“Construir a mais pequena democracia no coração da sociedade" – a família (1) foi o mote que deu início a um pioneiro e audaz projeto, nascido na Alemanha - o coração do humanismo, para dotar a “célula primeira e vital da sociedade” de ferramentas capazes de ser o fermento e o motor da libertação da forma “autoritária, fechada, e repressiva” verificada até então, na grande maioria das famílias.
Corria o ano de 1994 e hoje, a esta distância - com os exemplos que temos em nossas casas, e nos compêndios que debitam teorias tantas sobre a matéria - estou convencida que mais do que construir uma pequena democracia no seio da família, o que temos efetivamente erguido, é uma grande ditadura no coração dos nossos infantes.
A família, ao contrário do que se pensa, não é um órgão democrático onde as decisões do dia-a-dia e do futuro se votam por maioria dos seus membros. Pelo contrário. Deve possuir de forma bem definida a hierarquia de cada elemento, com as várias e complexas ligações emocionais e materiais que se estabelecem entre si, impondo também hierarquicamente regras claras e leis-raiz que devem ser cumpridas e entendidas, desde sempre por toda a comunidade familiar, como o limite após o qual a família se torna disfuncional.
A fórmula austera que defendo aqui hoje, está muito longe do preceito ditador, de posse, de mando, de submissão [ou enaltecimento] dependente do sexo, que outrora os filhos deviam e significavam para os pais, no entanto uma educação mais severa, menos condescendente, menos infantilizada e mais arreigada, trará maiores proveitos para todos.
Obviamente há quem defenda que a criança deve tomar desde cedo o pulso às rédeas da sua vida, receber o máximo de mimo e inclusão, ser chamada a participar nas decisões, sentir-se responsabilizada e responsável, mas nem tanto ao mar nem tanto à terra, ou como diria a letra da canção: to too much love i will kill you.
Amar uma criança é também saber mostrar a autoridade sem condições, mostrar de forma firme que há galhos onde não deve pendurar-se, que há caminhos proibidos, que não há mas nem meio mas, que o não existe, é saudável e deve ser usado sem renitências. Sem uma figura de respeito, de autoridade, capaz de transmitir à criança, com verticalidade, justiça e, claro, ajustamento etário, as regras mais básicas do coração da sociedade [e que se espelha depois na própria sociedade], como sejam: cumprimentar, agradecer, não agredir, partilhar, dar, retribuir, sorrir, respeitar, pedir desculpa e desculpar, podem colocar em causa todo o processo educativo da criança.
A família é uma unidade de produção
A Família são tantas coisas que é difícil vê-la como uma unidade. Mas é assim que a entendo simplisticamente. A minha ideia de família não é um conceito abstracto, é algo que funciona, com peças e regras, limites e buracos negros, falhas na tesouraria, mal entendidos, lucros e despesas. É como uma grande unidade de produção, uma fábrica que produz diversos produtos, todos eles dependentes uns dos outros e utilizados uns pelos outros. Se a fábrica produzir uma discussão logo de manhã porque uma regra foi abatida a tiro, então a produção para esse dia fica contaminada e tudo o que se produzir depois disso fica irremediavelmente comprometido.
É que a família, como a fábrica, também armazena detritos, lixo, porcarias, e são esses exemplos maus que as esponjinhas - ou estagiários, gostam mais de absorver.
Se os pais são o fermento e o motor da família, gastando todas as suas energias para que nada falhe, nada resulte em paragens ou em perdas, se conseguem ter um emprego, arrumar, cozinhar, lavar e limpar, e ainda amar incondicionalmente os seus filhos, proporcionando-lhes com o resultado da produção muitos dos seus desejos e ambições, então os filhos, pequenos e grandes, devem aprender desde logo que este mecanismo necessita de ser oleado e de ser estimado, e que para isso não podem ser pedras na engrenagem já de si tão delicada. Mas quem lhes ensina a ser óleo e não pedra são os pais, porque nenhuma criança sabe, porque não tem de saber, como funcionam as grandes fábricas que produzem os grandes homens. Se as regras e as leis de funcionamento desta grande unidade não passarem de geração em geração, deixarão de haver famílias-escola, passando a haver apenas famílias-circo, onde só há palhaçada, desorganização, um monte de cocós de cavalo espalhados no meio da arena, um apresentador aos gritos, e eles, os equilibrista, tentando não cair na rede.
