Sábado de manhã.
A televisão está ligada e o barulho é ensurdecedor.
O Pou acabou de fazer cocó verde e eu não escondo uma certa perplexidade por saber que a minha filha, em quem deposito a esperança, se entretém com um boneco escatológico com desarranjos intestinais.
Tão sossegada e tão diferente de mim, que me pergunto onde deixei eu a minha marca.
A menina saiu ao pai. Se calhar é como dizem, e a natureza trata de corrigir os erros fazendo pender a genética para o progenitor mais ajuizado.
Se assim for, nem quero pensar se o próximo for um menino.
Não é costume irmos à praça. As compras cá para casa fazem-se consoante as necessidades.
Agora, o carro cinzento a pedir reforma, conduz o casal suburbano ao infernal e absurdamente gigante hipermercado onde palmilham vários quilómetros empurrando um carro ridículo e cheio de bactérias, só para comprar uma lata de caretos.
No outro tempo não havia 'O Caminho'. As pessoas do bairro aviavam-se no Sr. Américo que apontava profícuamente as contas no livro das dívidas. Aquilo para mim era um sorvedouro. Entrava na mercearia escura e bafienta, esbaforida da correria, e pedia aquilo que me apetecia, normalmente um copo de água fresca, o nicho de mercado que fez enriquecer o senhor Américo por dar de beber a uns 40 miúdos que por ali corriam dias inteiros, depois das aulas.
- A minha mãe depois vem cá pagar!
E o Sr. Américo da mercearia, com a sua caneta BIC sem tampa e sem cu, a babar tinta para cima do caderno andrajoso das dívidas, apontava o copo de água, as pastilhas, e os pirolitos que a minha mãe naquele tempo penava para pagar.
- A minha mãe depois vem cá pagar!
E o Sr. Américo da mercearia, com a sua caneta BIC sem tampa e sem cu, a babar tinta para cima do caderno andrajoso das dívidas, apontava o copo de água, as pastilhas, e os pirolitos que a minha mãe naquele tempo penava para pagar.
A minha pequena não corre na rua, não frequenta mercearias manhosas e leva a água engarrafada para a escola. O Senhor Américo já fechou a loja e os miúdos que corriam na rua desapareceram misteriosamente como que abduzidos por uma vida macabra, que acaba com eles muito antes dos 40.
Olho para ela, a miúda que é a minha, e imagino as alegrias que roubei à minha mãe por nunca me ver sentada no sofá, assim como a vejo a ela; muito composta, com a almofada a amparar as costas, uma manta quentinha pelos joelhos e o pequeno almoço alinhado no tabuleiro.
Por esta hora a minha mãe caminhava por entre as bancas da praça procurando um peixinho fresco e coisas tenrinhas para mim, não porque me faltassem os dentes ou tivesse problemas de deglutição, mas porque não tinha fome nenhuma e aborrecia-me ficar ali todos os dias mais de duas horas a mastigar uma batata frita.
Tão diferente de mim, esta minha filha.
Para ela uma batata frita é uma areia no Universo, e um peixinho no prato desaparece em 4 minutos sem tempo de abrir e fechar a boca suplicando pela vida como vemos nos aquários.
Quando a minha mãe chegava a casa havia de me chamar pelo menos 20 vezes antes de me ver aparecer toda suja ou desgrenhada, cheia de feridas nos joelhos, e mesmo assim, e com toda a calma deste mundo, agarrava em mim pela cintura e enchia-me de beijos até me cansar de tanto amor. Que aborrecido ter uma mãe-lapa que se agarra a nós e nos rouba aqueles preciosos minutos no baloiço antes da cegada que era o almoço.
A minha filha não tem baloiço cá em casa, mas para fazer um contrato que lhe permita comer só 10 colheres de sopa, é capaz de andar agarrada a mim a manhã inteira, penicando beijos e atrapalhando-me os pés.
Foi o meu pai que me ensinou a subir às árvores. Mas nunca me ensinou a cair. Talvez por isso tenha estes altos nos joelhos que ficam desengraçados na calças apertadas, mas agora já não tem remédio.
A minha pequena não sobe às árvores. Acho mesmo que nunca lhe limpei uma ferida ou lhe ajeitei o cabelo desalinhado.
Já eu, era um desalinho pegado.
Uma aventura que talvez ninguém compreenda, só mesmo quem padece do mesmo mal, é ter em casa um vulcão que expele lava, rochas e cinzas, ao invés de uma fonte que brota água fresca e cristalina.
Ninguém quer ter um vulcão em casa. Além do perigo que isso acarreta à habitação, pode causar graves danos na estrutura familiar, com marcas que ficam para sempre.
A minha mãe tem as suas marcas. Eu não fiquei com marcas nenhumas. Julgo que é isso que chamamos de 'ser boa mãe'. Há mães que são melhores que outras e não me venham com merdas.
