8 de junho de 2017

A HISTÓRIA DA MENINA QUE ERA INVISÍVEL E NÃO SABIA

Fui durante anos invisível.
Por força do meu frenesim interior, que me levava a andar de triciclo em cima dos sofás amarelos da minha sala, a minha mãe encontrou uma maneira pouco ortodoxa - se tivermos em conta os cânones da educação moderna - de me proteger de mim, em primeiro lugar, e dos outros, que tanto me atormentavam, de uma penada só.
Ficava 'escondida' no quintal, despedaçando as plantas com paus, pisoteando os pêssegos com pedras, trincando com os dentes de leite os bichinhos-de-conta que desnecessariamente se enrolavam em bolinhas, julgando que assim se escapavam às mandíbulas.
Passei muitos anos no quintal, lutando contra os meus moinhos, cortando as bonecas às fatias, exasperando os vizinhos com bisnagas que atiravam um conteúdo de tinta para os varais, até pelo menos até ao 3º andar.
Era a menina invisível do simpático casal de namorados, ela muito querida, ele um grande dançarino, mas atão, a miúda tem azougue e cá para casa, brincar com o menino, é que ela não vem.
Não sabia, naquele tempo, o motivo pelo qual os meninos me odiavam. Eu pelo contrário adorava cada um deles e amiúde ia chamá-los a casa para brincar, mas as mãezinhas, essas, fariam muitas vezes o favor de salvar os seus meninos das mandíbulas assassinas da miúda que comia a bicheza do quintal e estrafegava as cabeças das bonecas.

Mas eu não sabia.
Não sabia nada sobre o frenesim, não sabia nada sobre as mães que me afastavam das suas peças, tão delicadas, de porcelana, não sabia nada sobre aquelas pessoas que olhavam condescendentes para a aquela mãe que sempre ficava para o fim nas reuniões de pais.

- A senhora é que a mãe da Uva?
- Sou.
- Se não se importa... fica um bocadinho para o fim?

Para o fim...

E eu, enquanto esperava pela última mãe da reunião, partia o giz aos bocadinhos, riscava as mesas da recepção, gritava urras no pátio de trás qual D. Quixote de La Mancha, mandava as contínuas à merda, e acabava com todos os moínhos que me pareciam ser surdos, que teimavam em não me ver, porque me achavam invisível.
E quanto menos me viam mais eu queria aparecer.

E é sempre assim.
Na vida como no trabalho.
Na vida como na escola.
Na vida como na família, entre irmãos, entre primos, entre vizinhos, amigos e inimigos.

Na vida como nos blogues.

De todas as pessoas que passaram por mim, e que ao longo do meu frenesim me consideraram invisível, são exatamente as mesmas que hoje teimam em me conquistar.
A vida é um pedaço de mau caminho.
Não deixo ninguém para trás.

3 comentários:

  1. Acho que não posso concordar contigo, minha querida.
    Como mãe, se pudesse escolher, escolheria para companhia dos meus filhos crianças bem comportadas, sabe Deus que percebo as reviradelas de olhos que a menção ao meu "índio" deve suscitar em algumas mães, teve um ano para esquecer, só não o rifei porque não rifamos os filhos.
    E não concordo que não se deixe gente para trás, faz parte da vida deixares de te identificar com algumas pessoas, enganares-te, decepcionares-te, enfim... já tive gente no meu passado que não quero no meu presente por inúmeras razões. Umas deixaram recordações que fazem sorrir, outras deixaram apenas a mágoa do desengano. Quando assim é tornam-se invisíveis por mais esforços que façam por aparecer esbarram na carapaça da indiferença e desprezo.
    Obviamente que quando falamos de crianças a coisa é um bocado diferente, de fora consigo perceber os dois lados. Ainda bem que a tua mãe te apresentou a ginástica que fez com que acalmasses os demónios, hoje em dia isso está diagnosticado, a hiperactividade pode ser muito diminuída, mas antigamente confundia-se muito com falta de educação.
    Quanto a esta última, se é pouco tolerável numa criança, é totalmente inaceitável num adulto. Por mais problemas que tenha.
    Um abraço.

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    1. Sim. Fico contente por discordares. Assim posso advogar com alguém que sei que sabe das coisas como elas são.
      Eu própria também me desiludo, mas há uma coisa que não faço: maltratar o outro. Ou bem que se acaba o namoro, ou não ando ali a dar-lhe esperanças.
      Há muita gente que faz isso na perfeição. Ignora mas não ignora, abandona mas não abandona.
      As pessoas que são abandonadas precisam de fazer o luto. Não vale a pena acabar com a namorada e depois passar a vida a ligar-lhe para saber se ela está bem e se quer ir beber um café. Parece aquela coisa sinistra de ver a dependência que os outros podem ter de nós.
      Quando falamos de crianças falamos de projectos de futuro, futuros adultos. Fui muito abandonada por ser um bicho do mato e sobretudo porque ninguém me dava uma segunda oportunidade. Eu aos 10 anos já estava mudada, mas ninguém quis saber disso. Se não queremos dar uma segunda oportunidade às pessoas não damos. Ou lhes damos a mão e tentamos perceber que gritaria é aquela, ou então não vale a pena dizer que nos esquecemos de pessoas invisíveis se passamos a vida a fazer com que apareçam na nossa vida.
      É este o ponto Pic, é este o ponto.

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    2. És bem capaz de ter razão, é feio dares esperanças quando realmente já não tens nada para dar. Mas a experiência diz-me que normalmente não é quem abandona que liga para saber como está a ex-namorada, é a própria da ex-namorada que arranja 501 pretextos para ligar, é ela quem aparece onde sabe que nos vai encontrar, só assim por acaso.
      E nós não somos perfeitos, querida Uva, sabe Deus que por vezes não resistimos a gozar o prato quando ele se põe mesmo ali à nossa frente, completamente a jeito.
      Mas tens razão, seria mais caridoso ignorar a tentativa de chamada de atenção e virar a cabeça para o lado.

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