22 de junho de 2015

Água de Colónia - Capitulo I

Carméncita,
Minha querida e boa amiga,

Por ocasião da minha visita a Colónia, onde me recebeste nos teus braços, e em tantos abraços, pude finalmente cumprir a ilusão, realizar um sonho, e saciar uma grande sede de menina.
Visitar-te no teu país, ser eu a abrir o portão e dizer: ó-da-casa, já não há ninguém para receber a família?!, desarrumar o teu quarto e sair impune com isso, chegar muito tarde do café e dizer ela é que me levou porque eu não conheço aqui nada (e livrar-me assim de substancial castigo), mas sobretudo para descobrir porque razão te decidias a desaparecer todos os anos, dentro de um taxi demasiado pequeno para tanta folha de eucalipto, tanta areia da praia, tanta casca de sapateira, de um sitio para onde de resto voltavas sempre, foi uma curiosidade e uma vontade que me acompanhou a vida toda.
Julguei que amavas muito mais o teu país - conceito que se assemelhava a uma espécie de íman gigante que sugava os estrangeiros todos no final do verão, como os aspiradores sugam as migalhas no final das festas -, do que me amavas a mim, tua prima emprestada pelo avô emprestado, os tios e padrinhos, o Pitó, a Lagoa, e o mar.
Enganei-me.
Também me enganava, ou quem queria eu enganar, quando te via desaparecer na velhinha estrada de terra batida, perdendo o teu rasto visível, mas esperando, secretamente, que na curva da rua espreitassem os teus olhos muito negros, novamente, como se a visão explícita da tua partida se transformasse antes na visão implícita da tua chegada.
Nunca voltaste, a curva da rua levou-te sempre, definitivamente, como o outono leva o verão.
A grande ilusão, a herança que me deixavas no adeus do ultimo dia, num gesto sem amanhã, como diria Kundera, de que mais cedo ou mais tarde, quem sabe se no Natal, te visitaria, não tardou em transformar-se numa grande realidade, que havia de se repetir a cada ano, e como um rol de memórias boas, dessas que nos deixa de legado o velhinho falecido, definíamos a cada verão as partilhas das emoções, chorávamos umas lágrimas já muito crescidas, habituadas aos mortos de saudades, e dali a pouco, enquanto eu de bruços na cama esquiçava já um projecto de carta numa folha qualquer, tu, no grande avião, ligavas o teu espantoso walkman e adormecias.
A grande ilusão de te visitar vagueava nos meses seguintes pelas meninges inflamadas de memórias, mas a viagem, essa, nunca se realizou.
Realizava-se outra coisa, não tanto do meu agrado como receber-te novinha em folha no portão, mas que fez parte, muitos anos, da minha vida.
Nos meses frios e já em Lisboa, cumpria-se a desdita
Um grande caixote de papelão chegava ao aeroporto e vinha numa fona parar à minha porta. Nunca soube como chegava nem como conseguia a tua mãe enviá-lo, mas chegavam todos os anos envoltas num vago perfume a naftalina, as tuas roupas de inverno. E era um grande castigo para as vestir. Ainda hoje não sei como deixaste a tua mãe comprar-te aquelas coisas. Uma vez mandaste-me um vestido cor de vinho, muito feio, feito numa grossa e dura flanela, com grandes mangas em balão. Lembro-me muito bem de ver a minha mãe retirá-lo todo engelhado do caixote, onde jazia dobrado em três, e a exclamar: ahh este é muito bom, que quentinho, apalpa lá, e serve-te de certeza. Apalpei e serviu. Serviu sobretudo nas mangas, onde fiz quatro buraquinhos pequenos, com a tesoura do cabelo, para enfiar as patas do gato, que coitadinho, cheio de frio, ali gostava de se enfiar com a manga vestida. Levei uma grande tareia por estragar a roupa boa, mas a culpa foi tua, a culpa foi sempre tua. Onde tinhas a cabeça quando compraram aquele entroncho
Salva por um gongo muito semelhante ao que utilizava para sair a correr da escola, escapei-me quase sempre aos teus, digamos que, sinistros modelitos alemães compostos por vestidos de flanela e calças de fazenda-cor-de-caramelo-boca-de-sino, que ainda por cima me picavam como se estivesse estendida sobre um manto de urtigas, e aos gorros, tão retesados e grossos que mal podia ouvir os meus pensamentos.
A causa principal, o que me prolongava aquele horrível sofrimento que vinha dobrado em três dentro do grande caixote, era que quando chegavas no pino do verão, toda fresca e airosa nos teus calções de licra ou nas tuas calças rasgadas, sempre me esquecia de te dizer que cá em Portugal o termómetro nunca passava dos 5 graus para baixo e que os teus gorros não me passavam nas orelhas.
Mas acabou por não ser preciso. Finalmente as minhas pernas cresceram mais que as tuas, e nesse ano senti um grande alívio.
A felicidade estival, o que sentia de cada vez que te via no portão, implicava pouca roupa e nesse aspeto, tu e o teu corpitcho de Jessica Rabit, davam 10 a zero ao caixote.
Raro foi o rapaz, surfista, motoqueiro, azeiteiro, bimbo, beto, banheiro, que não se apaixonaram pelo teu dialecto colonês, quando dizias que gostava muito de comer patatas fritz, ou quando utilizavas o quipkadinho  quando te convidavam para dar um mergulho.
- Quipkadinho estou de volta, não te esqueças de me escrever, já tens a morada? olha que é igual à do ano passado! 

E escrevi-te muito, e escrevi-te cartas sem fim e cartas sem conta. 
As fotografias que me mandavas nas respostas, todas marcadas com mês e ano a caneta azul de letras muito redondas, recordam para sempre aqueles tempos tão felizes, as nossas memórias mais profundas, os nossos segredos ainda escondidos, as pessoas que ainda tínhamos vivas.

Foi por tua causa que aprendi a escrever.
Já não visto a tua roupa, mas ando sempre contigo vestida.  

8 comentários:

  1. Querida Uva Passa,
    Eis como se escreve uma carta. Que texto bom e real.
    Até breve,
    Outro Ente.

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    1. Obrigada.
      É só um bocadinho de uma carta. Espero conseguir acabar, sobretudo que a memória não me falhe...
      Abraço.

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  2. Que lindo, Uva, mesmo. Este é um daqueles teus textos que...é um daqueles textos e ficamos assim.
    Também posso agradecer à tua amiga "Carméncita", o facto de ser a culpada por teres aprendido a escrever? deixas?
    Muito Obrigada, amiga "Carméncita" da Uva.

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    1. ;)))
      Obrigada.
      A mim também me vieram as lágrimas aos (m)olhos. São recordações da nossa vida, são coisas que guardamos para sempre. Boas, quentes, risonhas. Mesmo nas despedidas.
      A Carméncita foi de facto uma grande impulsionadora. Não tinha dinheiro para telefonar para ela, e tinha sempre tanta coisa para lhe dizer, que enfim, a necessidade aguça o engenho.

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  3. Aguardo a carta seguinte ansiosamente. Bonito :)

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  4. Quais emails, qual carapuça. Que os selos de correio nunca te faltem!!!

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