13 de outubro de 2015

Gostava que lessem

É um artigo extenso da Raquel Varela. 
Não gosto nem desgosto da Raquel, não li o suficiente sobre ela e sobretudo não li o suficiente do que ela escreveu para fazer um juízo de valor.
A Barca do Inferno, pois, a Barca não foi exemplo para ninguém, e não foi o exemplo de ninguém, aliás, foi ao fundo e no fundo foi uma grande nódoa na vida de todas elas.
Quero com isto dizer que não há aqui partidarices de espécie nenhuma.
Ontem mandaram-me isto.
Eu li para o V. - que cozinhava muito feliz - em voz alta, sentada na mesa da cozinha (costumo ler-lhe em voz alta para ele não deixar as suas obrigações de marido para trás ou atrasar o jantar) e gostei muito do que li.
Não vou linkar o texto todo, vou copiá-lo e indicar a fonte que é esta.
Vale muito a pena.

Os Deprimidos do Individualismo
Posted on September 20, 2015

Uma grande amiga mudou-se para uma cidade que detesta e disse-me com humor que a sua “relação com as pessoas na cidade era exclusivamente pela via da mercadoria” – o massagista, o médico, o cabeleireiro, e por aí fora. Pagava. A maioria das pessoas tem muita dificuldade em pensar como vive, em pensar os seus sentimentos e relações, não reflectem sobre como vivem, são raros os que fazem sobre si um veredicto tão duro como a minha amiga – exige muito saber, e segurança, ou, enfrentar o medo das conclusões sobre o rumo da nossa vida. Hoje estamos rodeados de pessoas deprimidas, cansativamente deprimidas, com ou sem diagnóstico médico, arrastam-se, as razões são muitas e complexas, deixo aqui uma ideia para reflectir convosco, apenas uma entre muitas – as pessoas são (estão, para sermos mais claros, porque todo cambia) esmagadas por si próprias e há uma legitimação moral social desta falta de sentido colectivo da vida disfarçada de liberdade e/ou patologia. Um tipo é mais bem visto pelo conjunto da sociedade se for visto a fazer jogging na praia ou a passear o cão, do que se for militante de uma organização social ou política para o qual entrega parte do seu tempo (e tempo é trabalho). O individualismo não é não querermos saber dos outros. É não fazermos pelos outros.

A depressão – segundo Coimbra de Matos – só se “cura com revolta”, entendida por ele não só como revolta social, mas resistência às próprias condições de vida, ao hábito. A surpresa, a construção, projectos – que dão trabalho – são o único contraponto ao estado depressivo. Engana-se quem pensa que são só as relações laborais e os salários que determinam o essencial dos estados depressivos, o que se passa é mais profundo e mais subjectivo – a vontade humana constrói-se de facto, para lá das condições objectivas se forem criadas outras condições objectivas. Num quadro em que o trabalho deixa de fazer sentido criador para a maioria das pessoas elas não conseguem inventar e criar outros projectos de vida a que dêem sentido, que lhes “encham a vida”, etc. Trabalho alienado sempre existiu mas existia também fora dele um quadro de relações sociais, cooperativas, partidos políticos, associações, mutualidades, bailes etc. que eram construídos – e não adquiridos – pelas próprias pessoas num projecto que elas consideravam seu – isso dava-lhes um sentido. As pessoas não concebiam, educadas em meios rurais ou sob influência de grandes partidos ou associações, não contribuir com tarefas concretas para a qual havia balanços e falta de reconhecimento da comunidade caso não realizassem para a comunidade o que se propuseram fazer. Hoje vende-se a ideia de que só o que se compra tem valor; que falhar no que damos aos outros, como é gratuito, não tem impacto moral; a mercantilização está aí, em todos os poros. As pessoas jamais deixam de pagar o ginásio a horas mas acham moralmente aceitável não pagar a quota da associação política a que pertencem. Até porque criam uma hierarquia de prioridades e estão realmente convencidas de que o seu bem estar mental vem sobretudo daquilo que adquirem com dinheiro – ginásio, teatro, cinema, jantar – do que daquilo que erguem colectivamente com trabalho. O raciocínio é fatal – mais depressa as pessoas dão sentido à vida se fizerem um grupo de teatro do que se forem ver uma peça. Eis num exemplo o que insistem tantos estudiosos do bem estar e do mal estar mental – nem todas as coisas constitutivas do nosso bem estar estão à venda, por preço algum. O que dá sentido à vida é o que nós somos capazes de construir, idealizar, executar, ver crescer, corrigir e refazer, são os desafios dos erros que emendamos, os falhanços de que saímos vivos, e por isso, saímos mais fortes.

