1 de março de 2015

Três gerações

Sábado de manhã.
A televisão está ligada e o barulho é ensurdecedor. 
O Pou acabou de fazer cocó verde e eu não escondo uma certa perplexidade por saber que a minha filha, em quem deposito a esperança, se entretém com um boneco escatológico com desarranjos intestinais.
Tão sossegada e tão diferente de mim, que me pergunto onde deixei eu a minha marca. 
A menina saiu ao pai. Se calhar é como dizem, e a natureza trata de corrigir os erros fazendo pender a genética para o progenitor mais ajuizado. 
Se assim for, nem quero pensar se o próximo for um menino.
Não é costume irmos à praça. As compras cá para casa fazem-se consoante as necessidades.
Agora, o carro cinzento a pedir reforma, conduz o casal suburbano ao infernal e absurdamente gigante hipermercado onde palmilham vários quilómetros empurrando um carro ridículo e cheio de bactérias, só para comprar uma lata de caretos.
No outro tempo não havia 'O Caminho'. As pessoas do bairro aviavam-se no Sr. Américo que apontava profícuamente as contas no livro das dívidas. Aquilo para mim era um sorvedouro. Entrava na mercearia escura e bafienta, esbaforida da correria, e pedia aquilo que me apetecia, normalmente um copo de água fresca, o nicho de mercado que fez enriquecer o senhor Américo por dar de beber a uns 40 miúdos que por ali corriam dias inteiros, depois das aulas.
- A minha mãe depois vem cá pagar! 
E o Sr. Américo da mercearia, com a sua caneta BIC sem tampa e sem cu, a babar tinta para cima do caderno andrajoso das dívidas, apontava o copo de água, as pastilhas, e os pirolitos que a minha mãe naquele tempo penava para pagar. 
A minha pequena não corre na rua, não frequenta mercearias manhosas e leva a água engarrafada para a escola. O Senhor Américo já fechou a loja e os miúdos que corriam na rua desapareceram misteriosamente como que abduzidos por uma vida macabra, que acaba com eles muito antes dos 40.
Olho para ela, a miúda que é a minha, e imagino as alegrias que roubei à minha mãe por nunca me ver sentada no sofá, assim como a vejo a ela; muito composta, com a almofada a amparar as costas, uma manta quentinha pelos joelhos e o pequeno almoço alinhado no tabuleiro. 
Por esta hora a minha mãe caminhava por entre as bancas da praça procurando um peixinho fresco e coisas tenrinhas para mim, não porque me faltassem os dentes ou tivesse problemas de deglutição, mas porque não tinha fome nenhuma e aborrecia-me ficar ali todos os dias mais de duas horas a mastigar uma batata frita.
Tão diferente de mim, esta minha filha. 
Para ela uma batata frita é uma areia no Universo, e um peixinho no prato desaparece em 4 minutos sem tempo de abrir e fechar a boca suplicando pela vida como vemos nos aquários.  
Quando a minha mãe chegava a casa havia de me chamar pelo menos 20 vezes antes de me ver aparecer toda suja ou desgrenhada, cheia de feridas nos joelhos, e mesmo assim, e com toda a calma deste mundo, agarrava em mim pela cintura e enchia-me de beijos até me cansar de tanto amor. Que aborrecido ter uma mãe-lapa que se agarra a nós e nos rouba aqueles preciosos minutos no baloiço antes da cegada que era o almoço.
A minha filha não tem baloiço cá em casa, mas para fazer um contrato que lhe permita comer só 10 colheres de sopa, é capaz de andar agarrada a mim a manhã inteira, penicando beijos e atrapalhando-me os pés.
Foi o meu pai que me ensinou a subir às árvores. Mas nunca me ensinou a cair. Talvez por isso tenha estes altos nos joelhos que ficam desengraçados na calças apertadas, mas agora já não tem remédio.
A minha pequena não sobe às árvores. Acho mesmo que nunca lhe limpei uma ferida ou lhe ajeitei o cabelo desalinhado.
Já eu, era um desalinho pegado.
Uma aventura que talvez ninguém compreenda, só mesmo quem padece do mesmo mal, é ter em casa um vulcão que expele lava, rochas e cinzas, ao invés de uma fonte que brota água fresca e cristalina.
Ninguém quer ter um vulcão em casa. Além do perigo que isso acarreta à habitação, pode causar graves danos na estrutura familiar, com marcas que ficam para sempre.
A minha mãe tem as suas marcas. Eu não fiquei com marcas nenhumas. Julgo que é isso que chamamos de 'ser boa mãe'. Há mães que são melhores que outras e não me venham com merdas.
A minha mãe só podia ser uma belíssima mãe para conseguir aguentar a fúria que sentia por nunca me convidarem para as festas.
- Desculpe, mas a sua filha é muito mexida, não me leva a mal pois não?
Havia de ser comigo!
Depois, mais tarde, era um corrupio para me impingirem os filhos em casamento. Nenhuma mãe quer ver o seu filho casado com moscas mortas.
A minha pequena vai às festas todas e vem de lá sempre com boa nota.
- A sua filha portou-se muito bem, a quem sairá?
Assim na beleza sai à mãe, digo eu com o meu sorriso carregado de base e rímel, mas é mais sossegada como o pai.
E lá vem ela toda contente, pela mão, a dizer que não chegou a tirar os ténis porque acha mal saltarem em cima das camas.
E ali está ela, muito sossegada. Já se cansou do Pou e agora está a fazer festas ao Tom, que ronrona virtualmente e não larga pelos.
Nem nisso somos parecidas.
Eu tive sempre gatinhos de verdade.
Há mães que são melhores que outras e não me venham com merdas.

