24 de junho de 2015

Ainda o livro

Ainda o livro.
A obra prima.
Os meus olhos percorrem as páginas como que sorvendo cada letra. Sigo incessantemente as reflexões. Esquivo-me nos parágrafos mortos e obedeço ao chamamento de lá regressar. Tenho uns enormes dentes que arrancam pedaços do texto e os depositam, como faz a mãe-gata, com muito cuidado, num livrinho pequenino.
Quero cristalizar aquelas ideias tal como ali vêm descritas porque perfeitas.
A cadência certa, calibrada, as explicações que não ocupam um espaço já preenchido pela nossa dedução, um show, don't tell extraordinário. 
Uma coisa do outro mundo.
Aparece-me este gigante no meio do caminho, sem vontade de me deixar passar, e no entanto, não é um livro incontornável. 
Escapou-se da minha boca muito aberta a dificuldade de ler O Som e a Fúria.
Disse-lhe, à queima roupa, que o início do livro me pareceu completamente desarticulado e que o tinha abandonado, considerando-me demasiado estúpida para o entender. Faulkner escreveu toda a primeira parte sob a prespetiva de um deficiente mental de 33 anos. Talvez não fosse assim tão fácil entender o que dizia um deficiente mental, disse-me, já com a caneta vermelha no papelinho, com aquele ar de quem sabe tudo, sabendo, deixando-me na perplexidade natural dos ingénuos, ignorantes, sem acesso à internet nos verdes anos.
Leia este. Vai talvez entender melhor o que Faulkner escreveu, e talvez encontre alguma referência a Joyce. 
O homem é grande.
O que escreveu o livro e este que mos dá a ler.

Que a vida é uma armadilha, isso sempre se soube: nascemos sem o ter pedido, encerrados num corpo que não escolhemos e destinado a morrer. Em contrapartida, o espaço do mundo oferece uma permanente possibilidade de evasão.  
Milan Kundera - A Arte do Romance

7 comentários:

  1. "possibilidade de evasão", nem sempre é fácil de alcançar, porque estamos demasiado aprisionados ao tal corpo.
    Bom dia, Uva.

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    1. Mia, não te fez lembrar o Kafka com o seu K. que acorda aprisionado dentro de um inseto? E depois escreve aquilo tudo que é tanto, sem sequer sair daquele estado. O Kafka, dentro do inseto encetou uma nova corrente do Romance. O Surrealismo.

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  2. Faulkner nunca me pareceu fácil e não me fiquei só por um título para não dizerem que tinha escolhido o mais difícil. Não sei se sou eu a ligar a biografia à escrita, mas sempre me pareceu haver muita desconexão alcoólica pelo meio de coisas bem construídas. A espaços era como entrar numa casa em que, pelo meio, havia divisões totalmente inacabadas ou destruídas e na outra a seguir tudo estava como era suposto...

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    1. O melhores artistas (sobretudo pintores) fizeram grandes coisas com grandes bebedeiras.
      Não é fácil entender com 15 anos (e sem internet) que possa haver um livro que se inicie, sem pré-aviso, sob a visão de um deficiente, sendo que o deficiente seria o próprio autor, e que a deficiência era o alcoolismo.
      Faulkner era o típico escritor que acreditava escrever melhor sob o efeito das bebidas, de preferência whisky.

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    2. Nada contra o álcool enquanto combustível artístico, tirando quando a coisa se torna uma fritadeira e eu me possa sentir uma gamba a ser panada :)

      Mas vou variando a fronteira da paciência de caso para caso.

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    3. Eu própria já fiz grandes coisas com uma grão(zinho) na asa....

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  3. AM deixou um novo comentário na sua mensagem "Ainda o livro":

    Milan Kundera é de outro mundo.
    Apaixonei-me e devorei "A Insustentável Leveza do Ser".

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