13 de fevereiro de 2015

A Menina da Rádio

A última vez que a vi, jazia morta e fria.
Nem todo o calor de agosto, nem o rubor das minhas faces, nem mesmo aquela sala quente de cheiro adocicado e doente, onde vultos estranhos e curiosos se inclinavam para afastar o lenço branco do pudor, puderam convencê-la a ficar mais tempo.
Nesse dia não quis ver mais nada.
Nem quem vinha, nem quem estava.
Não se mexeu e nem me falou.
Estranhei. 
Escuta, o que se passa contigo que estás tão calada? Anda, não te preocupes agora, não te preocupes com mais nada. Anda, deixa as coisas da mão e levanta-te daí. Eu sento-me nesta cadeira e bebo depressa o leite. Juro que me porto bem, e não me ponho descalça, ou de cabeça para baixo a lamber a carcaça, se me deixares cantar desta vez.
Está bem, mas manda embora as pessoas, que me fazem tanto calor. Pergunta-lhes o que querem de mim que eu agora não posso.
E liga a telefonia!

Era o que ela me diria, se me tivesse visto chegar.
Mas naquele dia quente estava tudo calado, nem musica, nem dança, nem fado.
E eu tocando-lhe ao de leve, achei que chorava, que afinal sempre se levantava... mas não, que os mortos não choram, eram somente as minhas lágrimas, caindo sobre ela, já fria, gelada.
Nesse dia, eu não quis saber de nada.
Nem quem vinha, nem quem estava.
Que cabeça a minha, não me lembrar de levar a telefonia.
Não me lembrei de mais nada senão de lhe afagar a fronte fria.
E de a beijar, devagarinho.

Que diria a família, toda ali plantada, se me pusesse dançando como fazíamos no quintal?
Tu pegavas primeiro na saia e fazias a entrada, e na telefonia uma rapariga qualquer cantava, e eu, pequenina, saltitava atrás de ti, agarrada ao avental, e a musica lá seguia.
Tu assobiavas e eu ria.
Na sala quente e sem janelas, onde pessoas estranhas e curiosas comentavam entre elas... tudo quieto, nada abanava.
Está tão bonita.
Pois sim. Façam de conta como nas novelas, que a morte lhe fica bem.
Não percebem que vai vazia, que não leva a musica na telefonia?
Minha avó, que diriam elas se assobiasses uma moda?  

E hoje que toda a gente celebra a Rádio, já não tenho companhia.
E se não posso cantar-te, não te quero ver mais.
Não assim tão morta.
Não assim tão fria. 

16 comentários:

  1. Respostas
    1. Obrigada. Ainda não tinha feito este miminho à minha avó, e hoje precisava muito. Não há nada mais triste do que quando se acaba a música.

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  2. Olha Uva, é de um sentimento!
    Bom fim de semana!
    Cabe aqui um abracinho, junto com uma modinha à moda antiga?

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    1. Pois é. Abracinho e moda, assim ao mesmo tempo, é coisa para me fazer chorar... Outra vez. Vamos a isso.

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    1. Deixas-me sem palavras.
      Gostei muuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuito.

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    2. Quem booooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooo!
      Obrigada.

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  4. Canta. Ela ouve.

    Beijo embrulhado num abraço. :)

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    1. A minha avó adorava aquela telefonia.
      Não sei quem ficou com ela... deveria ter sido eu. Mas não fui...

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  5. Tão lindo Uva. Cada vez gosto mais de aqui vir...

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  6. E lá fiquei outra vez de lágrimas nos olhos em frente a um texto e este nem te digo o quanto me tocou. (E nessa altura, nessa sala, o que apetece mandar embora todos os de circunstância, todos os curiosos, todos os que não sabiam nada daquela pessoa e que com ela não partilharam momentos que ficam para sempre, na memória e também, em alguns objectos, conservo em lugar de destaque e a funcionar, uma telefonia daquelas antigas, que vemos nos filmes, que pertencia aos meus avós maternos e o que eu adoro aquela telefonia)

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    1. Pois sim, pois sim... o meu desgosto é de terem ficado com aquela telefonia, mas eu um dia hei de escrver sobre isso, das telefonias...

      Não queria fazer-te chorar. Mas enfim, também chorei a escrever, partilhamos isso...

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