23 comentários:

  1. (Estás a ver Minha Alma?, esta gaja é uma bem-casada. Se a filha sai o pai...)

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  2. Boa noite, Uva-Passa.
    As crianças serão umas mais fáceis do que outras. As melhores mães serão as suas. E não há pais perfeitos.
    Que mania esta de se compararem com os progenitores e se terem sempre em falta... ou de querem os filhos à sua imagem e semelhança.
    Um beijo,
    Outro Ente

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    1. Olá Ente!
      Pois não sei se tens crianças, mas acredita que 'crianças menos fáceis' não era bem o grupo onde me inseria. Tive realmente problemas graves de hiperatividade que não sei se suportaria na minha filha da forma como a minha mãe suportou. Sabes, é que não é fácil ter uma filha que foge aos pais (e olha se eu corria bem depressa) e que agarra numa esferovite das sardinhas e se lembra de atravessar a Lagoa de Albufeira munida com um pau de eucalipto... qual Cristovão Colombo dos anos 70!
      A comparação é inevitável. É com os teus pais que aprendes as técnicas de ser pai, mesmo sem teres tido um pai vais buscar os exemplos a um adulto que identifiques como tal, e depois não conheço nenhuma mãe que num ou noutro momento não se compare com a sua própria mãe, mais não seja para verificar que estão a anos luz uma da outra. Eu sou muito a inha mãe, mas isso agora...
      As melhores mães nem sempre serão as nossas. Tens exemplos disso todos os dias. Há mães e calhaus com olhos que tiveram filhos. Mas se tens essa opinião romântica de todas as mães é porque a tua mãe (ou as mulheres da tua infância) fez um excelente trabalho.
      Não tenho essa mania de que falas e nem quero a minha filha à minha imagem e semelhança. A minha filha é um Ser livre, e é assim que eu quero que ela seja.
      Não há pais perfeitos, concordo, porquanto a perfeição é um arquétipo que muda de individuio para indivíduo, ou seja, a perfeição não existe.
      Um abraço e boa sorte para o teu blog que vou seguindo atentamente.

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  3. Uva, se calhar andámos as duas, embora geograficamente separadas, a subir às árvores, a saltar muros, a perseguir meliantes, a esfolar pernas que levaram pontos num hospital perto de mim, a frio, berrando que nem uma desalmada... também tive um baloiço no quintal, e depois...pulo as festas ( as de garagem , então...), mais tarde, muito mais, fiz-me adulta e mãe. Nesse tempo da primeira infância, tive ali uma a miúda tão calma, parecia um "doce embrulhado" com fita brilhante de laço muito bem dado, não porque eu a aprisionasse no celofane, antes, porque essa, era a sua natureza. Entre puzzles, construções, jogos, barbies,a sua existência fluiu. Também acariciou uma gata robot, Kitty de seu nome, . No entanto, cansou-se depressa do cinzento colorido do "animal", e da natureza subserviente que as pilhas lhe concediam. Também ia a festas, muitas, mas nunca me elogiaram o seu comportamento; falta de delicadeza, ou a miúda transfigurava-se ? Agora, penetrou-me uma dúvida perigosa no meu eu, como ser e mãe, que dificilmente vou poder abandonar! Será???!!! Bom domingo, Uva, e obrigada pelo tema.
    Abraço

