1 de novembro de 2014

Filhos Únicos - A queda de um mito by Uva Passa

Às vezes, quando estou sozinha, penso em mim própria. 
O exercício já não é novo. 
Sou filha única e passei todas as fases do meu crescimento fazendo perguntas a mim mesma.
Todo o esquema da minha vida era gizado na minha cabeça. Mesmo às perguntas mais difíceis tive sempre de encontrar respostas, encontrar soluções, e sem ajuda ou interferência de irmãos, havendo concordância comigo mesma, avançava. E às vezes, tantas vezes, de forma errada.
Precisava apenas de ter vontade própria. Auto-estima. Não tinha barreiras, fronteiras, jogos de poder.
Este é o segredo dos filhos únicos. Precisamos estar dos dois lados da mesa para fazer um jogo. Temos de adivinhar o que o outro vai fazer para fazer a melhor jogada. 
O outro, que nunca existe, é apenas uma questão de consciência. Acabamos sempre por fazer o que queremos, porque apesar de inventarmos outro alguém, esse alguém nunca nos faz grande frente, e a infância, pródiga na inocência, em nada vê mal e tudo nos parece fazível, mesmo a pior estupidez.
Isto de fazermos o que queremos, não é ser mimado, é não ter oposição. São coisas totalmente diferentes. Trata-se de uma necessidade, ou seja, é uma falta, e não um ganho.
As pessoas quando sabem que sou filha única, dizem-me logo que sou mimada, assim, sem pensar. Também dizem que as magras não comem e que as gordas comem demais. É um estigma. Uma nódoa daquelas muito tesas que nunca saem na totalidade.
Ora porque raio serei eu mais mimada do que as pessoas que têm irmãos?
'Porque tinhas tudo para ti, os mimos todos.'
Não. Os mimos não se repartem e não se gastam. Até parece que uma mãe quando acorda, tem uma dose limitada de mimos para os dois irmãos. Se um se atrasa mais a acordar, quando chega à cozinha, a mãe já gastou a dose toda com o mais madrugador.
Que coisa ridícula. Perguntem às mães, que elas logo vos respondem. Gostam dos filhos com uma dose de amor igual. Elas sabem muito bem explicar que, o que difere de filho para filho não é a dose de amor que lhes dedicam, é antes uma espécie de combinação astrológica. Entendem-se melhor com o Manuel porque o Manuel é aquário. O Pedro é escorpião, e é mais arisco. Gosta igualmente dele, mas discutem mais vezes.
Se eu for escorpião, mesmo sendo filha única, a minha mãe não me dá o mimo todo a mim. Dá algum ao gato que nasceu em setembro, não faz perguntas e não tira más notas.
Por outro lado, se fizer asneira, as palmadas são todas minhas, e se uma mãe se cansa a bater em três filhos, e mesmo assim ficam todos doridos, imaginem a mãe que larga a fúria toda no mesmo rabo. O que tem isto de mimoso?
A questão de sermos egoístas é outra que tal. Nunca fui egoísta, aliás a minha dose de egoísmo é muito menor do que a dose de egoísmo que sempre vi nos irmãos pequenos. Fervia grande discussão sempre que queriam alguma coisa. Brinquedos comuns davam sempre confusão. Como tinham de se impor para ganhar a posse do brinquedo, que era 'dos dois' tornavam-se mais egoístas e possessivos. O mesmo com essa coisa do amor da mãe. A mãe é minha. O pai é meu. Alguns irmãos lutam até ao fim da vida por essa atenção, e amiúde desenvolvem sentimentos de culpa por não granjearem mais amor, do que o irmão que nasceu depois, ou antes. Depois amenizam-se com esse sentimento, mas ele permanece latente.
Como podem constatar, a teoria está totalmente ao contrário.
Os filhos únicos não passam por estas fricções de disputar amor e bens materiais. São mais calmos e não dão tanta importância ao ter.  
Ao dar, ao emprestar, os filhos únicos não tem o sentido de posse tão apurado, além daquele que é natural em todas as crianças numa certa fase. Normalmente a fase em que os outros teimam em 'dar irmãzinhos' aos filhos únicos. Outra pressão social que os filhos únicos de costas muito largas assumem sem culpa.
O senso comum desgasta-me. No outro dia, por uma questão puramente astrológica, não quis pedir um trabalho a uma colega. Preferi fazê-lo sozinha, ainda que tenha demorado mais tempo. Claro! Não sei trabalhar em equipa. Sou filha única. 
Toda a gente sabe que os filhos únicos desta vida, vivem cada um em seu planeta, cada um em sua empresa, cada um em sua casa. Não se juntam com ninguém. Os filhos únicos são todos ermitas. Os filhos únicos têm todos o mesmo nome: O Principezinho.
Mais uma teoria contraproducente. Os filhos únicos estão habituados a pensar duas vezes sobre o mesmo problema. Lá em cima, no jogo de mesa, precisaram fintar-se a eles próprios. Não é por isso uma questão de mimo, simplesmente não tinham ninguém a quem contrapor a sua ideia, logo, a pulsão é para resolverem por si só, as questões. 
Há muito quem diga que os filhos únicos passeiam pela savana de nariz muito empinado. Que são muito convencidos. E são. 
Precisaram de o ser. Precisaram ter uma dose maior para avançar nas brincadeiras. Se se depararam na infância com uma árvore muito alta, tiveram de decidir sozinhos se a subiam. Não há mais ninguém para empurrar, não há mais ninguém para amparar a queda, não há ninguém para ajudar na mentira quando o joelho aparece todo esfolado em casa. A responsabilidade é toda nossa. Para sempre. Subimos ou não? A solidão do filho único é a mãe da auto-estima. Não é a mãe e nem o pai que nos trás pela manhã a auto-estima misturada no leite. Somos nós que a desenvolvemos sozinhos, e isso às vezes não é positivo, pois pode nascer muito abalada ou cheia de erros.

