Eu e a minha mãe - Lagoa de Albufeira - 1981
Não posso deixar de confessar que ontem, enquanto lia as páginas finais de um belíssimo livro da Elena Ferrante, me surpreendi de olhos presos no tecto a pensar na minha idade.
Tomei consciência do meu corpo ali deitado, levemente coberto pelo edredon fresco de verão, e mexi-me levemente; não sei se para confirmar a existência de movimentos ainda jovens, se para confirmar artroses e artrites crescentes, ou se para verificar que estava definitivamente a envelhecer, incapaz de me levantar de um sopro e correr, e que dentro de um ano teria mesmo 40 anos.
Suspirei e convenci-me que sim, que entraria numa fase confusa do meu eu, possivelmente alavancada (mas não totalmente convencida) pelos dogmas sociais dessas mulheres maduras que evocam os 40 como se só depois dessa idade começássemos a viver a vida em pleno, e enfim, como se no dia a seguir ao aniversário transpuséssemos uma parede muito alta que até ali nos impedia de sermos felizes plenamente.
Desculpas. Desculpas?
Não posso deixar de confessar que apesar de sentir com todas as minhas forças que estou bem, que o melhor está para vir, e que ainda tenho sex appeal suficiente para me rebolar em frente ao espelho, a verdade é que ontem me senti inquieta.
O tempo passou, isso é certo, mas não é menos certo que eu fiquei presa a uma certa juventude psicológica que me custa largar. Cá dentro sou ainda uma miúda, e como tal, permito-me por vezes comportar-me com condescendência, desculpando-me a certas infantilidades que ainda tenho.
Por exemplo: aos 39 anos sou ainda capaz de subir para cima de um balcão e entrar numa brincadeira imberbe com os meus amigos estupefactos na pista de dança, e ainda voo em cima de uma bicicleta como se tivesse 9. Sou na verdade inconsequente, porque me desculpo a atos perigosos, ridículos?, e inconsciente porquanto, assim, me liberto também da minha idade.
E tenho uma filha para criar. Não posso partir as duas pernas ou ficar deformada dos braços se por acaso me estatelar no asfalto, ou cair redonda no meio da rapaziada que dança.
Pensando bem, o facto de me ter deitado antes da minha filha, ontem à noite, é possivelmente um resquício da saudade que tenho de ser nova, miúda de verdade.
Soube-me bem ser beijada ao invés de beijar, no intimo beijo de boa noite.
Não posso deixar de confessar que por vezes me surpreendo no papel de mulher. De mãe.
Pergunto-me como foi que aqui cheguei e se é realmente verdade que transpus a barreira que me separa da protegida para o lado da a proteger.
Eu também quero que me descasquem as frutas, e mas entreguem em gomos suculentos, e ainda não sei se gosto mais de aninhar uma cabeça no meu colo se de aninhar a minha cabeça num colo.
Ali deitada, com o livro aberto em cima do peito, fiquei indecisa sobre que idade teria eu.
Tenho 39, lembrei-me, e dentro de fugazes meses farei 40.
Repentinamente senti que nada poderia consolar-me e que ficaria para sempre presa à convenção de ser velha, de estar a ficar velha, e de ser ao mesmo tempo uma miúda, ou pelo menos imaginar-me demasiado miúda para a minha condição de velha.
O que será que vai acontecer quando a minha filha crescer e com ela arborescerem amigos, rapazes, miúdas, que virão visitar-la cá a casa? Serei capaz de aceitar que na vida tudo passa, e que até a Uva passa? Que não poderei, nem ela quererá, como eu também não quis, levar-me nas asas da sua juventude temendo que lhas corte?
Talvez. Nunca tive vontade de ser uma mãe 'jovem' que acompanha a sua filha nas discotecas ou em saídas com amigos. Quero sim, ter amigos 'jovens' que me acompanhem na velhice dos meus dias.
Gostava muito de transportar os meus amigos ainda jovens para esse tempo futuro, razão pela qual ainda hoje teimo em fazer novos amigos, amigos novos, e por isso jovens e por descobrir.
Conseguirei eu, no inexorável passar dos anos, acatar, como um cão batido que se agacha depois da violência do dono, que a juventude desaparece do corpo e depois nos deixa secos como um carapau ao sol?
Talvez me torne numa velhinha cheia de genica, de rabo de cavalo no alto da cabeça, calças de cos alto por cima da camisola fina de algodão, mangas arregaçadas e sapatilhas de corda.
Ou talvez não.
Gosto muito quando me dizem hoje é o primeiro dia do resto da tua vida.
Penso muito nisso, ali deitada.
O resto da minha vida suplantará, em tudo, os restos da minha vida. Poderei recomeçar a partir daqui, desabridamente, sem o lixo nas costuras da algibeira a lamberem-me as pontas dos dedos, aglomerado de pedras pequeninas, que se enfiam nas unhas e nos magoam.
Tiro mentalmente os bolsos para fora, sacudindo-os, e começo de novo. Sem lixo, sem pedras e sem nada.
Não posso deixar de confessar que por vezes me surpreendo no papel de menina.
Como a minha mãe, ali, ainda tão jovem, vivia também o primeiro dia do resto da sua vida.
A vida faz-se ... vivendo. Por etapas, no dia a dia, em cada passo.
ResponderEliminarParabéns!
Ando a sofrer de véspera, é isso não é?