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    1. Levei tantos pontos que mais pareço uma manta de pachwork.
      E eu que era um animal selvagem que arrancava as solas dos sapatos por as esfregar uma na outra, sou hoje uma pessoa quase amorfa se comparada com a minha infãncia.
      Cada filho é um mundo, a tua é o teu mundo, aproveita-a bem, que julgo que é isso que fazem todas as mães!
      Abraço.

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  4. Revi-me tanto na descrição que fazes de ti. Já da pequena não posso dizer o mesmo. As minhas são muito traquinas, sobretudo a mais nova.

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    1. Ai eras malina???? Logo vi Timtim! A mim nunca me enganaste! ;)
      A caçula sai à mãe...

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  5. Gostei tanto...

    (é bem verdade, há mães melhores que outras, as nossas são sempre melhores)

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    1. ;)
      sabes o que me salvou a vida? A ginástica.
      E lembro-me que tens um dos teus filhos na ginástica e eu que passei tantas, tantas horas em sítios daqueles com aminha mãe na bancada ao frio.
      Meteste no outro dia uma fotografia do interior do pavilhão com as máquinas e zás! fiquei ali perdida naquilo...

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  6. cá em casa tudo ao contrário: eu quando era pequenina era calma, tão calma que ouvia a minha avó dizer á minha mãe: tu leva-me esta criança ao médico, ele que lhe dê qq coisa para ter genica e aproveita a viagem e leva o teu filho para deixar de ser asneirento... ahahahah.
    a mc passou a infância descalça: na relva, na praia, na rua... vai à mercearia e deixa a conta para eu pagar. hoje em dia - uma década passada - bate nos rapazes na escola... enfim... :-)

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    1. Tu eras das sonsas... as minhas primas eram assim como tu, e eu levava porrada por elas todas que faziam grandes tropelias mas eu é que era sempre a culpada.
      Hahahahahahahaha
      Eu até fui batizada para ver se me tiravam 'o diabo do corpo´!!!
      A tua MC não leva desaforo para casa! Mai nada!

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    2. sonsa, nunca. oh pá, não partas já para os insultos que agora sou tripeira e bou-te à cara....

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    3. Agora és tripeira mas o teu coração não. E se me visses com a minha carinha de anjo e cabelinho lourinho..não eras capaz....

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  7. Uvinha, este teu post é daqueles que eu te digo que saltam berlindes coloridos e ouvem-se sininhos.
    Li-o de madrugada, no meio da briga contra o sono (ele a brigar comigo, que eu sou da paz), e venci o bruto quando acabei de o ler. Não foi sono que me deu, foi ânimo para dormir :)
    Eu conheço uma menina assim, como tu eras. Tem agora 18 anos e é das melhores pessoas que eu conheço. E só não é a melhor de todas porque eu tenho uma colecção razoável de bonecas e não consigo gostar mais de uma do que das outras. Para além disso, conheço muitas pessoas assim, grandes, enormes, gigantes, como tu.
    Olha, nunca te vi, mas conheço-te e gosto muito de ti.
    Deves ter dado tanto trabalho a criar como aquela minha boneca. Mas valeu e valeste tanto a pena.

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    1. ;)
      Com 18 anos ainda não estava bem curada.... mas já não subia paredes...
      O que interessa são os valores que os nossos pais nos transmitem e o amor como nos são transmitidos os valores. Creio que a resposta é essa.
      Sem carinho torna-se mais difícil transformar uma criança num adulto feliz e sem problemas.
      TGMT

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  8. Adorei e revi-me na parte dos altos nos joelhos e do regabofe das refeições, no trepar às árvores e no baloiço, já com os filhos não tive a tua sorte, tive duas pestes ainda piores que eu... Há mesmo mães melhores que outras :))

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    1. Gaja Maria, com que então eras uma pisca para comer e portavas-te mal???
      Agora olha, aguenta-te! Filha és mãe serás, era sempre isto que a minha mãe me dizia...
      Vamos ver o futuro, que ainda só passaram 8 anos...