Ser filho único não é mesmo nada bom. È um mito que se criou com base em princípios materiais, que colocam a tónica do filho único no ganho material que tem ao não haver mais ninguém com quem dividir as possibilidades materiais dos pais. Mas ter um irmão, pode ser muito melhor do que ganhar uma voltinha de cinco anos numa universidade particular. 
Além disso, estou sozinha com um pai e uma mãe, que são dois. 
Não tive mais amor por ser filha única, tive talvez mais peso, mais reponsabilidade, mais olhos nos meus ombros, mais expetativas centradas em mim. Não passei por intervalos da chuva nas travessuras da infancia, e não passo pelos intervalos da chuva nos não-sucessos da vida adulta. 
Ser filho único é tudo menos positivo, e quem pensar o contrário está muito errado. 
Tenho muita pena quando vejo a maior parte dos casais impossibilitados de ter mais filhos, e de poderem porporcionar aos seus filhos únicos a alegria de ter um ou mais irmãos, que aprendem e desenvolvem as suas capacidades em conjunto, que não ficam sem respostas às questões magnas da infância.
O saber comparado é um saber muito mais perfeito, mais ponderado, e leva-nos a todos muito mais longe.
O que pode haver de melhor do que o irmão para abraçar, para dançar aquela música, lembrar aquela miúda, ter um olhar e um sorriso cúmplice quando a mãe começa com as 'coisas dela'?
Não será isso o verdadeiro mimo, que eu, como filha única nunca vou ter?
 


Post publicado na UPTOLISBONKIDS, através da parceria Uva Passa e UTLK, 
iniciada em Novembro de 2014

28 comentários:

  1. Tá tá tá, menina Uvinha.
    E quem é que herda tudo sozinha, hem,? Quem é, quem é?.
    E deixa de falar mal dos escorpiões que não são nada ariscos, nem patifes, nem mentirosos, nem cínicos, nem traidores, nem maus pais, nem péssimos maridos e só têm qualidades.
    Quais? vira tudo ao contrário, encontras o oposto e já tá. Depois acrecentas uma enorme responsabilidade para com os seus dependentes, e aí está o escorpião, o signo apaixonado e fiel para toda a vida.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. A minha filha é escorpião. Terrivelmente doce, terrivelmente deliciosa. Mas muito arisca, muito teimosa.
      Quem é que disse mal dos escorpiões, tu é que escreveste esse chorrilho todo. Vou herdar uma grande fortuna dos meus pais. Tão grande que não me cabe aqui no bolso das calças.
      Olha agora heranças... são os dois quase tão novos como eu, gastam tudo antes de chegarem a velhos. Hahahahahaha

      Eliminar
    2. Uva, quando chegam a velhos dá-lhes a doideira e começam a gastar o que têm e o que não têm, são mais susceptíveis a serem enganados e a cair em burlas financeiras. Tomara que fossem "histórias" e só acontecessem aos outros, mas não é assim. Por vezes o que se herda são dívidas para pagar. Ah pois é! Não que na família tenham existido casos - porque felizmente nunca existiram. Mas existiu "calúnias" do género que me fazem temer que quem calunia é que tem o rabo preso.

