23 de maio de 2014

Doutores...

 
 
A história é passada em frente à mesa da sala de reuniões principal.
Uma secretária conhece muito trambolho, graças a Deus, mas tem às vezes o privilégio de conhecer gente com história, gente importante, gente com graça.
Ainda ontem, por exemplo.  
Um contabilista dos seus 70 e muitos. De Coimbra. Amigo da família.
- Bom dia Sôtor. (estico-lhe um  bacalhau apertado) Uva Passa. Muito prazer. Sou a super-secretária do Sôtor-chefe.
- Que alta que a meneína é. Parece uma estrangeíra. É estrangeíra?
- Não sôtor. Nasci aqui, em Lisboa.
- Hum... olhe que num parece náda.  
E saca de uma mica ranhosa, dobrada em dois, cheia de papeís, de dentro do casaco).
- Olhe cá meneína, bim traxêr-lhe o quódigo do Sôtor.
- Sim, bem sei.
Ele remexe na papelada e eu espero, com um ar muito profissional.
- Ò meneína, posso dizer-lhe já o quódigo da certidão permaneínte?
- Pode, com certeza. Deixe-me pegar aqui numa esferográfica. 
E diz ele muito rápido, com um ar duvidoso:
- E a meneína, sabe escrever?
Caramba! Os meus olhos ficaram de tal forma esbugalhados, que quase tive de os meter para dentro.
- Infelizmente não, Sôtor, importa-se que vá ali chamar a minha colega? É que eu até me safo muito bem com isto da respiração, já com as letras... (e saio da sala).
- Ò meneína. meneíííína!
Volto à sala.
- Diga Sôtor.
- Eu estaba a reinar consigo. Diz ele abrindo os braços.
Eu, abrindo o sorriso:
- Também eu sôtor, também eu.
 
Em Coimbra de 1930, só o engraxador não era doutor; De resto, a nomenclatura era António da parte da mãe, Doutor da parte do pai.
E reza a história, que o Escrivão de Direito do Tribunal de Coimbra, sobejamente conhecido pelo seu ofício, foi engraxar os sapatos.
O engraxador, fazendo juz ao nome, trata logo de lhe pedir um 'grande favor'.
- Ò Sôtor, ainda bem que o encontro, sabe lá, recebi aqui uma carta, coisas lá da família da minha mulher, e parece que a coisa é séria.
(Retira a carta do bolso do casaco, mas ao esticá-la, recolhe-a logo rapidamente).
- O Sôtor sabe ler, não sabe?
 
É incrível perceber onde nasce uma certa forma de estar e de pensar, no Portugal dos doutores.
Por estes dias, é preciso ser-se muito esperto para não deixar que a ilusão nos baralhe na cabeça, a diferença entre saber e sabedoria.
O saber que se aprende nos livros, fica muito aquém da sabedoria que se aprende com a vida.
E o engraxador (que não era doutor), sabia disso.
Hoje a maioria não sabe. E aplaude o Palito à entrada da prisão, como aplaude o governante corrupto, o médico incompetente, o advogado pimpão.
Doutores...

13 comentários:

  1. E depois, quando pedimos no banco que por favor não ponham o DRA nos cartões, que queremos apenas o primeiro e último nome, que o DRA nos causa um grande transtorno no estrangeiro, quando queremos pagar alguma coisa e nos pedem o passaporte para confirmar a identidade e vêem que do passaporte não consta o DRA, "ai doutora, isso vai ser complicado, como na ficha tem lá as habilitações"...

    ResponderEliminar
  2. Ai Mironinho, mironinho, tenho tanta coisa dessa aqui "em casa".
    O meu pai nem descansava se eu não fosse doutora, credo.
    Coitadito, se ele soubesse que eu gostava mesmo era de ser cantora... perdia logo o pio.

    ResponderEliminar
  3. Enquanto os ditos doutores não arregaçarem as mangas nunca vamos passar de um "Portugal dos pequeninos"
    ( Gosto de te ler meneína!)
    ;)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Vassourinha, tu és uma leitora que merece toda a minha perícia, nisto de escrever.

      Eliminar
  4. Respostas
    1. Portugal, o país onde a percentagem de analfabetos se mede entre os de letras (muito analfabetos), os de ciências (mais ou menos analfabetos) e os de saúde (muito inteligentes e especialmente dotados, até nos arrancarem o dente, a perna ou o pé, errado).

      Eliminar
  5. Aqui no reino onde exerço, existe um Sôtor, Manel da parte do Pai e Sôtor da parte da Mãe. Pelo menos sabe ler..:D

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Aqui no meu reino, são TODOS doutores, menos eu.
      A minha Licenciatura é como a lareira no Brasil, toda a gente sabe que a tenho, mas ninguém usa...

      Eliminar