Nasci em 1976.
É um evento que jamais voltarei a vivenciar.
Nascer traz-nos uma infinidade de possibilidades, experiências, e infelizmente, acidentes.
Até termos a capacidade de entender que há coisas que ficam para lá das nuvens, ou de alguém nos informar que pode haver uma vaga possibilidade de alguém nos proteger, de alguém olhar por nós, e de nos salvar de tudo o que é possível acontecer-nos de mal depois de nascermos - mediante uma espécie de pagamento que poderemos chamar de fé - estamos totalmente sozinhos.
Em 1976, e até perfazer a idade de 6 anos - altura em que a minha mãe resolveu ir a um enterro, levar-me de companhia e dizer-me que aquela Senhora que ali estava morta tinha ido para o céu - estive completamente no escuro no que à minha possível salvação dizia respeito.
Não pedi por isso nada a ninguém, ninguém superior me ajudou, ninguém veio proteger-me, e a verdade é que os acidentes acontecem, até aos que pagam a fatia maior.
Como ateia que sou, tenho esta característica de associar aquilo que aos outros é da esfera da religiosidade, a coisas práticas da vida, e uma delas é achar que com tanta gente religiosa no mundo, tanta gente que pede mil desejos, que ocupa todo o Céu com as suas preces, é natural que o Céu se detenha mais nesses que lhe pedem e suplicam, ao invés de atender a outros, mais calados, mais tímidos, mais ocupados, ou na ignorância do pedir. Por exemplo, os grandes devedores só se detém (e pagam) aqueles que não largam o telefone com o número da fatura no credo.
É uma teoria como outra qualquer, e se quererdes uma coisa mais nonsense, posso sempre recorrer à celebre frase: quem não chora não mama.
Foi um acidente.
Foi 'o' acidente.
Foi um mistério tão grande que nunca ninguém se predispôs a tentar percebê-lo.
Eu era uma criança balofa de 11 meses, e nessa mesma hora, na hora em que se deu o acidente, que ele há coisas do demónio, morria o Elvis Presley engasgado no seu próprio vómito.
É extraordinário como as coisas acontecem.
Em menos de nada, como é apanágio dos acidentes, uma miúda obesa de 11 meses, que dormia profundamente numa altíssima cama de grades, que nunca se tinha mexido para lado algum a não ser, claro, ao colo, galga as grades e cai no chão sem um choro, vai a gatinhar por ali fora, coisa que nunca antes tinha feito, gatinhar, e encaminha-se sorrateiramente para uma mesinha de cabeceira que ficava do lado oposto da sua cama.
O acidente, esse fatídico que havia de ditar toda uma personalidade, dá-se no instante em que a criança, que era obesa, não sei se já disse, puxa, talvez esfomeada, o naperon que servia de base a nada mais, nada menos, que um termo cheio de papa a ferver, que destaparam para arrefecer, e que seria o pequeno almoço de um adulto que ainda comia papa.
O que leva um adulto a comer papa é assaz estranho.
O que fazia um termo cheio de papa em cima de um naperon é ainda mais estranho, e o que fazia o termo em cima da mesa de cabeceira do quartinho onde dormia uma criança obesa sempre esganada de fome, é para lá de muitíssimo estranho.
Mas coisas estranhas acontecem, e esta calhou acontecer-me a mim, numa altura em que eu quase não sabia o que era papa, muito menos o que era o Papa ou os seus amigos para lá das nuvens.
É extraordinário como as coisas acontecem, mas a verdade é que naquele preciso momento, por distração dos senhores lá do Céu, que estavam porventura ocupadíssimos a tentar salvar o Elvis, esse outro obeso, que se engasgava no seu próprio vómito, não viram que uma criança, uma ingénua criancinha, se afogava, também ela, numa espécie de vómito fervente, que se derramava sobre ela, e a queimava ferozmente.
Não sei o que fazer com esta tricotomia.
A papa, o Papa e o Elvis.
Fico-me talvez por uma palavra parecida: miopia.
Porque apesar de já não ter 6 anos, e entender que talvez possa existir alguma coisa para além das nuvens... continuo sem ver nada.
Belo post, Uva! Belo post... :)
ResponderEliminaridem, 76, agnóstico, pessimista.
ResponderEliminarpara lá das *nuvens* só habita aquilo que imaginamos.
é triste sentir-me afastado daquela gente toda que me parece tão iludida mas feliz na confusão de espiritualidade com fé e espectáculo. é triste porque não sinto qualquer satisfação, não vislumbro qualquer êxtase, nem sequer o invejo.
somos ainda crianças. talvez dez mil anos no futuro...
Abraço Uva.
Como disseste, há coisas do demónio ;-)
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