      Eliminar
  2. Hmmm, acho que há outros factores a ponderar, como a diferença de idades entre os filhos não únicos: não é a mesma coisa diferirem um ano ou dez anos. Talvez com uma diferença grande, se aproximem dos filhos únicos em muitas características. Tal como no caso dos únicos, depende da proximidade de outros familiares -- nomeadamente primos. Excelente texto -- muitos motivos para reflexão.

    Bom fim de semana :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sim, é verdade. Se a diferença for grande pode haver muitas coisas que se assemelham.
      Eu tive sempre primos muito próximos, mas não era diariamente. Estive muito tempo sozinha a fazer disparates. Brinquei muito sozinha. Fui muito filha única. E agora sou ainda mais. Muito mais. E tenho árvores muito mais altas para subir.

      Eliminar
  3. Estou solidária contigo. Sou filha única e odeio. Por isso ando em busca do meu terceiro filho.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Espero que encontres e que seja a luz dos teus olhos. O melhor do mundo são as crianças.

      Eliminar
  4. Respostas
    1. Hahahahahaha. Não estou não. Até gostava, mas não. Hahahahahaha

      Eliminar
  5. Tenho duas irmãs, não me vejo a ser como sou, sem elas. A minha mãe acabou por ser filha única (teve dois irmãos que morreram antes dela nascer) e não foi mimada nem egoísta e sempre pensei como teria sido bom para ela ter tido uma irmã para partilhar o mau e o bom por que teve de passar.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Precisamente. Os irmãos são uma benção que não tive. E tenho pena da minha filha ser filha única.

      Eliminar
  6. só posso concordar apesar de ter passado toda a infância e parte da adolescência a desejar ser filho único (os egoístas são os irmãos mais velhos :D)... mas agora preciso de ajuda, os pais parecem filhos, telefonam de madrugada porque o computador deixou de dar, e se não tivesse o meu irmão, as coisas seriam bem complicadas...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Todos os irmãos tiverem esses jogos de poder, mas é muito bom ter um ombro amigo que nos ajuda a ultrapassar as fases difíceis e brinde ás boas. E depois os primos fazem tanta falta às crianças. E com os pais é sem dúvida uma grande ajuda ter um mano com quem falar para ajudar na velhice.

      Eliminar
  7. Sou filha única, concordo com tudo. Não há mais mimo, não há mais egoísmo mas há mais pressão, a vida toda.

    ResponderEliminar
  8. Infelizmente, sou filha única e concordo com muita coisa, desta vez :P...é para o bem e para o mal. Não se divide a herança material com ninguém, é verdade; contudo, as dívidas parentais, quando existem, caem todas sobre a mesma pessoa. Infelizmente, o meu filho é filho único e vejo nela muitas das características atribuídas aos únicos - o mimo é uma coisa que lhe assiste imenso - mas não é egoísta nem tem o narizinho empinado, como dizem que a mãe tem :) Gostaria que as coisas tivessem sido diferentes, mas se for a pensar nisso, deprimo. Logo, não penso. Nisso. Gozo quem tenho e o que tenho :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá Pseudo. Se concordasses sempre é que era estranho. Saudável é haver vários pontos de vista e colocá-los a discussão.
      Olha, somos parecidas, também tenho a minha filha única e sou filha e neta única. Custa um bocado tratar dos pais sozinha. Mas a pessoa faz o que pode e eles vão dando uma mãozinha.
      Temos de ter muita força e poupar o dinheiro e geri-lo com cabeça para o futuro que se aproxima tão depressa.
      Sim, não penses nisso e disfruta. Em breves terás cinquenta namoradas para te entreteres...

      Eliminar
  9. Olá Patrícia. Penso muito nisso, penso muito em si e em mim. Penso sobretudo que tenho 38 anos e estou a deixar fugir este mimo todo que um irmão poderia dar à minha filha.
    A ver se começo por colocar as ideias certas na cabeça e deixar fugir este medo...

