23 de janeiro de 2016

A vida dos médicos privilegiados

Sou médica interna. Sou médica daquelas que demoram muito. Não entupo urgências, porque não trabalho lá, mas deve estar muita gente à minha espera, na sala onde se espera. De certeza que pensam que sou “estagiária”. Não tenho carro, vivo numa casa alugada, pago as contas (às vezes em atraso). Trabalho, estudo, vivo em constante preocupação porque tenho que estudar mais, tenho de fazer relatórios e posters e apresentações. Vivo entre exames, artigos científicos e isso sim, trabalho, muito trabalho. Ao meu lado estão outros médicos internos. Raramente adoecem.. estão lá, ganham o mesmo que eu. Estou motivada, mas menos motivada, estou lá, mas às vezes penso que devia estar noutro sítio. Às vezes chego ao fim do mês à justa. No talão diz 1800… acho…, mas chega bastante menos à conta na CGD. Não sou especialmente ambiciosa. Nem especialmente poupadora nem gastadora. Compro roupa na Zara e móveis no IKEA (dos baratos). Tenho o apartamento alugado meio vazio, mas não faz mal porque passo lá pouco tempo. Tenho uma secretária de 1,50m de largura no trabalho, que está sempre muito cheia. Tenho o novo corretor ortográfico no computador, mas irrita-me. Vou à pagina da Ryanair quando estou pensar em férias. Mas cada vez penso menos. Não tenho animais de estimação, mas gosto de animais de estimação. De manhã acordo mais tarde do que devia, mas chego a horas ao trabalho. Vou a pé, porque vivo na baixa (isso deve ser um luxo). Estou inscrita num ginásio ao qual raramente consigo ir. Cada vez que abro o facebook vejo salários de políticos aos quais não sei atribuir significado. Depois vejo salários de médicos que não conheço. Às vezes leio os comentários das pessoas revoltadas com o que ganham os médicos, com o bem que vivem. Eu devo ser da classe privilegiada, porque sou médica. Não tenho carro, não tenho casa própria, não tenho um iphone, porque me parece excessivamente caro. Ganho 1200 euros. Tenho 30 anos. Matei-me a estudar na faculdade, tenho o trabalho em dia, mas não sou lá muito inteligente porque me esqueci de pagar a conta da edp. Na sexta-feira cheguei às 21:00 a casa (devia ter saído às 18:00) e tinham-me cortado a luz. Tenho de me organizar melhor. Na televisão não falam dos sacrifícios, não dizem que fiquei horas a mais a fazer o trabalho que estava a menos, porque sou lenta talvez… Deve ser isso. Não fui para a night porque estava esgotada. Dormir é uma das minhas grandes prioridades. Não vou muito ao cinema, nem vou aos eventos culturais de que gostaria. Não viajo muito, nem vou jantar a restaurantes caros. Sou médica… é verdade. Médica interna, jovem inexperiente. Daqueles que entopem urgências e custam muito dinheiro ao estado porque estão em formação… Deve ser melhor para os recém-assistentes que estão à espera do contrato para a semana há um ano… Ao longo do internato que vejo passar… só vejo as coisas piorar. Mas estou muito motivada, amanhã vou trabalhar.

Ana Cátia Morais no seu mandrionices.

9 comentários:

  1. Tal e qual Uva! Tenho uma familiar muito próxima com 30 anos, médica... tal e qual

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  2. Pensava eu que já não havia essa coisa de se achar que os médicos são todos ricos.
    Hei-de escrever um texto desses... sem ser médica, também me matei a estudar, no curso que quis e na área da minha vocação. Estou desempregada há mais de um ano, desde o fim do mestrado, mas no pasa nada!

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  3. Podemos então concordar que nem todos os FP têm a vida maravilhosa q andam todos para aí a apregoar?? ;) (sou uma provocadora, já sei)

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    1. Trabalhas ou já trabalhaste num hospital?

      Sabes que eu realmente vejo muito do que ela diz mas também vejo almoços bem prolongados, coisas que são feitas como se caracóis fossem, adiarem as coisas, o matar e perder tempo constantemente (nos corredores, nos consultórios)...conversa aqui, conversa ali.

      A minha vida diária é um hospital público, também sou interna. Se é tudo um mar de rosas? Não. Ela tem muita razão em imensas coisas que diz mas o que não faltam são estagiários de outras áreas que não ganham absolutamente nada. Se ganhamos mal? Sim. Se nos matamos a estudar? Sim. Se somos os únicos? Não.
      Também não vejo médicos com ordenados milionários, isso é um facto, nunca vi.

      Se todas as pessoas dentro de um hospital dão o seu melhor e são excelentes profissionais? Não.

      Não é a primeira nem a segunda vez que dou por mim a pensar "as pessoas têm toda a razão quando dizem A, B ou C dos funcionários públicos". Depois vejo outras coisas e penso "as pessoas nem fazem ideia".
      Mas nem todos são a competência e a dedicação em pessoa e continuo a ser completamente contra os contratos vitalícios e as regalias extra. (Muitos só querem trabalhar 35/h semanais porque depois fazem privado e se tiverem que trabalhar 40h não têm tanto tempo. Se enquanto internos fazemos mais horas? Sim. Mas muitos médicos mais velhos recusam-se a isso, pelo menos por onde passei já vi muito isso.)

