27 de maio de 2015

A certa altura

- Mas agora a sua vida melhorou, não é verdade?
- Sim, sim, mas foi muito duro, especialmente nos últimos tempos em que basicamente não tinha dinheiro para nada, ouve lá, nem dez cêntimos tinha na carteira, nada, sabes, acordar de manhã e não saber o que fazer da vida, e a fome...
- Mas passaste fome?
Ri-se e dá dois passos atrás. Calca qualquer coisa invisivel contra o passeio com o sapato engraxado e muito brilhoso, enquanto chupa um cigarro já pequeno. 
Na bafurada sai-lhe isto:
- É assim miúda, eu não passei fome-fome, porque a certa altura a fome passa.

'A certa altura a fome passa.'
A certa altura não sabes já como encarar a realidade, as pessoas reais, a desilusão de saberes que a sociedade da forma como está organizada, em democracia, não resolve um terço dos problemas das pessoas.
Vejo o drama que é viver na corda bamba, quando o chão está mesmo ali a dois palmos. Obrigamos as pessoas, sim, nós sociedade, a fazer malabarismos com a vida e ilusionismo com a morte.
Somos culpados, todos, eu, tu, por darmos conscientemente aos que não sabem tratar da sua própria vida, o poder de tomar conta da vida dos outros.
Somos nós que nos desperdiçamos, somos nós que nos abandonamos. Somos nós que esticamos a corda, sem força, sem vontade.
Não há fome em Portugal, mas temos um Portugal faminto. 
Não há fome em Portugal, porque a fome, como a indignação, também passa.

Mas ainda há pessoas que fazem umas coisas, coisas lindas, coisas realmente lindas, que ultrapassam, que me ultrapassam, porque eu escrevo, eu indigno-me mas não faço absolutamente nada para mudar isto.
E isto tem mesmo de ser mudado.








Créditos da Imagem e Artista aqui!

18 comentários:

  1. Querida Uva Passa,
    A arte das palavras não é menos arte. A indignação em texto não é menos indignada. Este seu texto, por exemplo, como exercício de indignação de quem faz. Mas faz mesmo. Começa a fazer logo ao ver. E continua fazendo escrevendo. Nem tudo passa. Ao lado.
    Boa tarde,
    Outro Ente.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Não passa ao lado, passa mesmo à nossa frente.
      E não há maneira de decidir o que fazer para lhe pregar a rasteira.
      Um abraço enorme, (Par)ente.

      Eliminar
    2. Eu vou escrever um comentário parecido com o do Outro Ente, por isso escrevo aqui. Fazes, sim. Fazes o que podes. E o que podes será educar a tua filha e escrever neste blogue, por exemplo. Acordas mentalidades, polarizas as pessoas que te lêem, "obrigas-nos" a pensar e a escrever aqui comentários. Cada um de nós não é mais que uma gota de um oceano imenso e por isso o que faz fá-lo-á do tamanho da gota que é. Mas se atrás de uma vierem outras, dez, cem ou mil gotas inspiradas por ti, então talvez a tua filha já possa ver a diferença. Ou os filhos dela. Tu fazes, Uva. E eu também faço. E muitas das pessoas que têm blogues e não perdem tempo a ser más umas para as outras, fazem. É esse o caminho, no qual damos apenas um passo de cada vez. :-)
      Um beijo, querida Uva.

      Eliminar
    3. Tu és tão querida Susanita.
      Eu não sei se escrever o Uva é alguma coisa de especial, até porque é um blog da parvoeira, que às vezes lá se indigna, lá se comove, lá deita mais umas achas para as fogueiras, mas a sério a sério, que posso eu fazer por aquele rapaz? E por outros rapazes e famílias que não têm mesmo o que comer, ou têm o dinheiro contado? 350 mil pessoas, li ontem, recebem 505,00€ por mês para pagar tudo na vida e ninguém as ajuda. Eu até fico mal disposta.

      Eliminar
  2. Doeu-me este post. Sobretudo porque também me indigno mas não faço nada para mudar isto.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Temos de arranjar uma solução.
      A democracia tá visto que resulta mal ou então está mal gizada.

      Eliminar
  3. Gosto tanto de cá vir! (Ainda que às vezes doa um bocadinho...)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. E eu gosto muito que cá venhas.
      E não dó nem um bocadinho!

      Eliminar
  4. O que magoa é que, por mais altruístas que sejamos, por mais que ajudemos, se não houver políticas que protejam estas pessoas, nada se resolve. Isto não vai lá com caridade!

    Beijo, Uvinha. :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Precisamente, nem o povo tem capacidade para acudir a todos. Nem tem de ter. Caramba!

      Eliminar
  5. Pois é, o umbigo de cada um é muito bonito.
    Há muitos tipos de fomes, eu por acaso lido com alguns diariamente.
    Adorei o post "acorda mentes". :)

    ResponderEliminar
  6. Pois... daquelas coisas que existem, todos sabem que existe, alguns até fazem algo, mas na realidade quem devia fazer, nem quer saber...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Querem saber de encher os bolsos à conta do pacóvio.
      Não vês as notícias? Todos os dias apanham gatunos a roubar o povo.
      As crianças com deficiência não têm apoio de 120,00€ mês para as fisioterapias e para os tratamentos, mas a Volvo Ocean Race e a Merda do Futebol e o perdão das dívidas fiscais e o dinheiro para os estádios é à barba longa.

      Eliminar
  7. Obrigada por esta partilha Uva :) por vezes "fazer algo" é mesmo ser capaz de tornar alguém mais consciente da realidade à sua volta.

    ResponderEliminar
  8. Raramente me acontece começar a escrever um comentário e apagar e escrever outra vez e apagar...deixa ver se é desta...Tenho muito medo de mim, da revolta calada que trago em mim, desta bola que sinto na garganta sempre que engulo as lágrimas (à frente das minhas filhas).Às vezes é tanta a raiva, a ira a fúria, o desespero que dou graças a Deus por não ter armas em casa, porque um dia vou deixar de saber de mim e do que faço...calculo que não seja a única a sentir assim...a única coisa para a qual não encontro resposta é:
    Porque é que o português é um indignado tão calado? Razão tinha o outro para meu grande espanto: Ai aguenta, aguenta...tinha razão pelos vistos, até quando?! Ninguém sabe.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Precisamos de saber fazer as coisas.
      A única arma que temos é o voto, a greve e a manifestação.
      Os que fazem greve são comidos pelos que são importunados com a greve e só falta baterem nos grevistas que lhes lixam o dia de trabalho.
      Os que votam são comidos pelos que não votam que só sabem é dizer mal dos que foram votar, porque escolheram mal.
      Se fazem manifestações é porque não servem para nada e nem vale a pena e que as manifestações são uma feira de vaidades que não tem significado nenhum e é um antro de sindicalistas.
      Decidam-se porra!

      Eliminar