    ResponderEliminar
  10. Mas e o trabalho? E o meu patrão? Sei lá o que me pode acontecer se lhe disser que estou grávida. Isto Patrícia, mói-me a cabeça diariamente. O meu marido gostava muito de ter mais filhos, e eu ando nesta indecisão estúpida, e ainda por cima sei que me vou arrepender.
    Muito obrigada pelas palavras de incentivo. Às vezes é tudo o que precisamos para dar aquele passo teimoso.
    Muito obrigada.
    Também pela visita.

    ResponderEliminar
  11. Realmente, nunca percebi porque dizem que os filhos únicos são mais egoístas. Egoísmo vejo nos miúdos que são capazes de tirar ao irmão, para ficarem eles com a melhor parte. Claro que não são todos assim, tem muito a ver com as características pessoais e ainda mais com a gestão emocional dos pais. Porque há pais que chantageiam emocionalmente os filhos, tecendo comparações. Mas também existem pais que condicionam os filhos únicos, comparando-os com os primos. Tomáramos nós que isto das familias fosse simples.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá! É exatamente esse o espírito. O que eu sofri (e sofro) com essa de ser mimada.
      Por acaso essa tirada dos primos é muito pertinente. Quem tem primos terá sido (uma ou mais vezes) durante a vida, comparado. Eu fui. E era sempre a pior. E era...
      Agora já não sei, mas também não interessa nada.
      Um abraço!

      Eliminar
  12. Uvinha, desculpa vir meter-me...
    Por favor, "manda o patrão às cascas" e dá esse irmão à tua filha. Não te obrigues a viver sob a pressão do que poderá acontecer se engravidares. Não sou mãe, mas tenho a certeza que não há patrão nenhum mais importante que um filho tão desejado.
    Dá esse passo :)

    Beijinho*

    ResponderEliminar
  13. Olá Lia! ;)
    Vocês fizeram todas um pacto com o Governo para o aumento da natalidade???
    Hahahahaha.
    Prometo que se der esse passo, venho cá contar tudinho.
    Obrigada pela visita Lia e um grande abraço!

    ResponderEliminar
  14. Não sou filha única e sempre desejei ter mais irmãos e vários filhos. A outra metade da laranja é um falso filho único que nunca sentiu falta de ter irmãos, nem foi mimado ou protegido, antes pelo contrário. Devido a uma doença só tivemos um, que sempre pediu irmãos, e que não tem nenhuma das características associadas aos filhos únicos. Olhando com frieza para os factos, sinto que é pior para os pais só terem um filho do que para um filho não ter irmãos. Há o medo irracional de perder o único filho, o que torna difícil dar-lhe asas e deixa-lo partir, e todas os desejos e expectativas estão colocadas naquele ser. Não há a oportunidade de tentar não repetir os mesmos erros e de fazer diferente com o(s) outro(s).

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá Ana.
      Qua maravilha de ilação esta. Julgo que é um tema muito pertinente, esse de abordar a questão do medo que é gerado por só haver um filho, no entanto no texto focalizei apenas a questão do filho, neste caso da filha única que fui. Os sentimentos de mãe de filha única cabem noutra dimensão.
      Obrigada. Deu um imenso contributo ao texto.
      Obrigada também pela visita.

      Eliminar
  15. Uva, estava concordando contigo até antes da ultima parte. Sou filha única e gosto, sempre gostei de ser, acostumei-me com a solidão e agora o meu filho também será filho único por varias razões. Não gosto é deste preconceito de acharem que ser filho único é sinal de que fomos pequenos déspotas, é tão falso quanto achar que quem tem irmãos desenvolvem um caráter solidário para com estes. Se contar quantos irmãos eu conheço que nem se falam...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá bonitinha!
      Sim, é bem verdade. Conheço irmãos que nem se falam, mas isso raramente acontece em crianças, sendo mais comum na idade adulta.
      O preconceito é terrível e mentiroso. Mas ter uma irmão na infancia é melhor do que ser sózinho, na minha opinião e por vários motivos.
      Um abraço e obrigada pela visita.

      Eliminar
  16. É engraçado que toda a gente que não tem mais filhos é só porque não pode. Ou não pode pelo trabalho ou pelo dinheiro ou ou.
    Eu não tenho mais filhos porque não me apetece.
    E depois fico a pensar: será que um dia me vou arrepender de não ter tido outro filho? Será que é assim tão mau deixar a minha filha como única?

    ResponderEliminar