Estendo o pé e toco com o calcanhar numa bochecha de carne macia e morna; viro-me para o lado esquerdo, de costas para a luz do candeeiro; e bafeja-me um hálito calmo e suave; faço um gesto ao acaso no escuro e a mão, involuntária tenaz de dedos, pulso, sangue latejante, descai-me sobre um seio morno nu ou numa cabecita de bebé, com um tufo de penugem preta no cocuruto da careca, a moleirinha latejante; respiramos na boca uns dos outros, trocamos pernas e braços, bafos suor uns com os outros, uns pelos outros, tão conchegados, tão embrulhados e enleados num mesmo calor como se as nossas veias e artérias transportassem o mesmo sangue girando, palpitassem compassadamente silenciosamente duma igual vivificante seiva.
É um bicho poderoso, este, uma massa animal tentacular e voraz, adormecida agora, lançando em redor as suas pernas e braços, como um polvo, digo: um polvo excêntrico, sem cabeça central, sem ordenação certa; um grande corpo disforme, respirando por várias bocas, repousando (abandonado) e dormindo, suspirando, gemendo. Choramingando, às vezes. Não está todo à vista, mas metido nas roupas, ou furando aos bocados fora delas. Parece (acho eu, parece) uma explosão que atingiu um grupo de gente parada e, agora, o que está ali são restos de corpos mutilados: uma pernita de criança, um braço nu sozinho, um punho fechado (um adeus?... uma ameaça?...), um tronco mal coberto por uma camisa branca amarrotada.
Ou seria, então, talvez, um desabamento súbito, uma avalanche de neve, encardida, que nos cobriu a todos, ao acaso, aos bocados, e para ali ficámos, quietos e palpitando, à espera, quietos e confiantes, dum socorro improvável, cada vez mais improvável, incerto, aguardando a luz da manhã, que chega sempre, que acaba sempre por chegar, para vivos e mortos, calados ou palrantes, ladinos ou soterrados, os que já desistiram da madrugada e os que, ainda, contra qualquer lógica, contra qualquer quantidade de esperança confiam ainda e esperam.
Para a cabeceira, eu, a rapariga, o bebé de dias; para os pés, o miúdo e a miúda mais pequena.
Desde que estamos aqui, estudámos, experimentámos várias posições para nos ajeitarmos a dormir melhor: ora todos em fileira, ao lado uns dos outros, para a cabeceira da cama, ora distribuídos como agora, três para cima, dois para baixo, ou, então, com um dos miúdos (a Lina ou o Zé) atravessados a nossos pés. E havia, ainda, o problema da colocação ou das vizinhanças: eu e a Irene num lado e os miúdos noutro, ou nós no meio e eles um de cada lado, isto com insucessos, preferências, trambolhões cama abaixo, muitos pontapés, mijas, rixas, complicações de família, favoritismos e cìumeiras e choros e berraria às vezes, resolvidos em família entre risos e lágrimas, bofetões, beijos; descomposturas, carícias leves...
Continua aqui: (Comunidade, Luiz Pacheco)
Nunca me farto disto... das letras.
Antes de seguir para a comunidade quero deixar aqui uma reflexão, em forma de expressão
ResponderEliminarse estou bem lembrado 6 numa cama, podem ser arrumados de forma desigual
tantas vezes
quantas são
seis factorial
6x5x4x3x2x1=720, que tal?
Nunca me farto disto, dos números
(mas a propósito de letras
tenho lá um conto que "quero" que leias)
Ai que eu agora deveria fazer aqui um comentário inteligente... mas a verdade é que não percebo nada de números, e nem de tabelas...
EliminarTenho secreta admiração por quem decifra a mágica matemática, julgo mesmo que sou um ser inculto por não saber sequer o que é 'um seis factorial'.
Que sorte a tua.
(belíssimo texto para um homens dos números)
Letras, palavras, frases... adoro.e é por isso que por aqui ando. Gosto de as ler, porque sair, não me sai na da de jeito. :)
ResponderEliminarA mim também não. Eram precisas 800 Uvas a tarbalhar dia e noite para chegar ali ao enorme Luiz Pacheco...
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