Uma das consequências históricas do neoliberalismo é a infantilização da juventude e dos adultos filhos dele, na casa dos 30, 40; a preguiça está sempre disfraçada de “não tenho tempo”, o hedonismo do prazer imediato disfarçado do “não me dá pica”, “estou em baixo” e outras desculpas simpáticas que encheram o mundo de gente doce e genuinamente indignada mas que não faz nada que não lhe dê prazer nos…5 segundos seguintes. A resistência à frustração está próxima do zero, nas gerações mais novas, que nasceram sob o signo da derrota do movimento operário organizado europeu na crise de 82-84. O prazer de saber a longo prazo sucumbe ao esforço de estudar nas próximas horas; o prazer de construir algo colapsa na frustração das coisas que falham em dias. Temos alunos com coragem, na verdade é desplante, de ir a uma aula sem ter lido o texto que o professor sugeriu para leitura e ainda intervêm no debate na aula, com convicção – esquecem que a sociedade como um todo e os mais pobres mais, por via dos impostos regressivos, estão a pagar aquele professor e que alguém dedicar tempo a ensinar-nos é um privilégio. Temos militantes políticos que nem a quota da organização pagam ou oferecem o seu trabalho em vez da quota – e que em Portugal esta vai de 1 euro no PS como quota mínima a algo como 25 euros anual no BE, mas acham-se no direito de dizer que o trabalho dos outros está todo errado e mesmo de falhar a quota de que depende o pagamento do trabalho dos outros (não existem organizações a sério sem profissionais). Não é por falta de dinheiro, é por falta de sentido colectivo elementar da vida em sociedade.

Foi o pulo das sociedades agrárias para urbanas, o pulo para o pacto social de pais que protegeram os filhos tornando-os emocionalmente frágeis, no limite incapazes mesmo, e foi a ideologia neo liberal, que veio-lhes dar justificação para toda a inabilidade (falta de vontade) social. O indivíduo e a sua vida diária tornam-se o epicentro de si mesmos – não conseguem assumir compromissos com os outros, negociar, fazer, construir, assumir responsabilidades colectivas. São desinteressantes porque como vivem sobre si próprios 90% das conversas que têm é sobre si, onde foram, onde jantaram, o que pensam, o que sentem – a literatura hoje em grande medida, com honrosas e belas excepções, que se publica não é isso? Não é a história do que eles, eu, eles, eu, pensam? Estão convencidos que a literatura não é uma porta aberta do mundo social e humano mas o lugar onde vertem lágrimas de si próprios. Como se a sociedade como um todo fosse a cereja no bolo de enfeite da vida individual. São, é preciso dizê-lo, rápidos, descarados, têm uma fina capa de auto-confiança que os faz ir onde não sabem, dizer o que não conhecem, falar sobre o que não leram, mas são ignorantes e, por isso, entediantes e cansativos. Têm a coragem de ter uma licenciatura e não ter lido o b-a-ba da literatura – o nosso passado – universal. É finalmente uma sociedade logocêntrica, em que “dizer” substitui o “fazer” – temos portanto o mundo inteiro com o direito inalienável à opinião, incluindo opinião sobre o que não fazem, o que não lêem, o que não estudam, o que não conhecem, o que não se propõem aprender, o que não se ofereceram para ajudar. Hoje o lema é “Digo, Logo Existo” mesmo que não Pense nem Faça nada para Existir.

