19 de março de 2015

Pai

Relíquias, Alentejo, novembro de 1953

Maria, 

Espero que a minha carta te encontre boa. 
Nós cá vamos indo como podemos. O meu Manel, o mais velhinho, abalou em agosto para o Algarve com um moço amigo. Vejo-me aqui sem um homem e faz-me cá muita falta um gaiato para ajudar no monte. 
Os gémeos cuidam nos porcos, mas o que é que esperas, moços pequenos, só querem é fugir, não dou conta deles, e a minha Suzete, pois lá vai dando uma limpezinha à casa e ainda me ajuda a amassar, mas eu sozinha só com os pequenos não consigo dar conta de tudo. 
O Joaquim anda na estrada nova para Colos. Coitado, todo tisnado no meio do alcatrão, nem parece o meu homem, mas fazer o quê? A estrada sem os homens não se dá feita, então não é?
Escreveu-me umas palavrinhas, poucas, dizendo que tão prestes não vinha para baixo e calhando ainda ficava para a apanha da cortiça. Pois deixá-lo. É menos esse trabalho.
E tu Maria? Contou-me a nossa Catarina que já está quase, pois que venha com saúde é tudo o que eu desejo, mas ainda te quero comunicar o que ando cá remoendo. Então tu com outro gaiato pequeno e o teu Zé no pasto, calhando ficas aí muito aflita, ou não?
Não queres mandar o teu 'Tóino para me dar uma ajuda com os perus, Maria? 
Se quiseres mando a minha Suzete na carreta até à estação, se ele não der conta de vir sozinho, que isto parecendo que não ainda é um porradão de estrada, e nesta altura é só lamaçal, e está frio para o gaiato.
Olha Maria, eu cá me prontifico para ficar com o gaiato justo, pelo menos até o meu Joaquim acabar a estrada, ou até ele ter idade de ir para escola. 

Com muitas saudades de todos, aqui te mando um beijo, 
Luzia 


9 comentários:

  1. Adorei ler... levou-me para tempos anteriores a mim!
    Segui!
    NOVO POST! http://hashtagwwgu.blogspot.pt/2015/03/look-antes-da-primavera.html

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  2. Respostas
    1. Sim, cuidar de perús para bem longe da sua mãe, com 5 anos, até ir para a escola aos 8.
      Vidas muito difíceis, mas que em nada o impediram de ser o melhor pai que alguém pode ter.

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  3. A minha mãe encontrou duas pérolas deste género há uns tempos. Achei que era uma relíquia tão grande, que mandei emoldurar, e estão expostas na casa "da terra".

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    1. Não sei se esta história era digna de moldura, mas que ficou na memória do meu pai como uma fotografia feiazenta, ficou.
      É uma história triste. De penúrias.

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    2. As pérolas de que falo (emolduradas) é igual. Muitas penúrias. É ditada por uma mãe (analfabeta), dirigida a um filho que migrou para a cidade em busca de uma vida melhor. A vida melhor que conquistou, foi destruída por si próprio. Mas graças a essa migração deu às duas filhas, que nascerem na cidade, outras oportunidades que não teriam se tivessem nascido na aldeia. Nem tudo foi mau...

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  4. Na altura dos nossos pais era assim, só histórias de penúrias. Mas sem dúvida que tudo isso fez deles boas pessoas, bons maridos, bons pais, bons avós.. Vidas!

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  5. Tempos idos esses... a entreajuda era regra, mesmo sem que estivesse regrada
    bonita carta
    louvo-te por a teres guardada

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