Do que falamos?
Falamos da estranheza - e porque não da nudez - quando subitamente deixamos cair as defesas?
Do que falamos quando falamos em intimidade?
O que é a intimidade e o que nos motiva a abandoná-la, a deixá-la cair, mesmo que não seja a nossa?
Somos estranhos, somos tão estranhos que até o somos para nós mesmos, e tenho para mim que a única forma de nos tornarmos menos estranhos é efetivamente dar, deixar cair ou vender a intimidade.
Por outras palavras, abrir as portas de par em par e deixar tudo entrar, mesmo as más intenções, os julgamentos, as verdades, as mentiras, o lixo dos outros e o lixo de nós.
Cuidado! Prudência é a palavra. A estranheza ainda é uma arma.
Osho dizia que todos nós andamos a esconder mil e uma coisas, não só dos outros mas de
nós próprios. Osho achava que a intimidade regredia o processo civilizacional, porque fora criada por uma humanidade doente com toda a
espécie de repressões, inibições e tabus.
Neste sentido temos um Osho livre, que defende que a intimidade deve ser banida para acabarmos de vez com a estranheza que temos dos outros e de nós próprios.
Osho era um lírico. Osho era um crente.
Não somos todos Osho.
A intimidade ainda é um precioso tesouro que fazemos por guardar e preservar, cada vez mais, nesta sociedade onde tudo é visível, onde tudo é no fundo de todos.
A intimidade no futuro será apenas o nosso pensamento, ou talvez nem o nosso pensamento exista no futuro.
Parece, pelo que leio hoje, que há vários tipos de intimidade ou várias camadas de intimidade.
Como se a varina nazarena das sete saias fosse resguardando o seu tesouro até levantar a última saia, ficando nua, exposta, escancarada, quando na verdade já se expõe totalmente quando levantou o primeiro avental.
Não sabe a varina que ao levantar o avental, já deu inicio ao processo de perda, baixou a guarda, mostrou a saia.
A vulnerabilidade do ser humano começa com a perda da sua intimidade, e que eu saiba perder algo é tornar-se frágil e ser frágil, é tornar-se fraco e ficar fraco, e dos fracos não reza a história.
O segredo é a alma do negócio. A vida é uma troca. A vida é um mercado.
Há também quem entregue, venda, dê, por motivos que podem ser ou não válidos, ignorantes ou de simpatia, a intimidade dos outros, dos seus, e expõe sem que lhe seja pedido ou autorizado, às vezes legalmente, as fragilidades dos outros, as defesas que os outros têm.
Falo (hoje) naturalmente de mães que expõem os filhos para beneficio de uma qualquer motivação, ainda que inocente.
Há somente uma coisa que julgo interessante aqui referir.
A intimidade, por definição, está ligada aos sentimentos de afeto. A intimidade cria-se no afeto, o próprio afeto é intimo.
Se me atentar nesta premissa, posso facilmente concluir que perder a sua intimidade é deixar de gostar de si, e entregar a intimidade dos outros, a estranhos, é quebrar todos os laços existentes.
Parece-me perigoso brincar com a intimidade.
Não achais?
Não se exponham e não exponham. Preservem a vossa intimidade e os afetos.
Mas atenção, não o façam de forma estranha, radical.
Às vezes mostrar uma lágrima é o mesmo que mostrar um sorriso.
Depende muitíssimo do contexto.
Bonito texto. Com muita verdade.
ResponderEliminarParabéns.
Olá Kikas.
EliminarInspirações matinais do meio dia.
Bom dia e um abraço.
Nesta coisa da escrita, da exposição pública e dos textos, há muitos factores envolvidos. Isto parece aquela regra contabilística das partidas dobradas. A uma perda corresponde um benefício. Eu sempre vi assim a vida, em tudo. Até na morte. O meu pai morreu, ganhei a garantia de que não voltaria a passar por aquele desgosto. Ninguém morre duas vezes.
ResponderEliminarQuando perdes intimidade, ganhas qualquer coisa em troca. Ou a simpatia dos outros ou, no limite, aqui nisto dos blogs, mais leitores, ou alguma recompensa monetária pelo boom nas visitas, para quem tem o blog nesse registo da publicidade.
Depois, tens vários tipos de pessoas a ler-te. As que te acham uma lamechas, uma tonta, uma pessoa extremamente humana e sensível, as que te tomam dentro do coração. E só essas importam, na verdade.
Nunca me devo ter exposto tanto, em toda a vida, e para tanta gente, como nos textos em que falei na minha mãe. Esse assunto é-me tão sagrado que ai de quem tenha o azar de sequer tentar beliscar-me por aí.
