14 de novembro de 2014

Às nove... no farol.


Conheci o António no Farol.

Foi um encontro muito mal planeado porque vamos lá ver: o António, e para começo de história, era mais velho do que eu uns bons quinze anos, e eu, uma miúda imberbe e mal acabada, que mal sabia rapar os pêlos das pernas, quanto mais ver maldades ou intenções sombrias nas relações entre géneros - além daquelas que desaguavam em beijos roubados atrás da escola - pouco ou nada atribuíra aquela aproximação infantil, quase paternal, do António, e no entanto, como se os ensinamentos da minha mãe vivessem latentes algures dentro da minha cabeça, guardo ainda uma lembrança difusa, de estar sentada algures no muro que dava para a estrada, a conjeturar sem grande interesse ou finalização, se é que uma adolescente conjetura e finaliza o que quer que seja,  se a marcação de encontros com adultos como o António, fora do alcance de pessoas mais vividas e por isso mais sábias, havia de parecer mal à vizinhança. 

Quando percebi que a ideia dele era dar-me a conhecer o Farol, sem magotes de miúdos atrás de nós, a minha rala consciência começou a mover-se como se sentisse um ligeiro desconforto intestinal, mas apesar de ser doloroso para a minha consciência avançar naquelas condições físicamente desconfortáveis, a verdade é que todo o meu corpo se espasmava em fluxos adrenalínicos, tão fortes e tão potentes como as ondas que vêm perdidas do alto mar, zangadas, furiosas e totalmente desvairadas, que embatem nas paredes ocas mas impenetráveis da juventude.
Estava a tremer de medo, e ao mesmo tempo batia-me tão forte o coração, que se fosse esse o meu desígnio, seria capaz, eu própria, de vencer as sete ondas da grande maré, só para estar com o António.

Neste estado de ansiedade e excitação, garatujei um sim tremido no guardanapo, respondendo ao pedido do António, da mesma forma infantil e tonta que escrevinhava entradas no meu diário de cheiro. 
O encontro devia ser, supunha eu, semelhante a um espetacular plano de fuga, porque ou se fazia a coisa bem e às escondidas, ou o António era bem capaz de ser selvaticamente agredido em praça pública pelos homens que se ocupavam da minha educação. Lembro-me de pensar muito aflita que talvez o despissem todo nu, e lhe arrancassem o membro viril com a faca da matança.
Que parvoíce. Como se fosse um crime hediondo combinarem-se encontros longe da praia com pessoas de uma certa idade. A vida ainda não tinha tratado dessa parte, a de me ensinar a escolher as pessoas pelas idades. Parece que a adolescência apaga a pergunta comum que fazem todas as crianças, e o porquê? desaparece. Essa proteção que nos é dada pela duvida e consequente questionamento é totalmente aniquilada por um 'sei tudo' ou por um 'não quero saber de nada' que nos expõe a todos os perigos. 
Não havia ainda maturidade suficiente para fazer a pergunta, e por isso, a mesma não me ocorrera.
O António era um homem já feito, e era além disso muito diferente dos miúdos imbecis e desprendidos que marulhavam na praia, e eu que morria de tédio naquela ilha, embora intuisse um certo mau estar na minha jovem consciência, não vi que mal  poderia vir ao mundo se fizesse um amigo novo, ainda que ele fosse já velho.

Quando finalmente nos encontrámos a sós na praia, já libertos por uma desculpa inconsistente, percorremos lado a lado o areal que seguia até ao Farol.
Sentia-me especialmente feliz, nervosa mas divertida, como se toda aquela semana de olhares e brincadeiras, de criação de laços fraternais e de amizade, e depois de atração e sonhos imberbes e juvenis, e desejos e ensejos mais hormonais do que formais, se condensasse toda ali, no caminho.
Tudo desaparecia, não havia vozes, nem lembranças, nem ralhetes, nem porquês.
Estava livre e dispersa. Crescia em mim uma falácia perigosa. Já não era uma menina.

O António, que durante todo o caminho se mostrava falador e divertido, começou por adoptar uma expressão sisuda e hostil.
A certa altura tive medo. Escurecia.
Quase por acaso, e com a ajuda do imenso facho de luz que se desprendia da grande torre, reparei que olhava em volta, de cenho franzido.
E eu, como que pressentindo a tempestade das ondas, já não queria estar ali.
O que estava eu ali a fazer? Quem era o António?
Quando chegámos à torre, bordejando o imenso e alto pináculo, até perdermos de vista a povoação, já o António me puxava com força e me obrigava a descer a escadaria que dava para o mar.
Subitamente, agarrou-me pela cintura e beijou-me com força e desespero. 
Engolia-me e estrafegava-me.
O meu coração, um cavalo com asas, que sucumbira aos delírios da juventude, da ilusão e da inocência, que estava adormecido e sonhador, acordava agora, enganado e sobressaltado e talvez, talvez, pudesse deixar de bater para sempre.

Conheci o verdadeiro António no Farol.
O António, os Antónios desta vida, não se conhecem.
Os António desta vida nunca deveriam levar-nos, pela mão, a um Farol, onde a única luz é difusa, intermitente e falsa.
Onde a única luz existente, só se consegue ver a tempos, rodopiando mortiça e cadente.
Na noite.


Delirios, by Uva Passa
(Texto inspirado numa história falsa, mas muito verdadeira)

14 comentários:

  1. Muito, muito bom e muito semelhante a muistas histórias que já me passaram pelas mãos.

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  2. "O António, os Antónios desta vida, não se conhecem."
    Podes ter a certeza! Tanta como no ocaso da existência!
    Nem os Antónios nem ninguém. Nunca minguém conhece niguém!
    Nem a nós próprios.
    Um BFS.

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  3. O grande e maior ensinamento que se pode dar a uma filha é a capacidade de dizer "NÃO" naquele único momento em que ainda pode voltar atrás.
    (Na tua história, talvez o momento em que os pés mergulharam na areia, do lado de cá.)
    Os outros ensinamentos podem todos vir depois.

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    1. Exatamente. O dizer não e o saber que na dúvida (sobre as pessoas e sobre o mundo) o melhor é perguntar.
      A nossa realidade (atual) deixa-nos pouco espaço para aventuras.

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  4. Eva Gina dos Prazeres e Morais14 de novembro de 2014 às 15:55

    Adorei esta nova versão do Capuchinho Vermelho.
    E depois? Vais contar mais, vais?
    Estou ansiosa por mais...
    beijinho doce -;)

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    1. Não. Fico-me por aqui. Espero que não me leves a mal.
      Não deliro todos os dias. Normalmente é só às sextas.
      Beijinho doce para ti também. ;)
      (granda nick)

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  5. Para esses Antonios, ás onze no farol seria bem melhor.

    Beijos

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    1. Às onze já o gajo estava nu e a faca da mantança a pingar...

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