Há tantas coisas na nossa vida que ficaram por acontecer.
Lembro-me bem de uma noite, no Lux, andava eu numa fase absolutamente alvoraçada, a tentar trucidar o luto tremendamente e absolutamente doloroso do meu melhor amigo e namorado que morria todos os dias sem se despedir, que morria em todo o lado, a qualquer hora, numa casa de banho, num restaurante, no caminho para a faculdade, e também no Lux, durante muitos anos depois da sua efetiva morte, e de ter a plena certeza de que, nessa noite, o fio que me ligou à vida foi um fio de aranha, elástico, resiliente, feito para aguentar até a mais alvoraçada má-sorte, que podia muito bem ter ali acontecido.
Outra vez, novamente alvoraçada para chegar a casa, ou para sair de alguma casa, cantava muito alto uma canção dos Duran Duran, que passava no meu Fiat Punto 6 Speed - que eu nunca soube andar devagar - e, agarrada a um cigarro, com a cabeça na melodia, fiz uma espécie de ultrapassagem dentro de um túnel e só me apercebi que estava a guiar um automóvel quando um camião que se apresentava de frente, com uma carga imensa de eucaliptos, me acendeu duas vezes os máximos, apitou na linha, e optou por não me matar.
Há tantas coisas na nossa vida que ficaram por acontecer.
Tenho hoje um dos meus melhores amigos deitado numa cama de hospital, e não posso garantir que o fio que o liga à vida é de aranha.
Gostava que a vida fosse gentil e nos permitisse voltar atrás, muito atrás, para limpar os cacos que a morte nos traz.
Que bom seria levar os nosso mortos pela mão e mostrar-lhes todas as coisas novas que foram acontecendo na sua ausência: os jardins tão arranjados, a nova rotunda de Odivelas, o Metro que já chega à Pontinha, os olhos azuis, tão lindos, da minha filha...
Por tudo isto que não aconteceu comigo, por todos os fios que me prendem à vida, fios feitos de pessoas, de amigos, de alegrias, de dias de sol, de pedaladas, jantaradas, leituras, ternuras, e sorte, sou grata.
Mas não sou imortal.
Há de haver um dia que nada ficará por acontecer.
Cair no esquecimento somente aquilo que não veio para somar. AbraçO
ResponderEliminarTão bonito, isto.
ResponderEliminarBeijo, Uvinha.
Abraço apertado à minha melhor Maria!
EliminarTexto tão belos que não me atrevo comentar.
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