15 de outubro de 2014

Uma mão cheia de nada, e outra de coisa nenhuma.

Lembrei-me outra vez daquele dia.
Sentaste-me numa cadeira e abriste-me um tomate. 
Os teus dedos sapudos, de unhas muito curtas, faziam malabarismos com a faca ao mesmo tempo que seguravam um cigarro. 
Fumavas muito nessa altura. O pacote azul desfraldado, sempre amarrotado dentro dos jeans, fazia-te mais companhia do que eu. 
Que querias? Era uma selvagem. Criei-me na rua, com o machorros.
- Que vida é a tua?
Perguntaste-me num fio de voz enquanto procuravas o sal perto do fogão.
- Queres que ponha, ou preferes fino? 
Fiquei ali sentada, muito quieta, a olhar para ti.
- Não gosto de sal fino, sabe-me a micróbios.
Largaste uma gargalhada e pousaste o cigarro na bancada com a ponta virada para o tapete.
Aquele cigarro havia de ali ficar muito tempo, suspenso, fazendo um caminho de cinzas, igual ao nosso, tão frágil e tão cinzento.
Enquanto mastigava o tomate salgado, franzindo muito o cenho, como se procurasse a expressão certa para te responder, sentaste-te à minha frente e desapertaste o primeiro botão das calças.
- Então, e daqui para a frente? Posso contar contigo, ou queres ficar como eu?
Fizeste-me tremer os lábios. Tive pena de ti.
Naquele dia, se mo tivesses pedido, seria capaz de vencer sozinha a batalha contra os mouros, prometer-te-ia Castela, dobrava o Bojador.
E eu, tão igual a ti, como sempre fui, não achava mal em ser como tu.
- Qual é o mal? Estou farta da escola.
Dançavas tão bem e eras tão alegre. Qualquer coisa se arranjaria. E se tivesse mais dinheiro podíamos comprar mais roupa, afinal só precisavas de por umas palmilhas e os allstar serviam bem para duas.
- Eu a falar do teu futuro e tu só pensas em roupa. Queres outro? Já estou atrasada.
A conversa desconversava e o caminho não ia lá por onde querias. Via-te preocupada, pressionada, compreendia que na tua cabeça a salvação era a escola, o curso. Derramavas sobre mim um sonho que era teu.
Afinal somos iguais, tão iguais que me confundiste contigo.
- Escuta lá, a mãe faz um esforço. Já pensaste bem nisso? Anda lá.
Quando abri os olhos, já era outro dia e tinhas uma fita verde na mão.
- Que queres que escreva? Não tenho jeito nenhum para isto. Ahh que cor tão linda. É de seda?
Não mãe, é de cinza. 
Mas tu não sabias e eu disse-te para escreveres assim:

No dia em que de ti nada esperava, e numa mão coisa nenhuma, e a outra cheia de nada, percorremos juntas o caminho das cinzas, desbravando as longas estradas, e agora que chegaste ao destino, o que tens?
Nada.
Fizeste-me tremer os lábios.
Tenho pena de mim.



12 comentários:

  1. Um tiro certeiro esse teu texto...
    Adorei, até me emocionei... agora sem brincadeira!

    kiss kiss

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    1. Ainda hoje adoro tomates com sal abertos pela minha mãe.

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  3. um beijinho Uva. correndo o risco de parecer pirosa e saloia deixo mesmo só um beijinho.

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    1. Gosto dos beijinhos. Pirosos são os secos, os que não se sentem, e como diz ali a menina Mirone, o que interessa são os sentimentos que pomos nas coisas que fazemos (escrevemos).
      Mais beijinhos. Para ti.

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  4. Gostei muito deste teu texto, Uva!
    E também deixo um beijo. :-)

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    1. Obrigada Susana. É preciso escrever, para não esquecer.

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  5. Uma descrição perfeita de um texto enternecedor!
    Todos temos recordações. Descrevê-las como um capítulo de um romance, é ter o dom da escrita deliciosa.
    Gostei muito. Os meus parabéns.

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    1. Obrigada Corvo. Cá vamos andando, com o mundo à costas...

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  6. Gostei mesmo muito. Muito sentimento, muito bem escrito Uva! Lindo.

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