O PRIMEIRO
dia do ano amanheceu abafado e solarengo. Chovera quase toda a noite e o frio
tinha amainado. Naquela manhã, Marta, tinha chegado exaurida e sem forças, quase
que escondida de si mesma. Assim que estacionou em frente do portão da casa,
soltou o cão que dormitava na bagageira. Com
dificuldade e ainda trôpega, percorreu o caminho que dava acesso à casa, mas
eram as questões da sua consciência, que se misturavam-se num turbilhão como
água e areia nas ondas da rebentação, que lhe fustigavam de peso os
ombros. Tinha sido a noite mais macabra
e surreal de que tinha memória, e sentia uma compulsão quase animal de gritar,
de desabafar e de se livrar daquela imensa culpa.
Seguida pelo
seu enorme cão no estreito e curto caminho por entre os pinheiros mansos, parou
ao avistar a Lagoa ao fundo, e inspirou profundamente. Pelo menos o seu refúgio
estava como sempre estivera, calmo e apaziguador, e era só disso que precisava
naquele momento.Assim que chegou a casa lançou-se sobre a cama e tapou a cabeça com a almofada. Sentiu o corpo descomprimir de um cansaço que era só mental. Tapou-se e adormeceu. O cão seguiu-lhe o exemplo. Escolheu o tapete preferido, deu três voltas sobre o corpo e aconchegou a cabeça sobre as patas.
Marta, que dormia há poucas horas um sono leve e agitado, acordou com passos desconhecidos na varanda. Alguém descia agora as escadas que davam acesso ao rés-do-chão da casa, onde estava. Abriu os olhos e sentiu fome. O cão tinha desaparecido do quarto, mas logo o ouviu patinhar em direção à porta.
- Marta? Marta? Estás aí? É a Inês!
- Sim, vou já Inês! Dá-me dois minutos.
Sentou-se na cama e ajeitou o cabelo no elástico. Estava vestida e tinha ainda os ténis calçados.
- Que estupidez dormir assim vestida. Disse para si.
- Vens abrir a porta ou queres que volte mais logo? São 3 da tarde, miúda. É dia de Ano Novo, não queres lanchar?
Marta fechou os olhos com força e apertou a cabeça com as mãos. Levantou-se, ajeitou a roupa e dirigiu-se para a porta onde o cão aguardava silencioso, mas vigilante. Fazendo um esforço imenso para se manter de pé, encostou o ombro à parede e abriu a porta pesada.
- Olá Inês. Desculpa fazer-te esperar, estou péssima.
- Eh, como tu estás. A festa foi rija, hã? E a Teresa, ficou por lá, não? Não vi ali o carro dela.
Inês, uma miúda pequena de cabelos ruivos eriçados, entrou na casa com o seu grande à vontade e foi encostar-se ao fogão de lenha. Puxou o cigarro electrónico do bolso das calças e olhou para o cão que a fitava curioso. Reparou no pelo sujo e no focinho cheio de lama seca e disse, franzindo o cenho:
- É pá, o teu cão está cá num estado... Andaram a fazer todo-o-terreno ou a desenterrar mortos?
- Tive de vir para casa por causa do cão. Mas senta-te, faço-te um café, queres? Preciso de um para mim, urgentemente.
Já as canecas do café fumegavam, quando Inês decidiu por fim dar inicio à conversa:
- Então conta lá. Perdi alguma coisa de especial ou foi mais uma festa cheia de bêbados e música estridente? Que raio miúda, não consegues ir a uma festa sem ficares nesse estado?
O cão, um dobermann juvenil mas portentoso, deitou-se aos pés de Marta e rosnava brincalhão, mordendo e abanando uma espécie de boneco, já todo esfanicado e inundado de baba.
- Quando o Ricardo nos convidou - continuou Marta - eu disse-lhe que não podia ir e deixar o cão aqui em casa sozinho. Já sabes como ele é, parte-me tudo, roí-me as mobílias. Calhando, se o deixasse aqui, quando voltasse já nem a carpete tinha.
- Levaste o cão?
- Teve de ser. O Ricardo também insistiu. Disse-me que podia prendê-lo num dos quartos da casa, que não haveria problemas. A casa é enorme, como sabes.
- Sim, mas afinal o que é que se passou? Parece que levaram os dois uma tareia...
Marta, que ficara subitamente séria e afetada, agarrou nas mãos da amiga e disse:
- Preciso que guardes este segredo Inês. Caso contrário vou ter problemas. Eu e este menino.