A minha mãe só podia ser uma belíssima mãe para conseguir aguentar a fúria que sentia por nunca me convidarem para as festas.
- Desculpe, mas a sua filha é muito mexida, não me leva a mal pois não?
Havia de ser comigo!
Depois, mais tarde, era um corrupio para me impingirem os filhos em casamento. Nenhuma mãe quer ver o seu filho casado com moscas mortas.
A minha pequena vai às festas todas e vem de lá sempre com boa nota.
- A sua filha portou-se muito bem, a quem sairá?
Assim na beleza sai à mãe, digo eu com o meu sorriso carregado de base e rímel, mas é mais sossegada como o pai.
E lá vem ela toda contente, pela mão, a dizer que não chegou a tirar os ténis porque acha mal saltarem em cima das camas.
E ali está ela, muito sossegada. Já se cansou do Pou e agora está a fazer festas ao Tom, que ronrona virtualmente e não larga pelos.
A minha pequena não sobe às árvores. Acho mesmo que nunca lhe limpei uma ferida ou lhe ajeitei o cabelo desalinhado.
Já eu, era um desalinho pegado.
Uma aventura que talvez ninguém compreenda, só mesmo quem padece do mesmo mal, é ter em casa um vulcão que expele lava, rochas e cinzas, ao invés de uma fonte que brota água fresca e cristalina.
Ninguém quer ter um vulcão em casa. Além do perigo que isso acarreta à habitação, pode causar graves danos na estrutura familiar, com marcas que ficam para sempre.
A minha mãe tem as suas marcas. Eu não fiquei com marcas nenhumas. Julgo que é isso que chamamos de 'ser boa mãe'. Há mães que são melhores que outras e não me venham com merdas.
A minha mãe só podia ser uma belíssima mãe para conseguir aguentar a fúria que sentia por nunca me convidarem para as festas.
- Desculpe, mas a sua filha é muito mexida, não me leva a mal pois não?
Havia de ser comigo!
Depois, mais tarde, era um corrupio para me impingirem os filhos em casamento. Nenhuma mãe quer ver o seu filho casado com moscas mortas.
A minha pequena vai às festas todas e vem de lá sempre com boa nota.
- A sua filha portou-se muito bem, a quem sairá?
Assim na beleza sai à mãe, digo eu com o meu sorriso carregado de base e rímel, mas é mais sossegada como o pai.
E lá vem ela toda contente, pela mão, a dizer que não chegou a tirar os ténis porque acha mal saltarem em cima das camas.
E ali está ela, muito sossegada. Já se cansou do Pou e agora está a fazer festas ao Tom, que ronrona virtualmente e não larga pelos.
Nem nisso somos parecidas.
Eu tive sempre gatinhos de verdade.
Há mães que são melhores que outras e não me venham com merdas.
(Estás a ver Minha Alma?, esta gaja é uma bem-casada. Se a filha sai o pai...)
ResponderEliminarHahahahahah.
EliminarBem casada!
Boa noite, Uva-Passa.
ResponderEliminarAs crianças serão umas mais fáceis do que outras. As melhores mães serão as suas. E não há pais perfeitos.
Que mania esta de se compararem com os progenitores e se terem sempre em falta... ou de querem os filhos à sua imagem e semelhança.
Um beijo,
Outro Ente
Olá Ente!
EliminarPois não sei se tens crianças, mas acredita que 'crianças menos fáceis' não era bem o grupo onde me inseria. Tive realmente problemas graves de hiperatividade que não sei se suportaria na minha filha da forma como a minha mãe suportou. Sabes, é que não é fácil ter uma filha que foge aos pais (e olha se eu corria bem depressa) e que agarra numa esferovite das sardinhas e se lembra de atravessar a Lagoa de Albufeira munida com um pau de eucalipto... qual Cristovão Colombo dos anos 70!
A comparação é inevitável. É com os teus pais que aprendes as técnicas de ser pai, mesmo sem teres tido um pai vais buscar os exemplos a um adulto que identifiques como tal, e depois não conheço nenhuma mãe que num ou noutro momento não se compare com a sua própria mãe, mais não seja para verificar que estão a anos luz uma da outra. Eu sou muito a inha mãe, mas isso agora...
As melhores mães nem sempre serão as nossas. Tens exemplos disso todos os dias. Há mães e calhaus com olhos que tiveram filhos. Mas se tens essa opinião romântica de todas as mães é porque a tua mãe (ou as mulheres da tua infância) fez um excelente trabalho.
Não tenho essa mania de que falas e nem quero a minha filha à minha imagem e semelhança. A minha filha é um Ser livre, e é assim que eu quero que ela seja.