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  9. Nesta tua "história":)...eu sou filha do sr. Américo:) e o livro de que falas eram..."os calos"...e eu era a miuda que ao fim de semana ia para a feira vender com o meu pai, e à tarde (fim de semana) ia vender porta a porta e os momentos de brincadeira Às vezes aconteciam com os filhos das clientes dos meus pais. à sexta à noite era dia de carregar a carrinha, ao sábado À noite descarregava-se...o domingo era passado na igreja e de segunda a sexta descansava do fim de semana sendo nos intervalos valentemente gozada e sovada por ser baixinha, gordinha e estrabica...os momentos em que era mais feliz era aqueles em que brincava sozinha eu e a minha imaginação. Da minha mãe nunca recebi um carinho, um beijo, um abraço, mas como por magia, nos últimos anos tenho recebido os beijos, os abraços e até o "desculpa, filha" que toda a vida me faltoue ainda há dias me disse "fazes com as tuas filhas o que eu nunca fiz contigo"...venha daí o psocólogo...Há as mães melhores e piores...e há as mães diferentes, que o foram porque assim a vida não lhes ensinou de outra forma.
    As minhas filhas são o meu tudo, o meu sangue, o meu oxigénio, já me deves ter ouvido dizer.
    Ainda este fim de semana ( a mais velha fez 16 anos) a mãe da melhor amiga dela me disse" Posso adotar a sua filha?! Gosto tanto dela, é um amor a sua menina e faz tão bem À minha!" Sorri e agradeci-lhe já estou "habituada" aos elogios que recebo por causa delas. Todos os dias agradeço a Deus ter-mas "emprestado". A possibilidade de ajudar a crescer dois seres humanos maravilhosos é algo de que nunca me achei capaz na vida e no entanto ao comtempla-las percebo que eu e Mormeu estamos por enquanto a fazer um bom "trabalho".
    "Há mães que são melhores que outras e não me venham com merdas. " Verdade!
    E há as diferentes, porque a vida é madrasta!

    jinhooooosssss (desculpa o testamento!)

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    1. Não me rala nada o testamento. Tu escrve o que te apetecer escrever e quando apetecer escrever.
      Eu leio tudinho.
      Quando disseste que eras filha do Sr. América, caramba, até me tremeu a passarinha! O Senhor Américo tinha uma filha... hahahahaha
      Mas aquele Sr. Américo era sinistro. Vendia copos de água às crianças... acho que o teu pai não fazia isso. Ninguém se lembra de vender copos de água da torneira a crianças que brincam na rua...
      Tiveste uma infãncia dura. Não é fácil ter-se infâncias duras... lembra-me o meu pai com a sua mãe e com o seu emprego aos 5 anos... caramba, nenhuma criança devia trabalhar, muito menos com 5 anos...
      O Universo compensou-te Suri, compensou-te e é isso que te interessa.
      E está com certeza a dar as lições a quem tem de as receber.
      Esquece o lá atrás e foca-te no daqui para a frente. E que sejas sempre feliz.
      Sempre.

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  10. Gostei tanto, já nem me surpreendes, é sempre bom vir aqui ;)
    Quanto às mães, a minha não foi NUNCA a melhor mãe do mundo, muito pelo contrário. Acho que sou para os meus filhos, tudo o que ela nunca foi para mim e digo isto sem ressentimento, agora que cresci e que percebo melhor as pessoas e o porquê das suas atitudes.
    Mas a minha mãe, é de certeza a melhor avó do mundo, é para os meus filhos a mãe que nunca foi para mim e acaba por ser fantástico, tudo se perdoa...

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    1. ;) Ainda bem que gosta de vir. Eu gosto de te receber.
      Um dia disse que o amor aos filhos aprende-se com as mães. Há muitos filhos que nunca tiveram o amor de mãe, e mesmo assim, conseguem criar um amor novo e dá-lo aos seus filhos, como se esse amor novo fosse o primeiro amor da primeira mãe na terra, que aprendeu sozinha a amar.
      Isso é maravilhoso Be, maravilhoso.

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  11. De repente, senti uma imensa saudade da infância, joelhos esfolados incluídos. Mãe é...doçura.

    Beijo, Uvinha!

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