O que vemos hoje é o total desequilíbrio nessa unidade de produção. A tendência é cada vez mais para pais que assumem o papel de trabalhadores sem remuneração afetiva, que produzem unicamente em função dos filhos-patrões. E a verdade é que se antes havia uma produção de afetos misturados com a porção exata de regras e leis, o que existe agora é uma produção mecânica, artificial, que debita gadjets, champô para caracóis perfeitos, vernizes, bonecas que falam, fumam e bebem, roupas de marca, passatempos, e pré-fabricados.
É uma fábrica de produção material, da qual os filhos-clientes exigem cada vez mais perfeição.
Os filhos saíram da linha de produção para se sentarem lá em cima, nos escritórios (como antes a religião), pesando-lhes nos ombros com as suas carências, imposições e manias sociais. Esta situação levará ao ultimato da família enquanto célula primeira e vital da sociedade, porque o conceito simplesmente deixará de existir, isto é, existirá apenas um ou vários seres humanos, que tendo a chave da mesma casa, se agridem continuamente, perdidos nos galhos uns dos outros, usurpando continuamente a felicidade comum, fechados em escritórios com janelas virtuais, onde o amor é feito de plástico.
A democracia instalada na família, de forma errada, como aliás o é na política, criou famílias onde todos decidem sobre todos. Um filho de 4 anos, sem ter ainda consciência racional disso, decide um fim-de-semana de uma família inteira. Parque infantil depois do almoço, cinema ao lanche, e festinha do pijama em casa do colega, pela noite. E porque a família sofre muito por considerar que as crianças são massacradas e sofrem muito por falta de estímulo, e que é praticamente impossível submete-las ao ócio e ao tédio, bombardeiam-nas de estímulos, de festas e de actividades que lhes preenchem o tempo, mas lhes roubam aquilo que nos trouxe a todos aqui com tanto sucesso.
A imaginação.
A ansiedade tomou conta dos meninos.
Nada lhes interessa que não tenha pixels e acenos afirmativos com a cabeça. A ideia utópica [e perigosa] de que todos dentro da unidade familiar podem votar com o mesmo peso, ou ter o mesmo peso numa decisão familiar, é o que podemos chamar de família desajustada.
O que é desajustado é evitar que a criança sinta a responsabilidade de ter mesmo de realizar uma tarefa imposta pelos pais, de ser mesmo castigada, de enfrentar uma tarde inteira sem estímulos, a hora certa para chegar a casa, o ‘não’ para as 27 festas anuais dos colegas da turma, o ‘não’ para ter um cão que ninguém vai conseguir passear, um ‘não’ para uns ténis que são 1/5 do orçamento familiar. O que é desajustado é criar filhinhos-totós, que não sabem limpar o rabo, que não colocam as peúgas no cesto, que não levantam um prato da mesa, que não sabem limpar o pó, o areão do gato, despejar o lixo, fazer a cama, dizer obrigado. Desajustado e ter pais totalmente condescendentes sobre estas e outras anormalidades dos filhos, quando sabem perfeitamente que com aquela idade, notem bem, alguns já trabalhavam, e no duro. Desajustado é não saber mandar e impor regras firmes, sem um pingo de hesitação, a um miúdo de 5 anos, de 6, de 7 ou de 11, e depois, aos 16, vir pedir ajuda aos profissionais para lhes educar os meninos.
O afastamento da criança da posição central da família é na verdade o que se impõe.
A criança deve crescer sabendo que há prioridades, pessoas prioritárias e situações prioritárias.
Não há democracia possível quando se cria um filho, porque simplesmente a criança não sabe o que fazer com o seu voto, tornando-o nulo ou inválido para a sua idade.
Obviamente que a criança pode decidir das pequenas coisas da sua vida, brincar de democracia também é possível e desejável, mas na hora de votar a decisão, na hora das grandes (e pequenas) questões da educação, das regras, dos deveres e das leis da família, quem vota são os pais, quem decide se a roda gira para a esquerda, para a direita ou se fica parada é quem tem maturidade suficiente para perceber se é possível inverter, ou parar a produção, para fazer a vontade do cliente.
Também nos castigos a democracia não funciona.