      Ainda hoje de manhã fui com o meu irmão fazer análises, a enfermeira sentada lá dentro, num fundo de corredor, dizia baixinho os nomes dos pacientes. Avançava quando ninguém lá chegava. Aquilo irritou-me tanto que comecei a repetir o nome que ela dizia alto para as pessoas idosas ao meu lado conseguirem ouvir.
      A enfermeira veio-me perguntar quem eu pensava que era. Eu disse-lhe que as pessoas não a ouviam a chamar, ficou ali a chamar mais 1 ou 2 pessoas e depois voltou para dentro e continuou a chamar de lá, baixinho... as pessoas continuaram a não ouvir e começaram todas a barafustar com ela. E com razão...

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    2. Sempre achei que o pessoal de Saúde ( não é a minha área, mas tenho familiares no meio) deveria trabalhar menos do que as 35 horas. Queremos profissionais de Saúde saudáveis, principalmente psicologicamente, e bem preparados (o tempo dedicado ao estudo, nestas áreas, nunca é demais).

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  4. Estou a acabar o doutoramento. Cinco anos, mandou o ministro. Não chega. Capaz oito chegasse, se não houvesse filhos, se houvesse redução do horário de trabalho (tal como manda a lei), se tivesse quem me ajudasse. Como não acabei até dezembro (como eu, algumas centenas) corro o risco de vir para o olho da rua e deixar para trás vinte e dois anos de ensino no superior. Que raio de área que escolhi ou que raio de gente nos governa. Uma vida dedicada, chego a casa a horas indecentes, o puto tem 10 anos...

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  5. As pessoas olham sempre para o próprio umbigo e lamentam-se.
    Não faço parte do «grupo» que acha que os médicos são privilegiados. Ao contrário, acho que deviam ganhar o que um jogador de futebol ganha... Mas estes são poucos e médicos, muitos.

    Mas o que essa pessoa descreve no blogue também é o dia-a-dia de muitas outras pessoas cujo salário no final do mês é metade ou menos. Não digo que ganhe muito e trabalhe muito. Digo que hoje em dia todos ou muitos trabalham para além do horário estipulado, sem ganhar um tostão a mais, mas fazem-no por uma noção de necessidade, de dever ou por temerem ser prejudicados/demitidos se não o fizerem. Também, muitos, queimaram as pestanas na universidade/faculdade. Que o que custa estudar não sirva de lamento para ninguém! O médico - assim como o professor, outra profissão de certa forma sacrificada - tem de continuar a estudar para se manter actualizado. Mas hoje em dia isso é transversal a todas as profissões. Não ter carro, nem casa própria, nem animal de estimação e, acrescento, NEM FILHOS, também é a situação de muitas pessoas que, tendo passado pelo mesmo em termos de estudos e de trabalho, não recebem nem perto nem longe 1000€. Quanto mais... mais.
    O barco está igual para todos. Mas talvez por hoje já ser a segunda vez que «oiço» pessoas com rendimentos acima de 1000 se olharem como coitados, quando, pelo menos, deviam ver a garrafa meio-cheia, isso me revolta, sinceramente.

    O facto de nos exigirem muito não é exclusivo de algumas profissões, infelizmente, Portugal está a espalhar esse «cancro» por muitas e muitas funções. E a pagar mal, ou médio, mas acho que o salário mínimo sendo o que é e as coisas sendo tão caras, com 1000€ já não dá para dizer que a comida não chega à mesa e as contas ficam por pagar. Ainda mais quando se é sozinho.

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    1. Os médicos, deveriam sim, ganhar bem mais, eles salvam as nossas vidas, as vidas das nossas crianças, fazem horas extras, não pagas, fazem sacrifícios pessoais, fazem o que podem para ajudar quem está em apuros...

      Mas também concordo plenamente com a Portuguesinha!!! O meu rendimento mensal não chega nem de longe aos 1000€, nem o meu marido, temos um tecto, temos 2 filhos (gémeos), como muitos temos contas a pagar, por vezes fora de prazo, porque a prioridade é a saúde dos nossos filhos, os meses acabam logo na primeira quinzena... Não estou a lamentar-me, tenho um tecto para os meus filhos poder dormir, mas também não agradeço cada dia que passa, porque queria ter mais, mas não tenho!
      Portanto, vivo o meu dia a dia, a vida é injusta, matreira.... Acho que todos, sejas qual for sua profissão, sentiu no corpo, no pelo, na alma, todos estes cortes, profundos, onde quase já não existe dignidade.
      Todos merecemos ter mais, não minto quando digo que os médicos deveriam ter mais, é sincero, mas eu, como administrativa, também deveria receber um pouco mais.

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    2. Não acho q devessem ganhar mais por isso (por salvar vidas).
      Há mtas profissões importantes q são relevadas p segundo plano e com diferenças salariais mto acentuadas (até mm no ramo da saúde) a questão são as horas brutais a q eles são sujeitos. E ao grau de precisão das suas funções. (N serão os únicos, ainda assim)
      Há médicos a operar durante 14 horas. Medicos de serviço mais de 24h...
      E aqui entre nós (e eu acompanhei um caso de perto) o dinheiro q um médico investe na sua formação é brutal. Os livros são 5 vezes mais caros q os de outros cursos, já de si caros, e os materiais...

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