Porque haver quem nos lê com olhos de ódio, vamos sempre encontrar, pela vida fora. Para isso, nem precisamos de escrever, basta-nos viver. Na vida real, mesmo sem escrever coisa nenhuma, há quem me leia com olhos de raiva, de problemas próprios, que eu não domino nem quero, e há quem me leia, mesmo sem eu abrir a boca, com olhos de amor. É para esses que eu escrevo, e que eu me escrevo, todos os dias, para o resto dos meus dias.
E, como eu costumo dizer, honi soit qui mal y pense.
A intimidade tem várias saias. Varias e sobre vários pretextos podemos prescindir dela.
EliminarEu sou adulta, tu és adulta, e como adultas decidimos mostrar as mamas, as cuecas e a passarinha aos nossos leitores. Tudo bem. A mais ninguém interessa estas exposições e a perda da intimidade.
Se agarras nos teus filhos e todos os dias os fotografas para o teu blogue, como já vi fazerem tantas e tantas vezes com bebés e pequenitos, ora de fralda, ora de cuecas à mostra, ora assim, ora assado, estás a invadir a intimidade da criança sem o seu consentimento, mesmo que não consideres, como sei que não consideras, nenhuma hecatombe tirar fotografias aos filhos no parque a brincar com outros meninos, todos de cuecas ou fraldas. Isso é banal e nem nós somos da idade das cavernas.
Interessa pois, como dizes, perceber se a criança que se vê privada da sua intimidade tem algum benefício com essa privação, se ganha com isso, se fica melhor de vida, ou se pelo contrário, postar uma imagem da menina em cuecas, ou em outra situação frágil (que pode até ser a nadar na praia com o seu biquíni às bolinhas adorável) não vai enfraquecê-la perante algum coleguinha que veja a menina de cuecas ou de biquíni no blog da mãe. Ou outras atrocidades mais negras que nem vale a pena referir que o mundo está cheio de pervertidos.
A tua intimidade é só uma, e a da criança exposta também, independentemente dos olhos que a veem. Sabemos perfeitamente quem são as mães que utilizam os filhos para proveito próprio e de que forma o fazem.
Para mim, e usando a questão das que o fazem e que são mais conhecidas (precisamente por o fazerem) - e que vivem praticamente na casa de toda a gente, por sua escolha e não por escolha dos filhos, e já se sabe que as pessoas querem é saber da vida dos outros até para dizer mal – para estas, dizia eu, a intimidade é outra coisa que ninguém sabe, nem tem de saber. Elas são adultas, inteligentes, lá saberão da vida delas e da vida dos seus.
Para mim a maioria é exposição-benefício alavancado nos filhos; para elas é quebra de tabus, é diversão, é benefício, é negócio, e é tudo bom e não tem mal nenhum.
São pontos de vista.
Elas e os filhos lá se entenderão quando chegarem (lá está) à adolescência e exigirem que simplesmente não os exponham.
Esse dia pode chegar ou não. Pode mesmo não chegar porque a popularidade estranha-se mas depois entranha-se e aquilo passa a ser um modo de vida difícil de abandonar.
Por outro lado, podem as crianças estar tão habituadas naquilo, tão dependentes daquilo, da exposição, do mediatismo, dos afagos ao ego pequenino, que se por um acaso aquilo acaba, deprimem-se, ficam à nora, eram o centro da atenções e de repente passam a ser como toda a gente, perfeitos desconhecidos. Não é fácil deixar de ter coisinhas e férias e brinquedos, tudo de mão beijada em troca de uma intimidade que até ver não lhes faz falta absolutamente nenhuma. Isso virá depois.
Estas coisas da exposição podem afetar algumas crianças e outras não.
Por outro lado se hoje postas fotografias do teu bebé, como fez uma blogger até certa altura e depois deixou de fazer, o bebé cresce e fim. Ninguém o reconhece. Tudo fino, tudo na paz do Senhor.
O que eu acho é que é preciso ter cuidado com o futuro dos miúdos. Se aquilo os diverte e está tudo muito bem e são todos muitos felizes, então ok.
Bem para eles, bem para nós.
Só que não.
Ui, isto ficou gigante. Que tagarelas...