Aposto que ninguém pensou em dar a escolher aos filhos que castigo lhes apetece cumprir. Queres ficar três dias sem ver televisão ou três semanas sem ir visitar a avó ao lar? Obviamente que aqui a ‘ditadura parental’ deve trilhar o seu caminho e instituir um castigo sem escolha.
Ter mão firme na criançada não é bater, torturar, deixar de abraçar, de mimar, de dar, dar muito; tudo isso deverá ser feito ao máximo, mas de acordo com o comportamento da criança. Confundir o carácter da criança com o comportamento da criança é o grande erro dos pais. O comportamento das crianças em crianças não lhes define o carácter em adulto, o comportamento dos pais é que provoca alterações no carácter dos filhos. Um miúdo mal comportado, irrequieto, mas devidamente educado, balizado naquilo que devem ser as regras do bom comportamento, não é um mau-caracter. A personalidade de cada um constrói-se em cima das reacções que os nossos comportamentos geram nos outros. Se a minha atitude perante o mau comportamento da minha filha for de submissão e banalização, a personalidade dela irá desenvolver-se sobre a premissa de que o seu comportamento (mau ou bom) gera submissão, e quando isso não acontecer numa qualquer altura da sua vida, o seu caracter revolta-se e forma situações que podem custar-lhe até a liberdade.
Com a ânsia de proteger os nossos infantes, não os deixamos crescer ou deixamo-los crescer depressa demais, pelo menos no que respeita às decisões que nós adultos lhes permitimos em nome da democracia familiar. A família atual aceita trabalhar para aquele ser que ali está prostrado com a única finalidade de receber, e decidir o que quer receber, e é este o exemplo que retira da vida, da sociedade, equivocando-se totalmente no seu papel, tomando-o por outra coisa completamente diferente: o recebimento sem dádiva, o merecimento sem mérito. Eu também mando, eu decido, eu respiro, logo mereço.
E é isto mesmo que se procura num pequeno ditador.
Mas não era de democracia que falávamos?
A crónica que faltava na UPTOKIDS deste mês.
By me.
Bravo. Identifico-me totalmente com esta maneira de educar e orgulho-me muito de ter hoje um filho de 18 anos bem educado, íntegro e respeitador. Cuidadoso com os avós, com os tios, com todos os mais velhos, com os primos e com os amigos, com o pai e os irmãos. Sabe perfeitamente que tem de olear a máquina que lhe proporciona todos os dias ser feliz. Eu costumo dizer que o criei ao pontapé :) e ele diz que sim.
ResponderEliminarThanks! Vai tudo a pontapé no rabo. ;) Devagarinho...
EliminarÉ isso Uva. Costumo dizer que tem de haver um ditador em casa e esse não pode, de todo, ser a criança. Custa-me castigar macaquito, porque sei que por vezes, não tem noção de consequência mas sabe distinguir certo e errado, portanto, faço-o. A mais nova já me diz "eu sei que às vezes tens de ser má mas isso é porque és minha amiga!".
ResponderEliminarNa minha casa não há democracia, quem manda sou eu, o meu pai diz-me que sou intransigente em relação à educação dos miúdos, pois sou!
É preciso não deixar fugir a autoridade!
EliminarAinda bem que voltaste, gosto de te ter por cá!!
ResponderEliminarGrande susto pá! Pensei que tinha ido à viola.
EliminarEm minha casa também não há democracia, eu é que mando e pronto
ResponderEliminarOs mimos são essenciais, mas um "NÃO" é o mais ainda...
ResponderEliminarQuerida Uva Passa,
ResponderEliminarSó digo não se não puder dizer sim. O não não admite discussão. Sou o pai.
Noite feliz,
Outro Ente.
(Apraz-me que não tenha fechado esta casa.)
Agora que estou a pôr as leituras em dia até me assustei. Isso do blog puf e depois pimba é coisa para dar nos nervos. Ainda bem que tudo se resolveu.
ResponderEliminarMas falando do texto, tornou-se difícil educar os filhos hoje em dia sim, mas não se pode ser totalmente permissivo e deixá-los viver sem regras. Há que fazê-los cumprir as regras e os valores que lhes ensinamos. Ponto.
Excelente,
ResponderEliminaracabo de me lembrar que um dia escrevi uma "Constituição" cá para casa
mas a "coisa" não funcionava
rasguei-a mesmo antes de a submeter à votação no meu "hemiciclo"
e algumas das razões venho-as a encontrar neste seu escrito