12 de outubro de 2015

Da Solidão

Ainda a manhã se demorava nas serranias quando se achegou à venda, no seu andar claudicante de velho, o último suicida da terra.
Um tio meu.
Escutem - disse ele sentando-se trôpego na cadeira - amanhã vou-me matar. Se estiver um lencinho branco acolá na portada, já sabem, sou eu que estou morto lá dentro.
E depois das vozes fracas se levantarem em uníssono desacreditando o velhote, e mesmo à noite quando alguém relembrou a contenda desvalorizando o irremediável, a verdade é que no outro dia não apareceu na venda, e no alpendre da casa agitava-se já sem vida o lenço branco da morte.
Estava morto.
Venceu sozinho a solidão, apesar de morrer sozinho.
Custa-me muito pensar nisto assim a frio. É um desespero que nos cresce cá dentro. Uma impotência, um vagar de sentimentos maus que se demora e não passa. É como as mandíbulas de um cão que se enterram na carne e não largam.
Deixamos morrer as pessoas por sermos falhos em lhes fazer companhia.
Quão dificil é fazer companhia a um velho?

Se não me falha a memória mataram-se um ou outro vizir já no tempo da minha bisavó, e 5 ou 6 tios meus, uns mais próximos outros mais afastados, homens e mulheres, alguns enforcados em azinheiras, outros em casa, e dois dentro do mesmo poço.
Viviam todos no meu Alentejo, no mesmo concelho e freguesia, no mesmo local: Odemira, Corte-Brique.
Antes deles não tive conhecimento de outros casos por ali, e quando digo antes, digo, naturalmente, antes de chegar a desertificação do interior, o êxodo para as cidades, a destruição da agricultura.
A solidão.
Digo, não sei quando chegou a solidão às minhas gentes.
Tenho portanto inscrita, ainda que ao de leve, na minha genética familiar, pessoal e social, na minha genética absolutamente dependente de pessoas e do convívio com estas, a possibilidade dessa saída desesperada (mas não inesperada) de cena. Posso, mesmo sem querer - porque a genética é afinal um potente cavalo com asas e estatisticamente o gene que não suporta a solidão contamina os outros todos - vir a fazer o mesmo, se por algum motivo funesto e vil me encontrasse completamente sozinha e sem ninguém, fazendo apenas durar os dias, deixando que a invasão do silêncio ruidoso e galopante se transformasse em voz, e que esta, sem controlo e por sua vez, vomitasse a decisão: vou-me matar.

(Um assunto que talvez me interesse aprofundar um dia, e que tem a ver precisamente com este catolicismo pouco arreigado das minhas gentes, e que também me está nos genes já completamente esboroado, que pode muito bem justificar, em parte, esta 'facilidade' em pecar aos olhos de Deus.)

Há muito tempo, 4 décadas?,  que todos nós, portugueses, sabemos que o maior concelho do país é também aquele em que se dão mais casos de suicídio. O ritmo é tão absurdo que supera largamente a média europeia e é a maior a nível mundial.
Hoje, ao ouvir atenta o Professor Júlio Machado Vaz, fico a saber que foi criado pela primeira vez na história da região, uma consulta de psiquiatria para atender aquela gente e aquele problema específico.
Ainda é cedo para tecer considerações.
Ainda é cedo para perceber se os velhinhos dos montes da Corte-Brique e de outros lugarejos perdidos na solidão, beneficiarão dos anti-depressivos que vão passar a circular como outrora circulavam pessoas.
Não sei.
Mas estou tremendamente céptica.

23 comentários:

  1. A solidão é avassaladora. Como é que se pode pensar em existir sós? :( é muito triste vermos diante dos nossos olhos isso mesmo a acontecer.

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    1. Quantos estão rodeados de tudo e de todos e mesmo assim sós?....hoje será que vivemos mesmo?, ou seremos nós um carreiro de formigas enquanto o mundo nos observa?

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    2. Somos seres sociais. Nunca nos deveríamos permitir à solidão. Se estamos sós, mais vale estarmos num lar.