EliminarGostei do post mas mais ainda deste comentário. Certo dia estava no metro e reparei que uma pessoa tinha uma página aberta num tablet de uma blogger que expõe muito os filhos. Aquela coisa simples bateu-me de uma maneira incrível. Não eram meus filhos e senti-os devassados. Ela sentada, com imensas pessoas à volta a observar as fotos que tinham sido colocadas naquele dia. Parece estúpido, afinal sabemos que milhares de pessoas acedem, tal como nós na privacidade da nossa casa, ainda que não as estejamos a ver. Mas encontrar aqueles miúdos expostos num transporte público, foi o que me fez realmente cair a ficha. E não é só as fotos mas sim certas revelações que as acompanham de fragilidades deles.
EliminarOlá Sabichona. Pois é mesmo por ai. Cai a ficha a toda a gente menos a quem devia.
EliminarO que me preocupa é a absoluta leviandade com que usam a vida dos miúdos, sem remorsos.
Usam e abusam, mas são imensamente queridas, porque no fundo mostram exactamente aquilo que os pobres coitados que não têm nada, querem ver.
Gostava de um dia poder conversar uma conversa muito franca com uma dessas mulheres de negócios sobre o seu produto, porque elas não vendem fraldas e nem cremes para o rabinho, elas vendes quem expõem. Gostava de saber como conseguiram ser numa altura destas todas completamente Osho.
Miúdas tão giras pah, com talento, que sabem escrever, a maior parte nem precisava nada desta vida de blogs e promoções, muitas com carola para fazerem da vida o que quiserem, e andam nisto. Palermice.
Intimidade é dádiva. Não se é íntimo de quem não se dá. Se perdes ao expor o que tens de mais pessoal? Umas vezes sim, outras não. Quanto a este mundo virtual, é igual ao da vida real. Há os que escancaram as portas, os que as entreabertem e os que as inventam.
ResponderEliminarBeijo, Uvinha. :)
Olá Maria. Aquilo que penso disto tudo deixei ali em cima na resposta à Linda. Tudo é possível desde que não façamos a nossa vida pisando os outros. Parece-me que há muitas situações assim. Pais pisando a dignidade dos filhos em proveito próprio. Mas creio que a vida fará por lhes mostrar isso mais cedo ou mais tarde. E elas sabem bem o que estão a fazer. Sabem aliás melhor que nós. Se querem correr o risco, que o corram.
EliminarQuerida Uva Passa,
ResponderEliminarEstou sempre a aprender consigo. Não sabia que hoje é dia da intimidade. Só lamento que não seja feriado. (Dava cá uma ponte...)
Como é hábito, gostei de a ler. Concordo que a intimidade é um conceito vago e difícil de determinar. A imagem das saias da nazarena para ilustrar os vários níveis de intimidade é muito bem conseguida.
Sim, é perigoso brincar com a intimidade. Ao invés, na intimidade, perigoso é não brincar.
Beijos,
Outro Ente.
'Sim, é perigoso brincar com a intimidade. Ao invés, na intimidade, perigoso é não brincar.'
Eliminarcof cof cof.
Que raiva não ter sido eu a escrever isto pah!
;)
Amei...a ideia de sermos estranhos para nós mesmos.
ResponderEliminarOlá Uva. Adorei o teu texto. Expões exactamente o que eu penso sobre o assunto. E não sei se concordas, mas o que eu penso também é que, muito pior do que expôr fotos e rostos de bebés e crianças pouco mais velhas (que eu nunca faria) é colocar situações, mesmo sem foto, em que se contam episódios da vida diária dos filhos quando estes já são cientes do seu quotidiano. É que os limites ficarão concerteza pouco claros sobre o que é público ou privado. E por público não quer dizer que se coloque em rodapé no jornal das 8h. A postura irá para além disso. Basta não saber quais os limites para se comentar a vida própria ou alheia na escola, no café ou no local de trabalho. Aquele pensamento: "lá em casa sempre se falou e mostrou tudo e isso não trouxe mal nenhum, pelo contrário" pode surgir em qualquer altura como justificação de actos menos plausíveis. Esta é a minha opinião, que sou uma pessoa que acredita que o respeito ganha-se em pequenas acções quotidianas e em qualquer idade. Um abraço.
ResponderEliminarExatamente caríssimo,
EliminarÉ um mundo perigoso porque em última instância quem está em causa são os que são expostos, muito mais do que as palermices que fazem os que os expõem.
E ontem ouvi uma coisa que não gostei nada, mas compreendi a tirada, e que foi: 'quando os filhos crescerem e já não quiserem ser mais expostos, continuam a ter filhos até à inconsciência para a coisa render, e já há quem o faça.'
Ora isto é medonho pah. Medonho. Olha isto nos ouvidos da criança que foi exposta? A possibilidade de acreditar que foi gerada apenas para fazer publicidade e continuar um negócio? É qualquer coisa de absolutamente horrível e demolidor.