28 de novembro de 2014

A vida é madrasta

Antes de me armar aos cágados, e decidir mudar de emprego, tinha uma colega 'de carteira' mui sui generis, que nos dias em que andava bem disposta, coisa que só acontecia raríssimas vezes, cantarolava pelo escritório uma cantilena, um faduncho, como lhe chamava, falho na melodia, mas certeiro na mensagem: a vida é madrasta, a vida prega partidas, entoava ela, forçando a voz, como se lhe espetassem uma faca no bucho.
Cantava-me isto muitas vezes ao ouvido para me fazer ver que aquele local onde tinha atracado o meu barco, eram águas paradas, e que devia zarpar o quanto antes, soltar as amarras, fazer-me ao mar e gritar terra à vista, bem longe dali.
A vida prega partidas, dizia-me ela sorrateira. 
A vida prega muitas partidas.
Ontem, em simultâneo com o toque do meu telefone, surgiu-me esta memória.
Do outro lado a voz daquela a quem a vida reservou o pior lugar à mesa, o canto mais escuro, a refeição mais fria. 
A pior violência. 
Não houve para esta alma vida mais madrasta, a vida que lhe levou o filho, e talvez por isso, e porque sou mãe, e porque sou filha, a minha urgência seja agasalhá-la, resguardá-la do vento frio que lhe fustiga o corpo, tratá-la como ilustre convidada de honra, sentá-la à minha beira, servir-lhe a primeira sopa, o mais tenro pão, e o meu melhor sorriso.
Mas a vida é madrasta, como canta o fado, e por estranhos e confusos designíos, às vezes a vida assume essa retorcida e azíaga ligação filial, e detém-se perante algumas pessoas, de olhos muito frios, que não desvia, como se fosse um animal selvagem no instante que antecipa o primeiro golpe, furiosa, enorme, faminta.
Outra vez. 
Outro pranto, outra aflição.
Fico ali pensativa, rememorando e remoendo a cantilena.
Quão bom seria se pudesse ajudá-la a gritar: terra à vista! 
Mas é que a vida é este mar gigante.
De incertezas.



17 comentários:

  1. Partir de nós, deixarmo-nos, é difícil!

    Beijinhos Marianos, Uvinha linda! :)

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    1. De tudo o mais dificil...
      Esta Uvinha está deprimida hoje.
      ProntoS.

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    2. É uma merda, a vida, às vezes, sim.
      Mas... :)

      Sou composta por urgências:
      minhas alegrias são intensas;
      minhas tristezas, absolutas.
      Entupo-me de ausências,
      Esvazio-me de excessos.
      Eu não caibo no estreito,
      eu só vivo nos extremos.

      Pouco não me serve,
      médio não me satisfaz,
      metades nunca foram meu forte!

      Todos os grandes e pequenos momentos,
      feitos com amor e com carinho,
      são pra mim recordações eternas.
      Palavras até me conquistam temporariamente...
      Mas atitudes me perdem ou me ganham para sempre.

      Suponho que me entender
      não é uma questão de inteligência
      e sim de sentir,
      de entrar em contato...
      Ou toca, ou não toca.

      Clarisse Lispector

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    3. Obrigada Maria, pelo teu cuidado e simpatia. Essa sou eu (um bocadinho).
      Beijos

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  2. Uma pessoa até fica inibida de comentar, pah... (escreves bem e com intensidade/sentomento)

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    1. sentimento (em vez de sentomento)

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    2. Tenho andado muito mal das letras...
      Só te digo que ando mesmo mal.
      Por isso é que ninguém comenta, que isto, está visto, não tem ponta por onde se lhe pegue.
      Doidinha de todo.
      E a culpa é do Sócrates.

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  3. Para além de madrasta é injusta.
    Achamos que se formos bons, se cumprirmos as regras, se nos esforçarmos, conseguimos, mesmo perante as dificuldades "um dia seremos recompensados". Mas quem é que o pode garantir?
    É um instante, esta vida. Mais feliz para uns que para outros, mesmo que pouco tenham feito para merecer o oposto.

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    1. No caso em apreço, a bondade é extrema, a amizade pelos outros é imensa e a vida foi sempre percorrida com preocupação pelos outros. A recompensa nunca existiu, e continua a piorar.
      É injusta, madrasta e velhaca.
      Não há garantes. Isso é certo.

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  4. A vida é mais madrasta para uns do que para outros....

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  5. perante um momento destes até receio deixar aqui apenas um punhado de frases feitas. mas do título ao conteúdo, vai uma realidade que me é particularmente próxima, mas, onde, neste caso, foi a filha, jovem adolescente a perder todos os laços no espaço de meses. e eu vivi de muito perto, primeiro a partida do pai, e depois a da mãe que viveu os últimos meses a fazer tudo o que podia para deixar as últimas memórias à sua única filha. quantas vezes me perguntei: porquê? afinal é isso, a vida é madrasta!

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    1. Por isso devemos sempre estar gratos.
      Somos afinal de contas um punhado de frases inacabadas, mas sobretudo um punhado de previligiados.

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  6. Cada vez que vejo "O resgate do soldado Ryan" (e já vi algumas), e apesar de saber que o filme é baseado numa história verdadeira, em que morreram quatro irmãos (e não três), a parte mais dolorosa é sempre a carta do presidente Lincoln à mãe que perdeu cinco filhos na guerra:

    Executive Mansion,
    Washington, Nov. 21, 1864.

    Dear Madam,--

    I have been shown in the files of the War Department a statement of the Adjutant General of Massachusetts that you are the mother of five sons who have died gloriously on the field of battle.

    I feel how weak and fruitless must be any word of mine which should attempt to beguile you from the grief of a loss so overwhelming. But I cannot refrain from tendering you the consolation that may be found in the thanks of the Republic they died to save.

    I pray that our Heavenly Father may assuage the anguish of your bereavement, and leave you only the cherished memory of the loved and lost, and the solemn pride that must be yours to have laid so costly a sacrifice upon the altar of freedom.

    Yours, very sincerely and respectfully,

    A. Lincoln

    ~
    Se calhar, saí para fora de pé. Mas lembrei-me disto quando li o teu texto.

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