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  2. É muito difícil viver em solidão.
    Triste ter-se filhos e ver que no fim de uma vida, afinal nem sequer temos filhos para um gesto de afecto.
    Amigos que afinal nunca foram amigos e que estamos sós.
    Ando seriamente a pensar ,embora não tenha apartamento com condições para tal, arranjar um cão.
    Um abraço.

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    1. Penso que é uma excelente ideia. Um cão pequenito não ocupa espaço nenhum. São uma ótima companhia, enchem-nos o coração de amor e fazem-nos sair à rua. Vá em frente.
      Força nisso.

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  3. Escolher a morte como saída não será mais digno que viver pesando na vida dos outros? A lucidez que existe nas gentes alentejanas sempre me permitiu o maior respeito. Tantas e tantos que sendo um fardo insistem em lapidar a vida dos outros e um povo nobre como o alentejano tendo uma presença de espirito tão oportuna.
    A morte é uma passagem e a vida é para ser vivida, não arrastada.

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    1. O caso não é se aceitamos ou não a escolha das pessoas que se suicidam.
      Além disso quem está só, e digo mesmo só, que é o caso, não pesa em cima de ninguém e não tem ninguém a pesar-lhe em cima.
      O que eu me pergunto é se estas novas consultas de psiquiatria ajudarão alguém ou se só substituem a solidão por anti-depressivos.

      O meu povo sei bem de que fibra é feito.
      Tenho pena é que para morrer digno precise tantas e tantas vezes de tirar a vida a si próprio.
      Essa dignidade não é digna de ninguém.

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    2. Mas as consultas de psiquiatria não são melhores do que não haver consultas de todo? Não percebo o cepticismo sinceramente.

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    3. A tua pergunta demonstra talvez (e posso estar redondamente enganada e se assim for peço desculpa) de que não tens noção nenhuma do que é o Alentejo profundo, e de como vivem num total isolamento as gentes que vivem dentro dele.
      Posso dizer-te que da Corte-Brique ao centro de Odemira, vão cerca de 30 km. Dos montes da Corte Brique ao lugar onde se apanha o carro de praça (venda) vão às vezes 5 km, 7 km em trilho de terra batida, montes acima montes abaixo que nem as mulas conseguem subir. As pessoas que se suicidam têm entre 75 e 90 anos. Não possuem ninguém, não têm um tostão, às vezes não têm água, luz, gás, roupa de domingo ou telefone.
      Abrir uma consulta de psiquiatria à 3ª feira a estas distâncias, mais a taxa moderadora, mais ter de a marcar, mais o taxi, mais mais mais não me cheira. Se a ti te parece bem e é uma grande ideia, gabo-te a forma positiva de como encaras o assunto.
      As pessoas que estão sós nunca pensaram que podem estar deprimidas e que há comprimidos para isso. Que na verdade não há, como sabes. Aliás nunca souberam nada sobre isso. Vivem isoladas.
      Uma consulta com o psiquiatra mata uma tarde na vida, mata uma série de despesas que se ficam por pagar com o dinheiro que vão gastar, os psiquiatras não fazem (por agora) serviço de proximidade, são médicos que receitam medicamentos, não podem colocar no colo toda a população idosa e isolada que vive por essas terriolas fora.
      Se é bom? Talvez. A consulta irá encher-se de juventude deprimida sem esperança no futuro, malta de meia idade desempregada, divorciados, filhos de pais separados, e pessoas que ouvem vozes, e velhotes à beira do suicídio ZERO!
      Mas isso é o meu cepticismo profissional a funcionar.
      A ver vamos.

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  4. Isso não acontece apenas no Alentejo. Infelizmente todos temos perto de nós um caso de solidão e muitos acabam como esse teu tio. So espero que esses comprimidos sejam milagrosos :)

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    1. Pois não, infelizmente. Mas lá no meu Alentejo é onde acontece mais. Sabes que dizem os locais? Que é cultural.