Uma parte grande das pessoas está convencida que a cuidar de si vai sair do buraco de si mesmo. E não tem capacidade para ver que está a cavar todos os dias um poço mais fundo. O caminho é o inverso, para nos termos a nós, reganharmos liberdade individual, poder fazer escolhas de vida, escolher afectos, decidir rumos, precisamos de força social e essa só vem dos projectos colectivos. Estamos a ser cobrados por 30 anos desta ideologia, em que em 1960 os filhos entregavam com menos do que têm hoje dinheiro aos pais e hoje os pais entregam dinheiro aos filhos, para os poupar às agruras da vida difícil. Os pais pouparam-nos assim a tudo, incluindo a compreenderem a necessidade de lutarem contra a vida difícil. A vida é má para quase todos, era em 1960 e é hoje, era muito pior então. Mas a atitude central de não fazer nada em conjunto, mas centrar a vida nas rotinas de prazer individuais imediatas, é uma das grandes explicações para o Governo ter retirado 40% da massa salarial dos que vivem do trabalho e a ter colocado nas mãos de um qualquer banqueiro. E à nossa volta, apesar disso ser tão óbvio – essa degradação da massa salarial -, só se ouvem choros e lamentos, ou raivas e palavrões – acção concreta construtiva, colectivamente, está próximo do zero. A atitude perante a devastação da qualidade de trabalho e dos salários não é oferecer o seu trabalho e tempo para construir no seio das empresas ou fábricas ou das comunidades de forma política e responsável (assumindo responsabilidades) focos de resistência social e democráticos, mas pedir dinheiro à família; no caso da família, é reduzir a qualidade da alimentação que dão aos filhos, o aquecimento da casa, é ver os filhos emigrar, todas as soluções individuais ganham ao ímpeto de construção colectiva.

Chegámos aqui porque não houve uma contra ideologia, porque as organizações políticas que temos são (quase) inutéis socialmente, marinadas no pacto social não sabem como hoje resistir, e deixaram claro à sua base social que ela podia ser uma base meramente eleitoral – tinha que votar mas não devia preocupar-se com mais nada (o fenómeno da dependência dos partidos do dinheiro do Estado e não dos seus filiados faz parte disso, claro, porque o Estado financiou de facto, directa e indirectamente, as organizações políticas que existem, apagando da memória histórica uma das leis magnas das organizações resistentes – o auto financimento). E assim temos hoje pessoas, muitas pessoas, tantas com menos de 40 anos, que têm sido elas próprias pouco utéis para construir outras organizações políticas diferentes. O mundo muda, e mudará, para melhor, porventura. Sob o peso da necessidade e das convulsões sociais as pessoas mudam, este país mudou mais em 19 meses em 74 e 75 do que nos 150 anos anteriores e as pessoas mudaram com a mudança que fizeram, não sou tão pessimista que não o saiba reconhecer, mas quem ignora o peso da passagem das sociedades agrárias, do pacto social e da ideologia neoliberal no conjunto de toda a sociedade hoje, mesmo nos que dizem rejeitar essa mesma ideologia, não compreendeu o mundo em que vivemos. E nós temos que o compreender – ir ao fundo do poço, mexer nas feridas que nos doem tanto – para o conseguir mudar.

2 comentários:

  1. Olá Uva. Já o tinha lido. Foi o título que me chamou atenção. Acho a abordagem bastante objetiva e estou completamente de acordo com o raciocínio aqui feito.
    Boa noite,
    Mia

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  2. Conheci a Varela
    numa sessão da APRE

    APRE não sendo uma exclamação
    foi uma excelente ocasião
    para conhecer a Varela

    Eis a opinião com que fiquei dela:
    às segundas, quartas e sextas escreve coisas assim
    às terças, quintas e sábados, nim
    e aos domingos descansa

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