10 de janeiro de 2015

Urgência nas Urgências

Há vinte e seis anos atrás, também morriam pessoas nas urgências.
Talvez morressem muitas mais, caladas, por dentro e por fora.
Nas urgências portuguesas, por dentro morre-se primeiro.
Por dentro, ali deitados sobre funestas camas, sem sabermos quem somos, ou as forças que ainda temos, estamos mortos que alguém nos dê mais vida, mas a espera, o frio, a austeridade, mata-nos a todos, aos poucos.
E por fora?
Por fora passa gente e gente, e ninguém nos vê. Até parece que uma maca cura doenças e afasta a morte. Até parece que alguém que está deitado no corredor ou sentado numa cadeira de rodas, já tem o que lhe basta. 
'Deite-se aqui um bocadinho que a minha colega já vem.' E nós a ver que não. 
E depois, do que nos vale pedir aos médicos, que passam nas suas caras fechadas, um auxílio para a morte? 
A morte é lenta, não há pressas.
E esperamos e morremos, porque por fora ninguém luta por nós e por dentro luta a morte contra uma estranha esperança, que afinal não lhe sobrevive.

Há vinte e seis anos atrás, também morriam pessoas nas urgências.
Há vinte e seis anos atrás, quando a minha bisavó sentiu uma dor no peito, no meio dos montes perdidos do Alentejo, esperou a morte no mesmo local onde hoje morremos tanto.
Mas naquele tempo, antes das inovadoras máquinas, soberbas curas, ricos médicos, a morte sentava-se no corredor e falava aos moribundos sobre pobreza, sobre fome, sobre gente que não tinha como viver, sobre a falta de meios, a falta de médicos, sobre um Estado pobre e inculto, ditador na divisão da riqueza, sobre o Portugal interior, analfabeto, longe de tudo, sobretudo da esperança de vida.
E eu, que rememorei aquela dor no peito durante tantos anos, em revolta, pensei sempre que se fosse hoje talvez a morte não aparecesse, talvez a morte não ma levasse.

Afinal revoltei-me em vão.
Dói-me o peito.
Chamem a morte.
Quem sabe se conversando se passa mais depressa o tempo.
Nas urgências.

22 comentários:

  1. Respostas
    1. Martinha, tinha deixado aqui um comentário e olha, foi-se!

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  2. Os hospitais-, e as suas urgências, - é talvez o inferno, porque muitas vezes a antecâmara da morte, porque espelha a maior das vulnerabilidades. Outras vezes a salvação. Não me esquece isto: quando alguém morre no hospital a culpa é dos médicos, quando alguém nele se salva o mérito é de deus...

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    1. Kina, eu penso exatamente o contrario. Quando alguém se salva o mérito é dos médicos, quando alguém morre, o mérito é de Deus. Devo muito aos médicos. Algures no blog escrevi porquê, mas a morte da minha avó não foi culpa dos médicos, porque eles não estavam lá...

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    2. Não sei se me expressei bem. Eu não creio em deus. Referia-me ao que tenho visto e ouvido, quase que invariavelmente. Devem existir maus médicos, deve existir negligência, interesses que se sobrepõem aos de salvar uma vida, mas ainda bem que existe a medicina e os médicos, e os hospitais, e as urgências. O que não quer dizer que não almejemos e lutemos por mais e melhor.

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    3. As pessoas falam mal de tudo... Até do que têm de bom.

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  3. Tenho más experiências, muito más, em urgências. E no entanto tenho boas também, no mesmo exacto hospital. A opinião de colegas que tenho na área da saúde é demasiado sinistra e pessimista para uma abordagem rápida.
    Abraço, cara U.

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  4. Dá Deus as "urgências"
    conforme o ministro
    Médicos e enfermeiros são pessoal menor

    (essa de entreter a morte nunca me tinha ocorrido
    sirvo-me da ideia quando for preciso)

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    1. Olá! Caro Rogerio, sirva-se à vontade.
      Este Ministro é Sinistro.

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  5. "as dores sentidas"...temo que as ditas se vão avolumando num sem fim de agonia e de lamentos. uns, proferidos do lado de cá (nós, os que acorremos aos serviços médicos) e do lado de lá (pessoal médico e de enfermagem que nem sempre conseguem acudir às necessidades). a análise não se esgota neste meu parágrafo tão elementar! boa noite, Uva.

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    1. A austeridade mata e mata muito. Os profissionais desdobram-se e desesperam. Às vezes são brutos como as casas, mas só quem vive no convento....

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  6. Como conheço infelizmente essa parte... Abraço apertado :)

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    1. O meu pai, depois de um AVC, esteve 18 horas na urgência... teve sorte.

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  7. Assustador é pensarmos que estamos hoje como estávamos há 26 anos e há 26 anos como há 40 (faz 41 em Abril). Que, se nos der um piripaque, ou se nos passar um camião por cima, estamos entregues (sei lá a quê, se a Deus, se à bicharada, se à sorte macaca). Esse medo, que nos transforma em crianças outra vez, é que não devíamos ter que sentir em circunstância alguma, acabada a infância.
    Mas atenção: eu gosto de médicos, fui gerada dentro de uma, e tenho o maior respeito pelas profissões ligadas à saúde. E, em última análise, na hora da aflição, se não forem eles a acudir-nos, não é ninguém...

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    1. E estamos porque regredimos. O dinheiro é para salvar bancos. Que se lixem as vidas. Eu gosto de médicos e gosto de tudo, mas não gosto do Ministro que lhes calhou em sorte.

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  8. Ei, eu não mereço aquela honra...
    Só por causa disso, vou fazer o que já estou para fazer ácmeses :)

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  9. Uva, quando li este post, não comentei, mas fiquei aqui, ai,ai e porquê, precisamente pelo que dizes (posso não é? também me trataste por tu :)), no teu último post, que me fez ter vontade de bater palmas. É que mais do que nunca, com a história da crise, o Estado-Social parece que aproveita todas as oportunidades para tirar o cavalinho da chuva e o nosso Serviço Nacional de Saúde ainda é uma das coisas excelentes que temos e das quais nos podemos orgulhar e eu estou a começar a arrepiar-me com tanta conversa sobre calamidade nas urgências e dias inteiros de espera e por aí fora, assusta-me que isso esteja a abrir caminho para os maluquinhos do privatizar tudo mais o argumento do já se viu que já não temos capacidade para assegurar e por aí fora e que um dia aconteça como nos EUA, que quem não tem seguro de saúde fica à porta do hospital, ou é tratado de qualquer maneira. Infelizmente, tive que acompanhar familiares algumas vezes às urgências e eu própria estive entre a vida e a morte internada num hospital quando tinha 12 anos, de todas as vezes, não tenho qualquer razão de queixa e de todas as vezes recorri a hospitais públicos. É natural que em alturas de maior afluência as coisas corram pior.

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