Não há pais perfeitos, concordo, porquanto a perfeição é um arquétipo que muda de individuio para indivíduo, ou seja, a perfeição não existe.
Um abraço e boa sorte para o teu blog que vou seguindo atentamente.
Uva, se calhar andámos as duas, embora geograficamente separadas, a subir às árvores, a saltar muros, a perseguir meliantes, a esfolar pernas que levaram pontos num hospital perto de mim, a frio, berrando que nem uma desalmada... também tive um baloiço no quintal, e depois...pulo as festas ( as de garagem , então...), mais tarde, muito mais, fiz-me adulta e mãe. Nesse tempo da primeira infância, tive ali uma a miúda tão calma, parecia um "doce embrulhado" com fita brilhante de laço muito bem dado, não porque eu a aprisionasse no celofane, antes, porque essa, era a sua natureza. Entre puzzles, construções, jogos, barbies,a sua existência fluiu. Também acariciou uma gata robot, Kitty de seu nome, . No entanto, cansou-se depressa do cinzento colorido do "animal", e da natureza subserviente que as pilhas lhe concediam. Também ia a festas, muitas, mas nunca me elogiaram o seu comportamento; falta de delicadeza, ou a miúda transfigurava-se ? Agora, penetrou-me uma dúvida perigosa no meu eu, como ser e mãe, que dificilmente vou poder abandonar! Será???!!! Bom domingo, Uva, e obrigada pelo tema.
ResponderEliminarAbraço
Levei tantos pontos que mais pareço uma manta de pachwork.
EliminarE eu que era um animal selvagem que arrancava as solas dos sapatos por as esfregar uma na outra, sou hoje uma pessoa quase amorfa se comparada com a minha infãncia.
Cada filho é um mundo, a tua é o teu mundo, aproveita-a bem, que julgo que é isso que fazem todas as mães!
Abraço.
Revi-me tanto na descrição que fazes de ti. Já da pequena não posso dizer o mesmo. As minhas são muito traquinas, sobretudo a mais nova.
ResponderEliminarAi eras malina???? Logo vi Timtim! A mim nunca me enganaste! ;)
EliminarA caçula sai à mãe...
Gostei tanto...
ResponderEliminar(é bem verdade, há mães melhores que outras, as nossas são sempre melhores)
;)
Eliminarsabes o que me salvou a vida? A ginástica.
E lembro-me que tens um dos teus filhos na ginástica e eu que passei tantas, tantas horas em sítios daqueles com aminha mãe na bancada ao frio.
Meteste no outro dia uma fotografia do interior do pavilhão com as máquinas e zás! fiquei ali perdida naquilo...
cá em casa tudo ao contrário: eu quando era pequenina era calma, tão calma que ouvia a minha avó dizer á minha mãe: tu leva-me esta criança ao médico, ele que lhe dê qq coisa para ter genica e aproveita a viagem e leva o teu filho para deixar de ser asneirento... ahahahah.
ResponderEliminara mc passou a infância descalça: na relva, na praia, na rua... vai à mercearia e deixa a conta para eu pagar. hoje em dia - uma década passada - bate nos rapazes na escola... enfim... :-)
Tu eras das sonsas... as minhas primas eram assim como tu, e eu levava porrada por elas todas que faziam grandes tropelias mas eu é que era sempre a culpada.
EliminarHahahahahahahaha
Eu até fui batizada para ver se me tiravam 'o diabo do corpo´!!!
A tua MC não leva desaforo para casa! Mai nada!
sonsa, nunca. oh pá, não partas já para os insultos que agora sou tripeira e bou-te à cara....
EliminarAgora és tripeira mas o teu coração não. E se me visses com a minha carinha de anjo e cabelinho lourinho..não eras capaz....
EliminarUvinha, este teu post é daqueles que eu te digo que saltam berlindes coloridos e ouvem-se sininhos.
ResponderEliminarLi-o de madrugada, no meio da briga contra o sono (ele a brigar comigo, que eu sou da paz), e venci o bruto quando acabei de o ler. Não foi sono que me deu, foi ânimo para dormir :)
Eu conheço uma menina assim, como tu eras. Tem agora 18 anos e é das melhores pessoas que eu conheço. E só não é a melhor de todas porque eu tenho uma colecção razoável de bonecas e não consigo gostar mais de uma do que das outras. Para além disso, conheço muitas pessoas assim, grandes, enormes, gigantes, como tu.
Olha, nunca te vi, mas conheço-te e gosto muito de ti.
Deves ter dado tanto trabalho a criar como aquela minha boneca. Mas valeu e valeste tanto a pena.
;)
EliminarCom 18 anos ainda não estava bem curada.... mas já não subia paredes...
O que interessa são os valores que os nossos pais nos transmitem e o amor como nos são transmitidos os valores. Creio que a resposta é essa.
