13 de abril de 2015

Um livro pequenino

É hábito antigo da empresa, fazer o jantar de Natal.
Nessa noite aborrecida, em que se trocam presentes baratos, balizados com preços máximos, para não serem visíveis as diferenças sociais na hierarquia da organização, calhou-me por sorte um pequenino livro da Babel, de seu nome A Mãe de um Rio, escrito pela Agustina [Bessa-Luís].
O meu livrinho pequenino, do tamanho da minha mão, apresentou-se despretensioso e sem pretensão de ser lido, muito menos na algazarra que sempre se verifica nos jantares fingidos.
Não lhe liguei até hoje, quando dei novamente por ele, ao perscrutar a minha estante em busca de uma mola mental, para escrever qualquer coisinha, digamos que mais elevada. 
O livrinho, muito alvo, escondido entre os quatro gigantes da saga Guerra e Paz, chamou-me para me contar que antigamente a Terra era quadrada.
Os meus olhos curiosos, que sempre viveram numa terra redonda, quiseram saber que cousas se passavam então, nesse antigamente de Agustina.
A superfície dessa Terra era naturalmente plana, mas, incompreensivelmente, corria sobre ela um rio de fogo. O rio quente, ardente, impossibilitava a existência de aves e flores. Também não havia peixes e nem trigo, e bem assim, era impossível a mão humana, o sono ou a dificuldade.
Tudo coisas novas, invisíveis aos meus olhos, treinados na modernidade.
Segui com atenção o pequeno texto, que descrevendo esses rios de outrora, nessa Terra plana e sem vivalma, foi desaguar como uma criança, destemido e ágil, num tempo que ainda assim não conheci. Fui então parar a um lugarejo fúnebre, cercado de casas de pedra, mausoléus de vivos, onde serpenteavam ruas imundas onde desabavam pequenos muros de cascalho.
Os homens da aldeia eram vulgares, contou-me Agustina, e não precisou de me contar mais nada, porquanto em vulgaridade cabem todas as coisas, menos a escrita dela.
E o livrinho pequenino agigantando-se, contou-me que nesse frio e desalmado lugarejo, como tantos outros que querem andar mas não têm movimento - e quantas pessoas conhecemos assim - fazia-se, a certa altura do ano, a Procissão do Senhor Morto. 
Homens e mulheres, na vulgaridade dos passos, vestidos com mantos de burel, transportavam velas acesas, num grande silêncio. 
Agustina, teimando numa descrição de zénite das gentes do lugarejo, falou-me assim das pessoas negras e enfermiças, agarradas às missas, que tanto me encantam: 
Com a idade, as pessoas faziam-se sombrias e rezavam muito. Não raro ver, com o cotovelo sobre uma travesseira e a cabeça inclinada, alguém que, durante um longo dia de verão, não se mexia, enquanto à sua volta bulhavam os cães e as crianças. Era uma velha que rezava. Estava tão quieta, que parecia ter morrido, e as vozes e o mugido do gado passavam sobre ela como um rasto vão de coisas que aconteciam.
Agustina traz-me as palavras às furtadelas, como gotas de chuva, que espaçadas, caem na minha boca sedenta.
Digam-me, se acaso me souberem dizer, que viagem é melhor que esta, que nos mata a sede de palavras, trazendo no encalço do vento, livrinhos pequeninos?
Os crentes dirão que foi o Natal.
Eu diria que foi Deus.

8 comentários:

  1. Nunca menosprezar um Agustina. Nunca! Por minúsculo que seja. :)

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    1. É tão, mas tão bonito. É quase como se sentisse gosto nas palavras. Uma coisa assim gourmet.
      É isso, é um livro gourmet.
      Vale muito a pena.

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  2. Querida Uva Passa,
    Leio que continua firme na sua opinião sobre as viagens... logo com Agustina que viajava tanto.
    Beijo,
    Outro Ente.

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    1. A Agustina viajava tanto como eu. Viagens na minha terra, e outras que também faço.
      Se gosta dos escritores para lá dos seus escrito lei-a aqui, em entrevista à Anabela Mota Ribeiro: http://anabelamotaribeiro.pt/25862.html

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  3. Ontem à noite, escolhi "O LIVRO DE AGUSTINA" - há muito esquecido na estante - para ler uma página. É também um pequeno livro. Achei curiosa a coincidência de hoje, logo pela manhã, ao abrir um dos blogs favoritos, ter deparado com este belo post sobre um outro tão inspirador pequeno livro, para mim desconhecido.
    Gostei muito.
    Grato pela partilha

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    1. Olá Petrus,
      Deixe-me dizer-lhe que é uma honra ter um leitor tão especial lendo os meus posts, ainda para mais se temos gostos idênticos de leitura.
      Isto sim é verdadeiramente inspirador.
      Obrigada eu.

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