7 de junho de 2017

EU NÃO TRABALHO

Eu cumpro uma pena.
Porque sendo livre estou coacta, coalhada, iogurtizada, no meio de uma música que não pedi para tocar.
Ouvi dizer, quem sabe a um ancião - não estou a ver mais ninguém capaz de tanta sabedoria - que uma boa forma de sobreviver ao penoso tormento, especialmente àquele que nos mantém presos, apesar de ser amplamente divulgado que o trabalho liberta, é deixar-se o espírito em casa e usar apenas o invólucro.
Muito ao jeito daquelas pessoas que se dizem umas e são outras, muito ao jeito daquelas pessoas que ingratas aceitam o prémio mas enviam currículos, muito ao jeito daquelas mulheres cujo sexo é ardente, mas não beijam na boca, talvez a nossa moldura penal possa ser igualmente reduzida a uma minúscula armação, onde os ombros só aparecem fugazmente segurando uma cínica cabeça, se nos despejarmos à porta.
De manhã, levantaríamos a cabeça da almofada mas continuaríamos a dormir.
Ao abrirmos a água quente para o duche, as mais das vezes apressados, confusos e mal humorados, continuaríamos afinal encostados ao balcão da cozinha, a torrar um calmo pão.
Ao sairmos de casa carregados de malas, e lancheiras, e olheiras, nervosos a olhar para o relógio, estaríamos enfim sentados no terraço com vista sobre a Avenida, a beber um café fervente, com um gato por companhia.
Esmagados. Todos nos sentimos esmagados quando a música é muito pesada.
Talvez não seja o tipo de pessoa hardcore, grunge ou metálica, a que esta pena me obriga.
E depois penso: ou o trabalho me liberta, ou terei de me libertar do trabalho.



10 comentários:

  1. É também por isso, que a existência da tua Uva Passa faz todo o sentido, essa criativa, essa "poeta à solta", poeta à solta "ouvi dizer" a um ancião pleno de sabedoria: "O homem não nasce para trabalhar, nasce para criar, para ser o tal poeta à solta." - Agostinho da Silva.

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    1. Não está fácil. Dizem que os melhores poetas são melhores quando sofrem. Eu estou a arrastar-me. Deveria estar em perfeitas condições para escrever. E no entanto não estou.

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    2. Sabes como te imagino? Sempre em ebulição, num estado de inquietação quase permanente e exigente demais contigo própria, muito. Que sentido faria a Uva se não fosse um espaço de liberdade? Os teus gritos do Ipiranga, seja o que for que te apeteça, ainda mais no teu caso, que neste "seja o que for que te apeteça" tens sempre em conta o respeito pelos outros, escreve se escrever te fizer feliz, se te descarregar a bílis, o que for, se apetecer-te, se sentires necessidade, já agora, sabes que muitas vezes escreves pedaços de prosa do caraças de boa? Sabes? Ou isso de nunca achares que estás em perfeitas condições é doença crónica? Seja como for, escrita liberdade e não escrita obrigação, quer as condições sejam perfeitas ou imperfeitas. (adoro "ralhar" contigo, foi só mais esta vez, abraço Uva Sumarenta)

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    3. Sim em ebulição. Sempre a transbordar. Mas sim, este espaço de liberdade é muito bom. É o pipo da panela, é o pipo do pneu, é o pipo da minha vida. Ralha comigo. Ralha muito comigo. Mantém-me acordada. Obrigada.
      Mil abraços.

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  2. Eu fui despedida e cumpro uma pena também. Tão mas tão pesada que parece que estou de castigo por não ter trabalho. Mas tenho tanto trabalho, de mãe, de casa, vale-me isso. Tivesse eu a tua destreza literária, conseguisse eu passar a minha pena como tu escreves a tua e de certeza não me seria tão pesada. Sinto-me esmagada quando te leio mas um esmagado bom.

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    1. Como assim, foste despedida?? Meu Deus, eu aqui a a queixar-me do trabalho e tu aí sem trabalho. Que caraças de vida a nossa. Que pesum é este em cima dos ombros caramba? Eu sinceramente padeço de incompreensão crónica. Pessoas tão válidas e tão bonitas, sem emprego, e pessoas bisonhas, amarguradas, e más, a plantar o terror no local de trabalho. Espero que tudo se resolva rapidamente para voltares aos trilhos. Não sei rezar, não acredito em Deus, mas acredito em ti.

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  3. Uva, se isto é não estar em condições...

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    1. Não é não minha querida Mia, não é não. Isto é uma porcaria. Mas a culpa é minha. Tenho estado tão dedicada aos outros que me esqueço de mim. É assim sempre não é? É pois.

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  4. Como me identifico. E como gostava de me libertar do trabalho, que há mto, deixou de me libertar.
    E a mim, sabes o que me custa mais? É que nem sequer é o trabalho em si...são as pessoas que o andam a transformar num lodaçal...e eu com medo de ser arrastada lá p dentro.

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    1. Ora lá está. O INFERNO SÃO OS OUTROS!!!! Cambada. Era tudo à vassourada. ;) Coitadinhos, eles também sofrem dos nervos...

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