Sem carinho torna-se mais difícil transformar uma criança num adulto feliz e sem problemas.
TGMT
Adorei e revi-me na parte dos altos nos joelhos e do regabofe das refeições, no trepar às árvores e no baloiço, já com os filhos não tive a tua sorte, tive duas pestes ainda piores que eu... Há mesmo mães melhores que outras :))
ResponderEliminarGaja Maria, com que então eras uma pisca para comer e portavas-te mal???
EliminarAgora olha, aguenta-te! Filha és mãe serás, era sempre isto que a minha mãe me dizia...
Vamos ver o futuro, que ainda só passaram 8 anos...
Nesta tua "história":)...eu sou filha do sr. Américo:) e o livro de que falas eram..."os calos"...e eu era a miuda que ao fim de semana ia para a feira vender com o meu pai, e à tarde (fim de semana) ia vender porta a porta e os momentos de brincadeira Às vezes aconteciam com os filhos das clientes dos meus pais. à sexta à noite era dia de carregar a carrinha, ao sábado À noite descarregava-se...o domingo era passado na igreja e de segunda a sexta descansava do fim de semana sendo nos intervalos valentemente gozada e sovada por ser baixinha, gordinha e estrabica...os momentos em que era mais feliz era aqueles em que brincava sozinha eu e a minha imaginação. Da minha mãe nunca recebi um carinho, um beijo, um abraço, mas como por magia, nos últimos anos tenho recebido os beijos, os abraços e até o "desculpa, filha" que toda a vida me faltoue ainda há dias me disse "fazes com as tuas filhas o que eu nunca fiz contigo"...venha daí o psocólogo...Há as mães melhores e piores...e há as mães diferentes, que o foram porque assim a vida não lhes ensinou de outra forma.
ResponderEliminarAs minhas filhas são o meu tudo, o meu sangue, o meu oxigénio, já me deves ter ouvido dizer.
Ainda este fim de semana ( a mais velha fez 16 anos) a mãe da melhor amiga dela me disse" Posso adotar a sua filha?! Gosto tanto dela, é um amor a sua menina e faz tão bem À minha!" Sorri e agradeci-lhe já estou "habituada" aos elogios que recebo por causa delas. Todos os dias agradeço a Deus ter-mas "emprestado". A possibilidade de ajudar a crescer dois seres humanos maravilhosos é algo de que nunca me achei capaz na vida e no entanto ao comtempla-las percebo que eu e Mormeu estamos por enquanto a fazer um bom "trabalho".
"Há mães que são melhores que outras e não me venham com merdas. " Verdade!
E há as diferentes, porque a vida é madrasta!
jinhooooosssss (desculpa o testamento!)
Não me rala nada o testamento. Tu escrve o que te apetecer escrever e quando apetecer escrever.
EliminarEu leio tudinho.
Quando disseste que eras filha do Sr. América, caramba, até me tremeu a passarinha! O Senhor Américo tinha uma filha... hahahahaha
Mas aquele Sr. Américo era sinistro. Vendia copos de água às crianças... acho que o teu pai não fazia isso. Ninguém se lembra de vender copos de água da torneira a crianças que brincam na rua...
Tiveste uma infãncia dura. Não é fácil ter-se infâncias duras... lembra-me o meu pai com a sua mãe e com o seu emprego aos 5 anos... caramba, nenhuma criança devia trabalhar, muito menos com 5 anos...
O Universo compensou-te Suri, compensou-te e é isso que te interessa.
E está com certeza a dar as lições a quem tem de as receber.
Esquece o lá atrás e foca-te no daqui para a frente. E que sejas sempre feliz.
Sempre.
Gostei tanto, já nem me surpreendes, é sempre bom vir aqui ;)
ResponderEliminarQuanto às mães, a minha não foi NUNCA a melhor mãe do mundo, muito pelo contrário. Acho que sou para os meus filhos, tudo o que ela nunca foi para mim e digo isto sem ressentimento, agora que cresci e que percebo melhor as pessoas e o porquê das suas atitudes.
Mas a minha mãe, é de certeza a melhor avó do mundo, é para os meus filhos a mãe que nunca foi para mim e acaba por ser fantástico, tudo se perdoa...
;) Ainda bem que gosta de vir. Eu gosto de te receber.
EliminarUm dia disse que o amor aos filhos aprende-se com as mães. Há muitos filhos que nunca tiveram o amor de mãe, e mesmo assim, conseguem criar um amor novo e dá-lo aos seus filhos, como se esse amor novo fosse o primeiro amor da primeira mãe na terra, que aprendeu sozinha a amar.
Isso é maravilhoso Be, maravilhoso.
De repente, senti uma imensa saudade da infância, joelhos esfolados incluídos. Mãe é...doçura.
ResponderEliminarBeijo, Uvinha!