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  5. Três registos depois do lido:

    Primeiro:
    «Venceu sozinho a solidão, apesar de morrer sozinho.
    Custa-me muito pensar nisto assim a frio. É um desespero que nos cresce cá dentro. Uma impotência, um vagar de sentimentos maus que se demora e não passa. É como as mandíbulas de um cão que se enterram na carne e não largam.
    Deixamos morrer as pessoas por sermos falhos em lhes fazer companhia.»

    Segundo:
    «O meu povo sei bem de que fibra é feito.
    Tenho pena é que para morrer digno precise tantas e tantas vezes de tirar a vida a si próprio.
    Essa dignidade não é digna de ninguém.»

    Terceiro (e este é meu)
    Fomos fazer a escritura há cerca de 2 meses. A associação de reformados, pensionistas e idosos, foi registada com o nome "Desenhando Sonhos". Sou Presidente da Assembleia Geral e espero, como os outros, que a Câmara Municipal deixe vago o espaço... à volta do qual se erguem prédios altos, sem elevador e pejados de idosos...

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    1. Haja alguém com a capacidade de fazer! Quem faz nunca é falho.
      Quem faz vive, quem não vive dura!
      Parabéns.
      Se precisares de ajuda nas atas, apita! Se precisares de secretária apita também.
      Não me importo nada de pertencer a mais uma associação.
      Se precisares de apoio para seres IPSS apita ainda mais.
      Se precisares de ajuda nos Estatutos, mais ainda.
      Ou seja, qualquer coisa aqui da Senhora Assistente Social é só dizer.

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    2. Essa disponibilidade já é uma ajuda
      Baterei a tua porta, se for necessário

      Obrigado

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  6. Lindo o teu texto, com o sabor de uma uva moscatel (docinha...) da vinha dos meus avós, há muitos anos atrás. Bela reflexão sobre a solidão!
    Ana Bela

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  7. Apetece-me, apenas, abraçar-te. Não um abraço breve e leve mas um daqueles que nos envolvem por inteiro, carinhoso e apertado.

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  8. Consegues pôr beleza na morte, da forma como a descreves. Absolvendo o acto, incriminando a solidão.
    É o abandono, acho que é isso que impele a pessoa. Não sei, deixaste-me a pensar.

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    1. Não há beleza nenhuma na morte Be, mas sim, compreendo perfeitamente por que o fazem e não sinto por isso qualquer tipo de 'antipatia religiosa' ou sentimento de 'covardia alheia'. Não sofro de problemas religiosos. Acho que as pessoas fazem o que têm a fazer. Se têm a prestar contas é com a consciência delas, que acaba por morrer, e com mais ninguém, que no fundo é o que têm: ninguém.

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  9. A morte dos alentejanos não ocorre só no Alentejo. É, antes de mais um factor cultural. Conheço bem o Alentejo, mas vivo na periferia da cidade numa zona onde a migração alentejana se fez sentir há algumas décadas. Conheci três casos de suicídio de alentejanos a viverem aqui, em zona urbana. Todos tinham família. Lógico que também sei de pessoas que se suicidaram no Alentejo, mas isto só para dizer que não é tão redutor assim, a solidão e a morte.

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    1. Ainda me vem dar mais razão.
      Se aqui na cidade, nas periferias, com os centros de saúde e os hospitais aqui à mão, cheios de consultas de psiquiatria, psicólogos e etc, as pessoas se suicidam, acha que é uma consulta de psiquiatria em Odemira que vai parar o número de suicídios no Alentejo?
      Falei do Alentejo porque os meus tios eram do Alentejo e as estatísticas a que me referi são sobre Saboia - Odemira.
      Se há alentejanos a suicidarem-se noutros locais, pois é muito provável que sim, há alentejanos no mundo inteiro e os motivos de tirarem a vida são muitos e variados. Ali sei eu que é por solidão. É um facto, está estudado, não é suposição minha.

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    2. Mas eu também não acredito nessas consultas de psiquiatria (acho que me estás a confundir com o comentador acima). Apenas falo do que observo, que nem só a solidão mata, pelo menos a solidão no sentido original do termo, claro.

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