9 de setembro de 2015

Eu também tenho um amigo taxista

O N. é taxista, mas não era.
O N. foi em primeiro lugar amigo dos meus pais, quando ainda usavam todos tacão e calças à boca de sino, e depois meu, quando o conheci pessoalmente muitos anos depois.
O N. era a pessoa mais feliz que conheci. Pançudo, muito moreno, uns olhos muito doces e uns lábios carnudos que escondia com a sua pêra cerrada mas muito bem alinhada nas bochechas gordas, espalhava saúde, brincadeira e carinho.
Não podia ver um menino ou uma menina na rua que não lhe abrisse imediatamente os braços e os lançasse pelo ar, rodopiando.
Era o Senhor N., o amigo de todas as crianças do bairro, o mais apaziguador de todos os seres, a alegria da festa.
Perdi a conta às vezes que me apanhava à porta do prédio para irmos petiscar marisco, comer caracoletas assadas, ir à Nazaré ou a Sesimbra, sempre com a sua carrinha de estofador cheia de gente, miúdos, miúdas, a minha querida L. sua mulher e uma parte indissociável dele.
Julgava que os braços do N. nunca se esgotariam em abraços e boa disposição, e que assim seria para sempre.
Mas não foi.
N. perdeu o único filho. E com ele apagou-se a luz que sempre o acompanhou.
Perdeu tudo. Foi como se de repente um vento gélido o tivesse trespassado e lhe fixasse para sempre aquela estranha expressão apagada.
Os braços gordos e alegres fecharam-se sobre ele próprio e o vazio do colo seco espalhou-se como vento na palha por todos nós, deixando-nos tão gelados quanto ele.
O N. foi sacudido por uma dor tão forte e tão intensa que ainda hoje se vê, e se sente.
Na esteira de tão dolorosa experiência, apagou-se também a força para o trabalho, tão promissor e belo como outrora o seu sorriso.
Estofava meia Lisboa, vestia as janelas do palacetes mais bonitos de Sintra, cerzia, debruava, e enchia de penas leves e muito perfumadas as grandes almofadas dos hotéis da Lapa.
Mas a vida é madrasta e cadela.
O N. lutou com todas as forças, que nós bem o víamos, magro, encurvado, escondido e de rosto fechado, calcorreando Lisboa, procurando dentro dele a réstia de força que julgava ter; mas fracassou.
E a vida não se compadeceu e matou-lhe a arte, depois de lhe matar o filho.
Mas num golpe de sorte o N. agarrou aquilo que pode e podia para salvar o que ainda restava dele. A casa vazia. Uma mãe orfã de filho.
Foi para taxista.
O N. é o meu amigo taxista.
Nunca ousou deixar-se ficar sentado ao volante à entrada de um passageiro.
Nunca ousou não trocar de roupa, de sapatos, de pele, depois de um vigoroso banho quando  o sol ainda não pestaneja.
Nunca foi rude, mal educado ou se meteu em pancadaria, mesmo quando o iam matando ali para os lados da Sarafina e lhe roubaram o anel do filho que usava empedernido no dedo mindinho da mão esquerda.
O N. é taxista e transporta meia Lisboa. Passa nas janelas dos palacetes mais bonitos de Sintra, acena às princesas e diz que está pronto. Leva diariamente um fardo pesado de penas leves mas muito perfumadas, agora transformadas em memórias.
O N. é taxista.
É um GRANDE taxista, porque o que define o N. não é a sua profissão.

11 comentários:

  1. Gostei de ler.
    Há bons e maus profissionais em todas as profissões. Há boas e más pessoas em todo o lado. O que é preciso é não generalizar.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Era exatamente isso que eu queria dizer. Muito obrigada.

      Eliminar
    2. Hoje em dia é cada vez mais difícil convencer as pessoas a n generalizarem. Há rótulos p todos... :(

      Eliminar
  2. O que define o teu amigo N. é o enorme coração que tem.
    A maldita nuvem negra que se aproximou, sorrateiramente, da sua vida e lhe levou, tão prematuramente o filho, não lhe levou aquilo que ele tem de maior.
    O seu coração enorme :(
    Nunca, mas nunca será uma profissão que definirá aquilo que somos, fomos ou seremos.
    Olha para ti...The Rule of Law, define-te? Claro que não.
    Rest my case.
    Beijo.
    P.

    ResponderEliminar
  3. Adorei! Obrigada Uva.
    Que tudo corra pelo melhor (dentro do possível) ao seu amigo taxista.

    ResponderEliminar
  4. Gostei da historia Uva, como sempre contas sempre bonitas e tocantes historias.
    Beijokas.

    ResponderEliminar
  5. :) - tradução- O que eu gostei de ler este texto, que ainda por cima contém uma vida de verdade, com tudo de bom e de mau que uma vida de verdade pode conter. Conclusão, o que o N. é, é um ser humano de qualidade superior. Obrigada por nos teres apresentado uma pessoa assim.

    Olá Uva! e um grande abraço, sua desportista de alto gabarito ;)

    ResponderEliminar
  6. Há sempre quem faça a diferença.

    ResponderEliminar
  7. Que lindo Uva. É destes grandes homens que precisamos em barda :)

    ResponderEliminar