Marta prosseguiu contando, que logo que chegou à festa, e depois de ter agarrado o cão na trela, foi abraçar o seu amigo Ricardo que a esperava muito animado na entrada do portão, com uma cerveja na mão.
- Sempre trouxeste a fera?
- Teve de ser. Ninguém me fica com ele. Está gigante. Será que ele pode ficar um bocadinho solto? Está farto de estar preso. Ainda não fomos a casa. Vim direta de Lisboa.
- Se ele não foge, tudo bem. Se quiseres podemos metê-lo já num dos quartos…
- Não, ele não sai da minha beira, é cachorro ainda.
Marta, que entretanto tinha soltado o cão da trela, soltou-se ela mesma, como que descomprimindo da viagem e roubou a cerveja que Ricardo trazia na mão. Olhou para dentro do quintal e exclamou:
- Ui, Ui! Isto hoje promete! Temos casa cheia!
Marta que ainda não tinha conseguido entrar no quintal para cumprimentar os amigos, ouviu ao longe os latidos furiosos do cão. Levantou a cabeça para espreitar e reparou que do outro lado do murete estava o Senhor Zé. Andava no meio da horta remexendo a terra com um cajado, cabisbaixo, e a D.ª Mena, sentada na soleira da porta com os olhos perdidos nas nuvens, folheava uma revista. O cão ladrava muito alto, brincalhão, com as patas em cima do murete que dava acesso à casa.
- Lembras-te do Senhor Zé e da D.ª Mena, Inês?
- Claro! Não são os vizinhos do Ricardo? Os velhotes da casa ao lado?
- Sim, os vizinhos. Já não me lembrava deles. O cão assim que os viu ficou eufórico. Os animais têm cá uma memória.
- Suponho que não deixaste o cão muito tempo solto. Logo ele, que adora saltar para cima das pessoas. Já sei, pediste ao Senhor Zé para te ficar com ele? Aquele Ricardo faz o que quer dos velhotes. Então e desta vez, também lá andaram na festa a dançar o paso doble? Grande dupla!
- Isso teria sido muito pior... Pedi à Teresa para prender o cão. Às tantas fui dar com ele agarrado às rodas da bicicleta do Rui Pedro, a roê-las. Só fez disparates Inês, juro-te que nunca mais o levo.
E olhando irritada para o cão, gritou-lhe: ouviste cão? Tu és mau! Tu comes as coisas das pessoas!
O cão, completamente alheio à irritação da rapariga, abocanhou o que restava do boneco, dirigiu-se para a porta da rua e desapareceu.
- A noite estava animadíssima. O Rui Pedro encontrou um baú cheio de coisas antigas de carnaval dentro do quarto da avó do Ricardo. Fizeram um assalto ao baú e a partir de certa altura já andava tudo mascarado.
- Ai sim? Mas se foi tudo tão divertido por que carga de água estás com essa cara de enterro? Perguntou Inês, bebendo mais um golo de café.
- Pois, o problema foi depois, quando o meu cão apareceu à entrada do portão...
- O teu cão? Mas a Teresa não o prendeu?
- Ela prendeu, coitada, mas ele fugiu para a rua. Estava a dormir no quarto das máscaras. Assim que o Rui Pedro abriu a porta, esgueirou-se. Apareceu-me todo sujo no portão da casa, com aquilo na boca.
- Não me digas que andou a esfrangalhar algum casaco?
- Não, não era um casaco, Inês. Era um caniche branco, cheio de terra, preso entre os dentes!
- Que horror! Um caniche? E estava morto?
- Morto.
Marta contou a Inês, que quando Ricardo se apercebeu da situação, desatou a correr em direção ao cão, e que foi com dificuldade que consegui resgatar o caniche morto dos dentes afiados do dobermann.
- É o cão dos meus vizinhos, pah! Ò Marta segura lá no teu cão, caramba! É o caniche do Senhor Zé.
Naquela altura já toda a gente se encontrava de roda do acontecimento, e por todo o lado se ouviam exclamações de incredulidade.
Ricardo, que apesar de estar bastante atordoado pelos exageros da noite, ou então por isso mesmo, voltou-se para uma Marta boquiaberta e disse:
- Marta, não vale a pena ficares nesse estado. Vamos meter o cão outra vez no quintal do meu vizinho.
- No quintal? Mas tu estás louco?
Marta estava tão incrédula que nem conseguia raciocinar direito. Já o seu cão, alheio à esquizofrenia colectiva, dava saltos, tentando em vão resgatar novamente o caniche das mãos do adolescente.
