10 de outubro de 2016

Passarinhos

Pensativa. Ando sobretudo pensativa.
Ontem, quando saí de casa para comprar um frango, a correr, ia tão metida para dentro que fui bater com o ombro no semáforo da Vilhena. Capaz de arrancar o braço!
Pensas muito mas não o suficiente para te lembrares que sem os olhos não vês nada.
Tenho 40 anos. Vejo mal. Se tivesse nascido antes de inventarem os óculos estava bem lixada.
Também não tenho boa memória. Se tivesse, agora dizia com que idade pensei pela primeira em ter 40 anos. Devia ser uma cachopa, uma pirralha muito ranhosa dessas que andam a passear os burros no Alentejo.
Com 40 anos, pensava eu com os olhos semi-serrados, já terei uma vida descansada, um carreiro certo por onde empurrar a minha burra.
O caminho é incerto. Não vês por onde andas, tu, quanto mais a burra.
Tinha a cabeça cheia de pensamentos mas nunca andava pensativa. Qual quê.
Não me lembro bem - porque não tenho boa memória e nasci num tempo em que ainda não a inventaram -, mas acho que no Alentejo nunca bati com o ombro num semáforo.
E era sempre a minha avó que matava o frango.
Um dia, estava eu no monte muito metida para dentro, aborrecida por não ser pensativa e de não ter cabeça para nada, quando o frango morto da minha avó passou por mim a correr. Lembro-me de ter pensado que era exatamente igual a mim. Sem cabeça.
A minha avó que gostava muito de mim, e pouco dos frangos, dizia-me que ali no monte eu era livre como um passarinho.
Ó vó, o frango é um passarinho?
Tu és bem capaz de ser um frango-sem cabeça, livre como um passarinho.
Já não me lembro bem, mas parece que só o pensamento é livre.

Hoje em dia, há muitos dias que penso naqueles dias.
Às vezes, aqueles que não têm cabeça para nada também não têm com o que bater contra as paredes. Esses são verdadeiramente livres.
Mas depois, sem que eu queira, passa-me o frango morto da minha avó outra vez pela cabeça e eu pergunto-me, especialmente quando continuo a andar na rua sem a cabeça no sítio e vou contra os semáforos da Vilhena: ó vó, o frango é um passarinho?

Então porque me sinto eu tão presa?

9 comentários:

  1. Há uns tempos que não passava por aqui. Adorei este texto...passarinho!

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  2. Somos da mesma geração e idade.
    Na adolescência sentia com frequência a ilusão de que a idade traria consigo uma certa tranquilidade radicada na sabedoria que apenas a experiência proporciona.
    Ilusão convertida em desilusão, esperança em pessimismo. Talvez seja isso que acontece quanto mais tempo passamos a observar a sociedade e o mundo. Não somos livres, nem sequer de nós próprios, quanto mais dos outros.
    Agora, quase três décadas decorridas, gostaria de ser apenas jardineiro do meu jardim, eremita da minha melhor metade, nada mais.
    Penso que estou a ficar velho e cansado.

    Abraço, cara Uva, e as minhas desculpas.

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    1. Que coisa bonita que escreveste. Sim, estás uma Uva Passa. Just like me.
      Não tens de pedir desculpa de nada. Era o que mais faltava. Desculpas de quê?
      Em frente.

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  3. Anima-te miúda! Há quem tenha bem mais de 40 e também não tenha cabeça nem boa memória
    :)

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    1. Conta-me tudo Gaja Maria! És livre?

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    2. Sou livre quando pego na bike e vou correr mundo Uva. Aí sim. Sou livre e gosto tanto. :)

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  4. Porque te enfias numa gaiola...
    ...ou numa capoeira, como preferires!

    Mas tens sempre a escolha de sair...

    :)

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    1. Comprei uma rede de pássaros para meter na minha varanda. A gata já não cai lá para baixo, que ainda é alto, e eu sou finalmente uma franga!
      Cóóóh

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