20 de fevereiro de 2014

O novo Centro de Saúde entrega tudo aos bichos, e seja o que alguém quiser...




Vivo numa vila pequenita, entalada entre dois subúrbios de má cara. Somos cerca de 12 000 alminhas a ficar para o velhote, mas onde as (poucas) crianças ainda teimam em nascer e onde a escola secundária que antes tinha 3 800 alunos, tem a sorte de manter 700 criaturas com esperança no canudo, e quiçá, em viagens pela Europa, num InterRail só de ida.
Pese embora a parca população escolar, o recinto é dos mais bem equipados de Lisboa, tendo sido eleito escola-modelo tecnológico, onde o Sócrates gastou uns bons 5 milhões de euros. Ora 5 milhões para 700 alunos, é só fazer as contas. Tudo estudantes de primeira, estes da minha pequena vila.
Mas a vila, apesar da PDI, ainda não perdeu o fulgor de outros tempos, e os seus munícipes são ainda duros combatentes, especialmente se a saúde ou a educação da criançada é metida ao barulho.
Pouco interessa que a maioria seja uma geração-avô, cuja atividade principal é o passeio matinal da canzoada, e mais à tardinha, o caminho da escola para ir buscar os netos-únicos;  o que importa mesmo é que a população da minha vila gosta de ver tudo arranjadinho e já vi muita gente de balde de tinta e pincel na mão, fazendo melhoramentos na escola primária, alegremente… A população faz o que pode para deixar a sua vila limpa e bonita, e toda a minha gente é de grande participação e consciência cívica.
Acontece que como em tudo na vida, o pacote em boas condições pode esconder o leite estragado. E é precisamente aqui que o gato vai às filhoses.
 Da mesma forma que as pessoas da minha vila fazem grande gosto na construção, renovação e melhoramento dos edifícios privados e  públicos que utilizam, já não podem fazer o mesmo pela qualidade e profissionalismo das pessoas que os gerem e que neles trabalham, e quando lá vão dar com os costados, é como se repentinamente se agigantasse logo ali no balcão de atendimento um Muro de Berlim do tamanho da Muralha da China. E é injusto dar tanto e não receber nada.  
É o caso do novo Centro de Saúde.
Caramba! Que aquilo é uma obra de arte! É o último grito da arquitetura pós-moderna, é um marco da vila, depois de mais de 30 anos a (des) esperar por médicos numa sala cinzenta e fria, olhando horas seguidas para uma caixa de madeira monstra, onde antigamente vivia feliz um televisor a quatro cores. Isto ou uma revista Maria dos anos 60, que tínhamos de partilhar com os delegados de informação médica, que amiúde nos roubavam horas de vida, ocupando os nossos médicos, com a nova versão de um qualquer antimicótico.
Agora não. Agora é só modernidade. Dois pisos, salas aquecidas por AC´s, equipamento para fazer análises ao sangue, espreitar para a uretra ou ver o olho do cú.
Tem também complexas macas esterilizadas em cada um dos gabinetes, preparadas para ajudar a dar à luz (talvez uma gata por ali se encontre perdida) ou para o médico descansar dos seus doentes, quando tem de atender mais de 2 por cada hora.
Pois sim, pois sim. É um admirável mundo podre novo!
Assim que lá cheguei fiquei logo de boca aberta. Tinha, uma nova médica de família, 10 anos depois.
A nossa conversa foi breve.
- Bom dia Sôtora.
- Que queres? Diz-me logo, o que queres?
- Preciso de fazer uns exames, tenho …
- Diz lá, depressa que tenho pessoas. Muitas pessoas.
- Blá, blá, blá, digo eu a correr, como se 10 anos coubessem numa consulta de 5 minutos.
- Sim. Vais fazer o exame para saber que bicho é! É preciso saber que bicho é.
Levanta-se e sai – a impressora que encravou com os meus exames lá dentro, ali ficou engasgada. Aproveitei a ausência para carregar no botão que piscava, e consegui salvar as folhas que me iriam dizer afinal, que bicho me tinha mordido. 
Com mais uma crise voltei às urgências dois dias depois e a pedido da médica, a quem fiz o favor de ligar antecipadamente. Quando lá cheguei não me reconheceu nem se lembrava que me tinha lá chamado 2 horas antes; fez uma cara vaga, e não me atendeu, encaminhando-me com um gesto de mão, como se sacudisse uma mosca, para o gabinete ao lado onde uma outra médica me articulou 3 palavras, sem tirar os olhos do monitor para me dizer que, se não sabia o eu tinha, nada podia fazer...
Estas médicas, que trabalham no melhor centro de saúde de Lisboa, falam-me de bichos, mas na verdade fui eu que fui largada aos bichos.  
A minha pequenina vila tem 4 farmácias, um conservatório de música que é dos melhores do país, uma escola secundária que é quase uma nave espacial, um hospital novo a 5 minutos, duas grandes superfícies comerciais, jardins maravilhosos, parques infantis, duas IPSS magníficas, 2 igrejas, uma delas acabadinha de construir, uma escola de ballet, 50 ginásios com hidroginástica, duas escolas primárias com cantina e ATL e mais uma panóplia de coisas que não lembra ao careca. É uma linda vila onde o alcatrão não engana, onde não há um único pino ou proteção de estrada que não esteja pintado de verde e amarelo, e onde não se ouve uma mosca desde que a minha geração imigrou sabe-se lá para onde.
Mas, no centro de saúde de última geração, há uns médicos que são afinal biólogos que se dedicam a bichos, como por exemplo baratas e insetos, ao invés de se sentarem calmamente com o seu utente para perceber com ATENÇÃO e dedicação aquilo que as pessoas querem dizer.
Eu fiz o melhor que pude, mas ainda não sei que bicho me mordeu.
O Estado fez o melhor que soube, que foi fazer casinhas de luxo para bonecas armadas em médicas.
Então e onde estão os RH desta vida? Quem é que definitivamente mete esta gentinha toda na ordem? Não há por aí nenhum licenciado (no meio dos milhões que já se formaram neste país) capaz de perceber e decidir quem é que deve ocupar estes lugares? Psicólogos para fazer psicotécnicos? Psiquiatras para os avaliar?
Ai, se o inferno são os outros, então o inferno está todo naquele centro de saúde!
É que já nem falo no que está atrás daquela receção, que isso então...

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