EliminarEstava ansiosamente à espera deste teu post, apesar de te ter dado um ano a menos.
ResponderEliminarE que tal? ;)))
EliminarA juventude psicológica também não me larga e nisso revi-me perfeitamente, de resto foi tudo novo para mim porque ainda não parei para pensar nisto da idade, mas terminei a leitura com a sensação que talvez já esteja na altura disso.
EliminarQuerida Uva Passa,
ResponderEliminarNão se reduza às expetativas. Nem mesmo às suas. (Que texto afetivo.)
Um beijo,
Outro Ente.
É impossível não expectar. A certa altura da vida, ou mesmo dos dias, a pessoa que racionaliza demais, como eu, acaba sempre por avaliar o passado e perspectivar o futuro. E tira conclusões que não lhe servem para nada além de um frémito depressivo que se instala e se torna crónico.
EliminarÉ afetivo porque estou cheia de pena de mim própria.
Acontece.
Este teu texto quase nos tira o fôlego de tão bom que é.
ResponderEliminarTenho 51 anos. A passagem para os entas não teve em mim esses impactos que muitas vezes oiço. Ou de alegria desabrida para os que dizem que a vida começa aos quarenta (que mentira!) ou de aborrecimento porque, teoricamente, há uma metade que é de fase decrescente. Também, de modo nenhum, pertenço à ala que defende que a idade está na cabeça. Não, também está no corpo. E com isto estou a pensar na saúde e não na estética. Por outro lado, há que lidar com situações novas: a independência dos filhos e o seu afastamento, a necessidade de acompanhar progenitores idosos, rupturas de casamento não invulgares nestas idades.
Mesmo quando a mente se mantém activa e jovem, julgo ser importante haver consciência de que o passar dos anos, a partir desta idade, provoca maior desgaste. Não é tipo um pânico de ficar-se velho... Aliás, será muito bom chegarmos a velhos de idade.
Uma passagem do teu texto, chamou-me mais a atenção: "E tenho uma filha para criar. Não posso partir as duas pernas ou ficar deformada dos braços se por acaso me estatelar no asfalto, ou cair redonda no meio da rapaziada que dança." É que é precisamente por teres uma filha para criar que vais ter de te precaver mais para não partires as pernas... Ou seja, em princípio, com o tempo vais passar a calcular mais os teus riscos. Não se trata de não arriscar, mas sim de ponderar mais sobre os resultados das opções que tomas. Parece-me que aqui é que reside a grande diferença, e que não é nada má.
O começar de novo é mais uma metáfora relativa a uma mudança que se quer fazer do que outra coisa. Na realidade, nunca se começa uma vida de novo porque é impossível apagar a nossa história, essa bagagem que, para o bem e para o mal, está tatuada nas nossas vísceras e faz parte do sangue que corre nas nossas veias.
Talvez o equilíbrio de corpo e mente, o rodearmo-nos de pessoas positivas, tolerantes e solidárias, e chutar para o lado quezílias da treta, sejam pontos importantes a considerar mais nessa fase da chamada meia idade.
Um beijo, Uva.
Que bonito comentário. Li-o ontem com muita atenção. Gosto muito de saber que há por aqui pessoas de carne e osso, pessoas que não se privam de se virar do avesso para comunicar comigo coisas que sabem que me vão ajudar.
EliminarA tua experiência diz-me muito do que és como pessoa. É isso que venho procurando aqui.
Fico feliz por encontrar.
Obrigada e um forte abraço.
De quando em vez, apetece-me tanto ser filha em vez de mãe! E ficas a saber que os "entas", apesar de nos assustarem um bocadinho, não nos roubam a criança que nos habita.
ResponderEliminarBeijos, Uvinha. :)
Exatamente. Ainda tenho mãe, mas já não é a mãe que tinha, e procuro-a incessantemente. Dentro e fora de mim.
EliminarUm abraço e que a criança que habita em ti nunca ter abandone.
Tirando o facto de nunca ter lido esse livro. Tirando o facto de não ser mulher e assim, também, tirando o facto de nunca ter sido mãe. Tirando mais um ou outro facto, aos setenta, podia ter sido eu o autor do teu escrito.
ResponderEliminarÉ que amanhã, minha querida amiga, será o primeiro dia do resto da minha vida e não posso deixar de confessar que por vezes me surpreendo no papel de menino...
Verdade!
O livro é ótimo, dos melhores que já li, mas julgo que a Elena Ferrante é mais apreciada por mulheres.
EliminarFazes anos hoje e eu vou já dar-te aqui um grande parabéns!!!!!!
Que bom ver-te assim menino! Nunca percas a coragem.
Amanhã, faço anos outra vez. Aliás, faço anos sempre no dia a seguir...
EliminarTambém andava pela lagoa de albufeira, nessa época. Todos os Verões lá íamos nós. Hoje quando penso nisso, vejo que tínhamos umas férias à Verão Azul!
ResponderEliminarE onde ficavas tu? Reconheces o local onde eu estava? Ou é difícil?
EliminarEstou na dúvida. Eu quando ia com os meus primos ficava sempre do lado de cá da lagoa. Do lado onde havia mais casas e os restaurantes. Lembro-me daquela subida gigante que hoje não nem de perto nem de longe o que era naquela altura.
ResponderEliminarCom tantas casas na margem, a foto deixa-me confuso :-)
E quando abriam a lagoa para a água do mar entrar em força? Alta corrente!