fazer desaparecer, goela abaixo, de um trago.
Perdida que estava nos meus pensamentos, nem dei conta do resfolegar dos ponteiros do relógio, que corriam como cavalos, em direção à hora marcada.
De súbito, sai-me o estridente cuco  da parede! Cu-Cuh! Cu-Cuh! A Senhora levanta levemente a cabeça, e semicerrando os olhos como que para ter a certeza do que via, mete a mão direita ao bolso e traz-me lá de dentro apertada entre os dedos, como se ali guardasse o seu melhor pergaminho.
Vi-me assim nesta situação, e na minha cabeça, surgindo a sinapse da esperança, vi bailar uma imagem deliciosa: ela tropeçava no vestido comprido, e abrindo a mão para se segurar, deixava-me voar janela fora. Oras! O etéreo pensamento que depressa apareceu, mais depressa se esfumou!
As janelas de guilhotina que traziam de fora os ruídos da cidade, estavam há dias fechadas, não tanto por causa do frio que se fazia sentir, mas essencialmente para proteger a Senhora Dona Maria Augusta dos ouvidos afoitos da Rua da Palma, onde era fácil espreitar ao R/c e perceber as novenas que a Senhora dedicava aos 8 santinhos da sua devoção. E se lhe vissem então o extraordinário número de velas que se encontravam acesas desde as 5 da manhã, haviam de pensar que a mulher iria a qualquer altura, imolar-se pelo fogo.
A fuga, essa, ficava ali, cristalizada no pensamento.
Nisto, a Senhora sentindo um estalido surdo, estancou. Na parede, o estúpido cuco ficara entalado entre as duas portinholas, fazendo agora um ruído estrangulado. Nem para a frente, nem para trás! A Senhora, condescendente, encolheu os ombros e deixou ficar o pássaro de asas abertas, refletindo a sombra disforme na parede do fundo.
Melhor assim. Acabava-se-lhe a exultante e profícua tarefa. Dali não sairia nem mais um pio.
E é nesta envolvente atmosfera, pouco arejada e de fumeiro, que a Senhora Dona Maria Augusta, com uma calma paciente, lembrando uma gota que cai languida na língua de um gatinho, pega no copo dos remédios e chega-o para si como que confirmando se lhe deitara a água, e esticando o braço fino em direção à luz da janela, vira para baixo a palma da mão onde me tinha colocado, fazendo-me cair dentro da água, onde em poucos segundos me desfiz em pó, salpicando efervescente o nariz da suave senhora.  
Tentei sôfrega gritar, mas não percebi que tal ato era tão inútil como fechar uma janela partida. Dona Maria Augusta já não me ouvia.
Já dentro daquilo que julgava ser o pescoço da Senhora, tentei ainda um último grito, mas esta, habituada que estava às efervescências da vida, logo pega noutro copo cheio de água, e decidida, acaba com tudo.
Diabo! Maldita constipação.

2 comentários:

  1. eVervescente?! Este texto é de tua exclusiva autoria? muito bem escrito..

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  2. Escrevo no intervalo da chuva e como sabes o CAPS não deteta erros... vou ter isto em conta para futuras entradas. Os blogs servem para ensinar as pessoas a escrever. Não sabes tu?
    Vai dando notícias. És a minha única seguidora. GOSTO MUITO DE TI! Simplesmente porque não tenho mais ninguém aqui. Somos duas uvas passas da vida.... eu melhor conservada....

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