14 de junho de 2017

O MENESES

Quando eu era uma miúda, e corria para falar com a minha mãe ao telefone, corria para 'O Meneses'.
O Meneses era o dono de um café com o mesmo nome que ficava perto da casa da minha avó, e que beneficiava sobre todos os outros por ter o único telefone num raio de muitos quilómetros.
Eu tinha um medo cavo do Meneses, e mais ainda dos inúmeros animais que ele mantinha nas paredes, embalsamados em pó e imundice.
A voz da minha mãe do outro lado da linha, do rio, e das férias, mantinham-me em fecunda segurança durante o tempo da conversação. As minhas ainda curtas pernas, possibilitavam-me o esconderijo perfeito, já que os olhos mortiços e ramelentos do Meneses não conseguiam alcançar-me do outro lado do balcão.
Ali, na curta conversa que mantinha com a minha mãe, onde ela me perguntava sem esperança visível, no caso audível, se estava a portar-me bem e se não chateava a minha avó, a visão era do demo. Fatias de melão de aspeto putrido, taças de inox contendo um lodaçal pestilento de mousse chocolate, e bogas de olhos azulados e pouco sangue na guelra, gritavam-me na montra do balcão, como se fossem prisioneiros de guerra, submissos às mãos do vil inimigo.
E era uma escuridão medonha aquela que ali se vivia n'O Meneses. Nunca tive coragem, ou vontade, de atravessar para lá do balcão, onde vivia a cozinha. O acesso era feito através de uma tabuinha muito untada que se levantava para deixar passar o bojo do Meneses, que ia e vinha com os amendoins e as imperiais, e às vezes com a boga falecida em cima de uma bandeja, às mesas do salão, onde homens de lodo ressequido nos pés, por andarem na apanha, jogavam dominó muito bêbados, desde o início das férias. 
Assim que conseguia libertar-me das encomendas comportamentais da minha mãe, pousava o auscultador preto e compacto sobre o gancho, os olhos do Menezes caíam sobre mim, e eu, sem dizer palavra de jeito, fugia dali para fora, antes que ele tivesse a infeliz ideia de me meter também as unhas em cima.
Matou-me muitos gatos, o Meneses. Pelo menos era essa a história que corria nas veredas. Um homem adunco, de cara escarafunchada das lombrigas, de cabelo branco muito sujo, que usava os fundilhos das calças quase a roçar-lhe os calcanhares, não gostava da gataria e tratava de lhe meter veneno.
Canalha.

Certo dia, já eu era crescida, soube da morte do Meneses.
É daquelas mortes que não levam nem pena nem cortejo no funeral. Três gatos pingados, só para ser irónica com as palavras, acompanharam o morto à sua última morada, e assim se acabou a história.
Acontece que a vida é muito mais irónica do que as palavras e apesar de não deixar descendentes para lhe herdarem os animais embalsamados, o Meneses era casado e deixou a viúva.

A vida destas mulheres, que têm de se deitar com estas homens imundos, durante anos na mesma cama, deve ser tormenta de grande monta. É como se um pus virulento se entranhasse debaixo das saias e fosse por ali a cima desvirginando a pureza da minhota.
A verdade é que voltou a casar e desapareceu com o seu marido eunuco, aposentado da GNR, lá para os lados da Alameda, onde veio a ser uma grande madame das Avenidas.
Só que não.
No sítio onde homens ébrios um dia viveram a glória de ganhar uma partida, ficou um cão.
Enquanto a madame se rebolava com o seu marido nas avenidas do novo matrimónio, um animal inocente ficava preso dentro das traseiras do restaurante, com a finalidade de lhe guardar os animais mortos que lá ficaram nas prateleiras.
Era um dó ver ali o bicho. Semanas inteiras sem vivalma, chupando a saca de ração que a viúva ali deixava de duas em duas semanas.

Falei há pouco com a minha mãe, mas desta vez no sossego da minha janela.
O cãozinho estava morto. Ali, no meio do caminho, entre o portão do quintal e a entrada do antigo restaurante, jazia o Meneses, a viúva, a boga e a miséria.

Algures, nas avenidas de Lisboa, se passeia um animal embalsamado, de olhos mortiços e ramelentos, muito parecido com o Meneses. 
Canalha.

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