Eu cumpro uma pena.
Porque sendo livre estou coacta, coalhada, iogurtizada, no meio de uma música que não pedi para tocar.
Ouvi dizer, quem sabe a um ancião - não estou a ver mais ninguém capaz de tanta sabedoria - que uma boa forma de sobreviver ao penoso tormento, especialmente àquele que nos mantém presos, apesar de ser amplamente divulgado que o trabalho liberta, é deixar-se o espírito em casa e usar apenas o invólucro.
Muito ao jeito daquelas pessoas que se dizem umas e são outras, muito ao jeito daquelas pessoas que ingratas aceitam o prémio mas enviam currículos, muito ao jeito daquelas mulheres cujo sexo é ardente, mas não beijam na boca, talvez a nossa moldura penal possa ser igualmente reduzida a uma minúscula armação, onde os ombros só aparecem fugazmente segurando uma cínica cabeça, se nos despejarmos à porta.
De manhã, levantaríamos a cabeça da almofada mas continuaríamos a dormir.
Ao abrirmos a água quente para o duche, as mais das vezes apressados, confusos e mal humorados, continuaríamos afinal encostados ao balcão da cozinha, a torrar um calmo pão.
Ao sairmos de casa carregados de malas, e lancheiras, e olheiras, nervosos a olhar para o relógio, estaríamos enfim sentados no terraço com vista sobre a Avenida, a beber um café fervente, com um gato por companhia.
Esmagados. Todos nos sentimos esmagados quando a música é muito pesada.
Talvez não seja o tipo de pessoa hardcore, grunge ou metálica, a que esta pena me obriga.
E depois penso: ou o trabalho me liberta, ou terei de me libertar do trabalho.
É também por isso, que a existência da tua Uva Passa faz todo o sentido, essa criativa, essa "poeta à solta", poeta à solta "ouvi dizer" a um ancião pleno de sabedoria: "O homem não nasce para trabalhar, nasce para criar, para ser o tal poeta à solta." - Agostinho da Silva.
ResponderEliminarNão está fácil. Dizem que os melhores poetas são melhores quando sofrem. Eu estou a arrastar-me. Deveria estar em perfeitas condições para escrever. E no entanto não estou.
EliminarSabes como te imagino? Sempre em ebulição, num estado de inquietação quase permanente e exigente demais contigo própria, muito. Que sentido faria a Uva se não fosse um espaço de liberdade? Os teus gritos do Ipiranga, seja o que for que te apeteça, ainda mais no teu caso, que neste "seja o que for que te apeteça" tens sempre em conta o respeito pelos outros, escreve se escrever te fizer feliz, se te descarregar a bílis, o que for, se apetecer-te, se sentires necessidade, já agora, sabes que muitas vezes escreves pedaços de prosa do caraças de boa? Sabes? Ou isso de nunca achares que estás em perfeitas condições é doença crónica? Seja como for, escrita liberdade e não escrita obrigação, quer as condições sejam perfeitas ou imperfeitas. (adoro "ralhar" contigo, foi só mais esta vez, abraço Uva Sumarenta)
EliminarSim em ebulição. Sempre a transbordar. Mas sim, este espaço de liberdade é muito bom. É o pipo da panela, é o pipo do pneu, é o pipo da minha vida. Ralha comigo. Ralha muito comigo. Mantém-me acordada. Obrigada.
EliminarMil abraços.
Eu fui despedida e cumpro uma pena também. Tão mas tão pesada que parece que estou de castigo por não ter trabalho. Mas tenho tanto trabalho, de mãe, de casa, vale-me isso. Tivesse eu a tua destreza literária, conseguisse eu passar a minha pena como tu escreves a tua e de certeza não me seria tão pesada. Sinto-me esmagada quando te leio mas um esmagado bom.
ResponderEliminarComo assim, foste despedida?? Meu Deus, eu aqui a a queixar-me do trabalho e tu aí sem trabalho. Que caraças de vida a nossa. Que pesum é este em cima dos ombros caramba? Eu sinceramente padeço de incompreensão crónica. Pessoas tão válidas e tão bonitas, sem emprego, e pessoas bisonhas, amarguradas, e más, a plantar o terror no local de trabalho. Espero que tudo se resolva rapidamente para voltares aos trilhos. Não sei rezar, não acredito em Deus, mas acredito em ti.
EliminarUva, se isto é não estar em condições...
ResponderEliminarNão é não minha querida Mia, não é não. Isto é uma porcaria. Mas a culpa é minha. Tenho estado tão dedicada aos outros que me esqueço de mim. É assim sempre não é? É pois.
EliminarComo me identifico. E como gostava de me libertar do trabalho, que há mto, deixou de me libertar.
ResponderEliminarE a mim, sabes o que me custa mais? É que nem sequer é o trabalho em si...são as pessoas que o andam a transformar num lodaçal...e eu com medo de ser arrastada lá p dentro.
Ora lá está. O INFERNO SÃO OS OUTROS!!!! Cambada. Era tudo à vassourada. ;) Coitadinhos, eles também sofrem dos nervos...
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