Ricardo, subitamente lúcido, engendrou e liderou um macabro plano, e sem mais demoras, saiu do meio do grupo e dirigiu-se para dentro de casa.
- Teresa! Marta! Ajudem-me. Tragam umas toalhas velhas. Vamos dar banho ao cão!
O clima era de alcoólica consternação. Olhavam uns para os outros sem saber muito bem o que pensar. Todavia, a turbe adolescente, foi-se desinteressando da história, e pouco tempo depois já a maior parte tinha dispersado como se nada tivesse acontecido. A festa continuou rija e animada e Marta, livrando-se atabalhoadamente das perguntas, subiu as escadas que davam acesso ao 1º andar, e quando se apercebeu do que estava a acontecer, já o caniche estava dentro da banheira. Sem preciosismos ou especiais cuidados, Marta, que estava estática à porta da casa de banho, viu Teresa e Ricardo lavarem o pequeno caniche. Depois de o secarem com o secador de cabelo, enrolaram o pobre bicho numa toalha branca, e desaparecerem nas escadas em direção à rua.
Não passaram nem 2 minutos e já Ricardo saltava o murete e colocava com grande destreza o pobre caniche dentro da casota que o Sr. Zé tinha no quintal.
Inês mexia-se nervosa no sofá. Já não sabia que posição adotar e olhava para a sua amiga Marta como se olhasse para um allien. Decidiu-se por mais umas baforadas e disse com numa voz empolgada:
- Ai Marta, que história mais macabra. Afinal eu sempre tinha razão. Andaram mesmo a desenterrar mortos!
Mas Marta, interrompendo a tirada de mau gosto, falou-lhe então da sua decisão de pernoitar por lá. Aquela hora já ninguém estava em condições de conduzir, muito menos ela. Tinha prendido o cão dentro do carro, e por ali se enrolou de qualquer maneira num sofá. Quando acordou já o sol tinha nascido.
- E agora, Marta? Tás a pensar fazer o quê? Por esta altura já o Senhor Zé foi dar com o cão, morto...
- Qual quê. Quando acordei e assim que assomei a cabeça à porta da rua, ouviu logo vozes no quintal do lado.
Marta levantou-se e começou a andar de um lado para outro.
Com a voz ainda embargada, contou a Inês como o momento seguinte tinha sido macabro. Do outro lado da rede, enquanto vários familiares discutiam o que parecia ser um grande mistério, D.ª Mena chorava agarrada à casota do cão.
A Marta, não lhe bastava o seu cão ter morto um pobre caniche à dentada, como ainda tinha de encarar toda a família do pobre animal. Esperava furtar-se a esse momento, mas o Senhor Zé viu-a.
- Bom dia menina Marta.
- Bom dia Sr. Zé. Então o que é que aconteceu?
Marta, antevendo a desgraça alheia, agarrou-se ao murete e preparou-se para o embate.
- Sabe lá o que aconteceu. Hoje de manhã a minha mulher encontrou o nosso cãozinho morto na casota. O cãozinho morreu ontem e decidimos enterrá-lo aqui mesmo no quintal. E apontando para o chão onde estava o cão enterrado, disse:
- Vê ali menina? Tudo remexido?
Marta, lívida e a suar em bica, acenava com a cabeça de boca aberta.
- Inexplicavelmente, - continuava o Sr. Zé - hoje de manhã o cão estava novamente lavado e limpo dentro da casota. Limpinho, limpinho. Olhe, acabadinho de tomar banho, veja bem! A minha mulher está inconsolável e já só fala em bruxaria. Como é que isto é possível? Não é possível!
Marta olhou para o buraco remexido e não conseguira articular uma única palavra. O cão desenterrara o pobre caniche e o pior é que Marta não sabia como havia de resolver a questão, e era óbvio que contar ali o sucedido, só iria piorar a situação. Iriam julgar que eram todos loucos.
O dia tinha amanhecido abafado e solarengo. Chovera quase toda a noite e o frio tinha amainado.
Marta, sentada na sua varanda, olhava a Lagoa ao fundo.
Quantos anos se tinham passado desde aquela noite. 20 anos? Talvez fosse altura de contar a alguém. Talvez o Senhor Zé pudesse finalmente saber a verdade.
Na sua vida passaram-se coisas inexplicáveis, muitas delas roçando até a fantasia, e aquela noite, aquela esdrúxula noite, era sem dúvida uma delas.
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